Na última edição da revista do Expresso, Manuel Alberto Valente publicou um texto («Um livro muito especial») recordando um curioso episódio. Em 1971, Manuel Valente cumpria serviço militar no Ministério do Exército, onde executava um trabalho que «consistia na mobilização de médicos que, não tendo ido para o Ultramar com a idade dos outros, eram chamados mais tarde para seguirem já como capitães milicianos.» Ao seu lado, trabalhava um outro militar, com quem raramente trocava palavras.

Valente recorda que, por essa altura, na sequência da crise académica de 1969, «vários amigos [s]eus» tinham sido incorporados à força no Exército, tendo sido mesmo contactado por um deles «a contar que iria ser chamado para a Guiné. Esperava, claro, que eu pudesse, de algum modo, impedir que isso acontecesse.»

Consta do relato que, por essa altura, «os nomes dos oficiais estavam escritos por ordem de antiguidade nuns grandes livros pautados e, quando algum era mobilizado, cortava-se o seu nome com uma risca vermelha e punha-se à frente a colónia de destino e a data da mobilização. A fraude era portanto fácil, mas as consequências podiam ser terríveis.» Então, prossegue o texto, o autor ganha confiança com o seu colega de gabinete, percebe que este era opositor ao regime, e propôs-lhe que, «num momento em que não houvesse testemunhas, cortássemos o nome do meu amigo como se ele já tivesse sido mobilizado para a Guiné. Consciente dos riscos que corria, ele aceitou e um dia chegámos mais cedo à repartição, abrimos o livro e fizemos o que tinha de ser feito. Quando chegou a altura de chamar para a Guiné uma série de oficiais, o meu amigo não foi chamado, uma vez que ‘já tinha sido mobilizado antes’…» E conclui o texto, elogiando o gesto praticado como «uma ínfima forma de rebelião contra um regime que nos impunha a guerra ou exílio.»

Não releva a apreciação política da guerra ou da ditadura para o caso. Não é o contexto que oferece contornos particulares ao episódio. O texto interessou-me por uma razão: trata-se, no fundo, de um magnífica forma de auto-elogio feita por alguém que, estando em condições para tal, decidiu agir de forma fraudulenta em benefício de um amigo. Fez-se, escreve, «o que tinha de ser feito», como «forma de rebelião contra o regime» — ignorando, ao fim de mais de 50 anos sobre o evento, que o que ali é relatado não se tratou de um acto contra o regime, mas da mera defesa dos interesses pessoais de um amigo, através do recurso a uma posição funcional e hierárquica em que o autor se encontrava, e, porventura pior!, ignorando mesmo que, com enormíssima probabilidade, um outro desgraçado qualquer, algum pobre diabo sem acesso a canais privilegiados de favorecimento que o salvassem das misérias da guerra, foi mobilizado para a Guiné em vez do amigo salvo.

A ditadura teve o seu carácter repressivo, as perseguições políticas, a censura, a tortura, a polícia política. Mas teve, de forma mais estrutural, a capacidade de encontrar no compadrio, na cunha e no favorecimento pessoal organizado em todas as classes sociais, métodos de enraizamento social e até de geração de simpatia ou indiferença generalizadas face ao regime. Talvez se possa mesmo questionar se os portugueses foram o que foram, na sua pior versão, ao longo dos últimos 50 anos de democracia, graças à ditadura que tiveram antes, ou se a ditadura foi o que foi durante as décadas anteriores ao 25 de Abril porque os portugueses eram como eram e, arrisco, continuam estruturalmente a ser: um país de gente económica e moralmente pobre, pouco dada à liberdade e muito complacente, se não mesmo desesperada, por um lugar no Estado, fosse no lugar mais baixo da hierarquia da repartição ou da guarda, ou nos altos cargos da Administração, dependendo da capacidade de influência disponível, ou até mesmo pela simples concessão de um favor.

Será, porventura, o maior falhanço do regime democrático português: a nossa brutal incapacidade de constituir uma sociedade civil poderosa e livre, verdadeiramente livre e sem medo do pequeno e do grande poder, composta por indivíduos ambiciosos e solidários, independentes e envolvidos na sua comunidade. Somos um país muito melhor do que éramos em 1973, a Europa como que operou por cá um pequeno milagre. Mas nesta dependência do senhor doutor que nos proteja a todos, do amigo com poder e influência cuja autoridade e importância social não se questionam com receio de represálias, uma coisa é certa: Salazar desapareceu, a ditadura caiu, mas permaneceu, sabe Deus durante quanto tempo, esta coisa insuportável do amiguismo, da mansidão, do respeitinho, da bufaria, do providencialismo, da dependência e mesmo de um certo espírito que grassa sobretudo nas elites que, conjugando todas estas características, aprecia ainda a perpetuação do privilégio em círculo fechado. Com a absoluta certeza de que quando são os outros a fazê-lo se trata de uma imoralidade, e quando somos nós se trata, afinal, do que tinha de ser feito. É um livro pouco especial, na verdade. Mas muito interessante de observar.

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