1 Saí da estreia do “Sonho de Uma Noite de Verão” no Trindade (oh maravilhoso Shakespeare!) com vontade de lá ter ficado, pedindo bis: que os actores voltassem ao princípio e recomeçassem tudo outra vez.

Dias depois tive mesmo de procurar Diogo Infante, para lhe fazer duas ou três perguntas, o espectáculo era isso que (me) pedia: como partira ele para “aquela” encenação, como conseguira tão feliz sintonia entre verbo e gesto, música e dança? E como se opera para que quase instantaneamente, quase automaticamente, se cruze do palco para a plateia e do público para os actores uma tão forte empatia, física, palpável, como se todos, fossemos um só todo?

Uma vez titulei um crónica onde falava de uma outra performance de Diogo Infante como “Puro Teatro”, hoje apetecia-me repeti-lo. Estava-se, naquela noite no Trindade, em estado de puro teatro.

É certo que se tratava de Shakespeare , o que pode ser quase meio caminho andado quando alguém sabe ser “porta voz” do génio. Diogo Infante sabe. Não só por o conhecer bem, tê-lo lido, estudado, visto, interpretado (e também nesta mesmíssima peça); não só pela versatilidade e qualidade do seu talento mas porque há muito o habitava uma “certeza”: um dia “tinha que regressar a esta peça”.

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Voltou agora como encenador após dois anos sonhando com o “Sonho”. Lendo-o, e relendo-o mas desta vez “idealizando-o musicalmente”. Imaginando como iria a música agir e interagir com a magia e a fantasia do texto. Com o amor, o capricho, o ciúme, o despeito e tutti quanti, cantados e dançados. Em português.

Com os diálogos à sua frente, Diogo ia fazendo uma play list de canções portuguesas umas mais recentes, outras menos. E de repente dava consigo, com um humor espantado: “mas que bem que isto calha aqui no texto”. E depois também calhava ali e depois ali e ali: nascia uma articulação mais que perfeita – subtil, leve, cómica, graciosa, amorosa – entre a representação, a musica, a cenografia. Tudo estava certo.

O “Sonho” transformava-se em realidade. Shakespeare no seu melhor, Diogo Infante no melhor da sua inteligência cénica. Talento às golfadas, energia, alegria e empatia também às golfadas. O risco era grande e duplo? Shakespeare cantado e em português? Não tinha importância: o poder do desafio foi maior que o temor do erro. Não deve haver melhor recompensa.

Nota não dispiscienda: se a escolha das canções merecem o Óscar da Melhor Escolha, o bosque que abriga o “sonho” desta poética noite de Shakespeare merece indubitavelmente o Óscar para o “Melhor Bosque”: um deslumbramento… digital.

2 Quem duvida do imenso poder que pode ter em cada ser humano a descoberta de um livro? O ponto de partida é sempre interpelante por natureza, a caminhada da leitura naturalmente oscila: não parar de ler, ter vontade de falar do livro, recomendá-lo aos amigos, anotá-lo, saber que se voltará a ele; hesitar, deixá-lo para ler mais tarde, desistir a meio enquanto se vai pegando noutro; detestá-lo, arrumando-o de vez na estante, entre a desilusão e uma inconfundível impressão de desperdício de tempo.

Há os autores de cabeceira, os eleitos, os “adquiridos” para a vida. Os que vamos lendo e amando. E os outros. É como com as pessoas. Há umas e há outras.

Mas hoje evoco os “escritores do domingo”. Escrevem por paixão, por curiosidade, por necessidade de saber até onde irão, por simples gozo. Talvez para compreenderem mais sobre si mesmos, talvez por solidão.

Escrevem. Quem lê? Logo se verá. Simpatizo instintivamente com eles, a minha curiosidade redobra, a minha admiração é genuína.

3 Acabo de descobrir dois livros que nada juntaria não fora em boa hora terem-me ambos vindo parar à mão. “Os Meninos de Palhavã” de Isabel de Lencastre (Oficina do Livro-Leya). A obra parte de uma boa ideia e conduz-nos a porto seguro: há muito boa informação histórica, a escrita é ágil, solta, sedutora. Cavalga as palavras e leva-nos com ela para uma saga pouco conhecida mas muito bem contada: quem além de historiadores e estudiosos conhece quem eram estes três “meninos” de vida infausta no nosso século XVIII?

Filhos bastardos de D João V, viveram larguíssimos anos ostracizados e na penumbra, arredados da corte e do privilégio. O rei viria a reconhecê-los mas o seu compromisso escrito e validado nunca foi respeitado pela rancorosa hostilidade da rainha sua mulher, D. Maria Ana de Áustria e de seu filho, D. José. Só após a morte de uma e do outro os três irmãos conheceram vida condigna. Um quadro da nossa História bem pintado com palavras.

O outro livro chama-se “As Minhas Memórias” e o seu autor, Maximino Alves Martins, é um discreto e estimadíssimo cidadão de Óbidos. O interesse do livro reside em ser simplesmente as memórias de um homem simples e o que elas impressivamente dão a conhecer de uma vida num pequeno burgo rural. Como diz o autor citando Alberto Caeiro “da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo…”

É verdade: fiquei a saber coisas que nunca saberia, apreciei as encantadoras aguarelas sobre salinas, bateiras, a apanha do limo, a pesca à fisga, a sertela; retive nomes de artefactos nunca ouvidos – malhal, cabaço, pá de valar, podoa, foice roçadoira, foição –; revi a guerra em Moçambique com este ex-soldado; escutei o activista da defesa da Lagoa; admirei o servidor constante da Igreja – Maximino foi ordenado diácono nos Jerónimos em 2004 – e a sua evocação da Semana Santa de Óbidos, ex-libris da pequena vila branca.

Alonguei-me? Talvez. Este “escritor dos domingos” merecia-o bem.