Conheço muita gente que não gosta ou que deixou de gostar do Natal. Vão morrendo os nossos, às vezes há poucas crianças, estamos todos velhos. (Em menina, nesta época, íamos de viagem, houve anos em que não fomos. Lembro-me de pararmos em Tomar e de um almoço à beira da estrada. O fim dos sítios por onde passeámos coincide com o fim da era dos nossos passeios. Quando andamos pela primeira vez pelos mesmos lugares, fomos já sobrevividos. Recordo a aura de passeio, o corte da nossa roupa, o boné do avô, atravessarmos a estrada a passo lesto, a segurança de cicerone que o avô até perto de casa transmitia. Não tenho propriamente memória nossa no interior do carro, mas de prepararmos a partida, de levar brinquedos numa caixa estofada que havia no banco de trás, ao centro, e onde eu pousava o braço como num avião. O avô sentava-se de queixo levantado, lembro-me da sua silhueta vista do banco de trás. Não me lembro se a avó fumava pelo caminho, julgo que não. Não me lembro se o avô tirava o boné para conduzir. As suas silhuetas, vistas de trás, são para mim a imagem de casamento, que a disposição dos sofás, em casa, reproduzia, como se estar casado fosse esse arranjo de corpo e mobília e uma troca de interjeições.)
Outros falam-me doutra angústia das festas, não a dos que faltam, mas a dos que estão. As longas horas de conversa de circunstância, os apartes impertinentes ou maldosos, a tácita competição entre agregados no momento da partilha das conquistas da prole respectiva, os atrasos intencionais, os dramas que a quadra põe a nu, a doença, a má-vontade ou a má-consciência diante dos parentes desavindos, a obrigação das ofertas. Será que, à medida que o tempo passa, a família é como nos conta a literatura: uma arena, um logro, ou será uma estrela que brilha tanto que não conseguimos olhar para ela?
Relembro bem, quando era adolescente, e ansiava fugir do Natal para o único café aberto na cidade onde vivia, onde me encontrava com os amigos fugidos dos seus Natais. Era como vir à superfície, sozinha ou acompanhada. Conversávamos, fumávamos, suplicávamos pelo fim das festas.
Nesse café, os miúdos fartos dos velhos encontravam-se com os viúvos e as viúvas, com os que não tinham família ou estavam longe dela, ou de costas voltadas. Sem o saberem, os putos entediados traziam a magia do Natal a essas almas, e os mais velhos escutavam as conversas da nossa mesa: o tédio e a angústia insolente e mal-agradecida dos putos era o encanto dos bebêdos da tasca, que, às vezes, se metiam na conversa ou ficavam a ouvir as nossas queixas.
Penso hoje nessa gente ainda mais do que naqueles que não têm ninguém: naqueles que se sentem sozinhos juntos da companhia que têm, e que só querem que passe tudo depressa.
E detenho-me nesse café sagrado em cada pequena cidade para onde foge uma rapariga na tarde de 25 de Dezembro, propriedade de um viúvo sem filhos, que abre no feriado porque não tem família nem ninguém no mundo — e a sua família é a freguesia de sozinhos a quem dá de beber. Onde estará a rapariga? Onde andará esse santo hospitaleiro? Em que degrau do paraíso, que recompensa celeste terá esse homem, o dono do café, que salva os que odeiam o Natal? É para esse presépio curioso que vão os meus pensamentos nesta quadra natalícia: a miúda, os amigos dela, o dono do café e os outros bêbedos.
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Um presépio curioso
Relembro bem, quando era adolescente, e ansiava fugir do Natal para o único café aberto na cidade onde vivia, onde me encontrava com os amigos fugidos dos seus Natais.