A Estrada Nacional N-236 foi tantas vezes o meu caminho entre uma pequena aldeia da Beira Baixa e o Porto. Entre a liberdade cultivada à luz dos candeeiros a petróleo e das bilhas que guardavam a água que não saía de torneiras, e a cidade do Porto, que então vivia a ditadura e depois o PREC, mas onde havia uma réstia de modernidade. Nesse tempo, a estrada era sinuosa e lenta, tinha muitos buracos e fazia-nos perder seis ou sete horas de caminho entre a pequena aldeia de Sarzedas e o Porto.

Parávamos sempre em Pedrógão e admirávamos a barragem do Cabril, por onde a velha “Nacional” nos obrigava a passar.

Hoje, a A1 e o IC8 encurtam distâncias entre a minha aldeia na Beira Baixa e o Porto, para muito menos de metade do tempo. E o País é todo ele muito diferente. A civilidade chegou formalmente a todo o lado. Há luz elétrica na pequena aldeia onde aprendi a ler sem ela e a água sai agora de torneiras como as do Porto ou Lisboa. Até há 4G nos telemóveis e 70 canais de TV, que vieram substituir a velha telefonista a quem pedíamos a chamada e a programação da “espanhola”, que me habituei a ver a preto e branco, em miúdo.

Apesar desta evolução, deixou de haver Juiz de Paz nas aldeias, já não há Regedor, o Posto Médico fechou e até as escolas de duas salas – meninos, meninas – foram substituídas por autocarros que levam as poucas crianças para a cidade. O Estado foi deixando de estar presente no mundo real e rural, senão para cobrar os mesmos impostos que cobra no Porto ou em Lisboa. E os camponeses foram incentivados a deixar as terras que cultivavam como subsistência e a dedicarem-se a receber ordenados ou, simplesmente, subsídios.

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Quando eu tinha cinco anos, sentava-me no jardim a ver as estrelas, que na Beira Baixa são muitas mais do que conseguimos imaginar no Porto e brilham firmemente toda a noite. Derramam-se pelo céu como caminho láteo. Como por magia. Entranham-nos a ideia da pequenez do nosso mundo e da relatividade de Einstein. Do jardim, também via os incêndios no horizonte que culminava na Serra da Estrela, no Muradal e na linha de luz que representava a cidade de Castelo Branco, que ao longe parecia grande.

Sempre houve incêndios na Beira Baixa, alguns deles eram mais perto. Um dia um deles matou-me o gato inocente que dormia no palheiro. Muitos aconteciam ao longo da N-236, onde em 2017 ficaram mais de 40 almas, perdidas.

Foi a réstia de Estado que ainda por lá existia que em 2017 atirou aquelas pessoas para o Inferno. Conduziram, confiantes, alheadas do SIRESP que não funcionou, da Proteção Civil que não avaliou, do autarca que não cuidou, do País que as abandonou. Do País que se apressou a dizer que “tudo foi feito”, sendo mentira.

Sempre houve incêndios. Os da Beira Baixa só eram notícia raras vezes. De cinco em cinco anos ardiam mais, não sei porquê. De dez em dez ardiam nos mesmos locais. Ainda ardem.

Hoje, os incêndios são quase iguais aos da minha infância. São dantescamente épicos e belos. Arrebatadores e poderosos como uma maré viva ou um furacão. Fazem-nos sentir pequeninos, como as estrelas e a via látea.

Sempre houve incêndios. O que nunca tinha havido era uma agenda política e mediática acerca dos incêndios. O que não havia era o mesmo oportunismo da notícia, do discurso político e da demagogia, juntos no mesmo interesse efémero. A demagogia que espreme a imagem da chama durante cinco dias por ano, que depois abandona nos restantes 360. Tal e qual faz o Estado com o País que não é Lisboa.

Em 2017, o Estado falhou clamorosamente. Quase nem lá estava, na verdade. E a verdade é que continua a não estar.

Cinco anos depois de Pedrógão, o Estado continua ausente em Pedrogão. Não viu, como eu vi nas sucessivas viagens que fiz nos últimos cinco anos pelo IC8, os eucaliptos crescerem de novo, livres, segundo o mesmo desordenamento, com a mesma incúria e sem regra.

Sempre houve incêndios, o que mudou foi a agenda mediática, que hoje se derrete no monotema da semana, durante cinco dias. Do Covid para a guerra; da guerra para o SNS, do SNS para a infame rábula do aeroporto; dá rábula para o Mário Ferreira, do Mário Ferreira para os incêndios. Sempre ao mesmo estilo de exaurir o povo, até ao desinteresse, passando ao show seguinte. Sempre sem conclusão, sem solução, sem castigo e, normalmente, sem verdade.

Ao contrário dos tempos da minha infância, já não há notícias. Há apenas a notícia da semana. E a notícia desta semana são os incêndios. Mesmo que o aeroporto continue a navegar no espaço sideral da indecisão nacional, mesmo que o SNS exclua grávidas e crianças do Estado social que apregoa e mesmo que a guerra continue a matar, sem parar.

O monotema da agenda mediática consome a consciência do povo, distrai-o da inexistência de caminhos e soluções, do encolhimento do Estado, enquanto pilar das garantias e da segurança dos cidadãos. Na próxima semana, haverá outro estribilho, como água que cai do céu na floresta em chamas e deixa no ar o nevoeiro que nos traz a esperança de Dom Sebastião.

Faz-se tarde, até para o ano. Até lá, hão-de brotar do chão cinzento e queimado muitos mais eucaliptos dos que arderam este ano e que tão convenientemente alimentaram as agendas e as reportagens. Talvez o campeonato possa recomeçar um dia destes e a bola nos possa inebriar, como ópio. E, assim, na próxima semana, um novo monotema fará esquecer a minha Beira Baixa. Afinal, sempre houve por lá incêndios. Já não me lembro é de haver lá Estado.