É verdade que há uma química que se destaca da expressão “um problema de comunicação” que me incomoda. E, fazendo uso da mais simples racionalidade, não devia ser assim. As dificuldades de comunicação existem. São frequentes entre um bebé e a sua mãe (que, em muitas alturas, não decifra com clareza as palavras que se “escondem” numa das muitas formas como ele chora). São frequentes entre os casais, onde aquilo que um diz e o que outro percebe não batem certo, um ror de vezes. São frequentes entre os professores e os seus alunos porque não existindo dificuldades de comunicação as notas deles seriam sempre boas; muito boas. São frequentes entre ministros como, agora, se viu. Etc. Existem. Não têm, aliás, como não existir. Mas, seja como for, se já o “lamento” fez com que, no entretanto, o “desculpa!” tivesse passado de moda (o “lamento” é uma espécie de “temos pena”; menos verdadeiro, menos humilde, menos sentido e menos reconhecido que o “desculpa”), “um problema de comunicação” parece ser a justificação que surge a seguir ao “lamento”. E nunca representa a assunção sincera duma qualquer responsabilidade. É uma forma de repartir a culpa sem pedir desculpa. Ou um modo de assumir que eu terei sido claro e bem intencionado na minha comunicação e se, simplesmente, o outro se magoou com o meu tom, entendeu como falsos os meus argumentos ou sentiu desconsideração na forma como não o escutei, o problema não estará em mim. Mas nele; claro. E, quando muito, tenho a delicadeza de não lhe dizer que ele é que percebeu tudo mal e que a responsabilidade do mal que possa ter acontecido será “um problema de comunicação”. Fica-se, portanto, pelo processo. Digamos, pela comunicação. E eu acho que é por isso que elas me incomodam. Sentimo-nos desconsiderados… não se pede desculpa. O que se passou é que alguém entendeu mal; foram dificuldades de comunicação. Sentimos que ofenderam a nossa inteligência… Não, ninguém nos tratou como asnos. Não apanhámos o sentido da “coisa”; as dificuldades de comunicação é que foram uma maçada. Fazemos zero de esforço para entender aquilo que nos tentam fazer sentir. Paciência. Não estamos alinhados porque a comunicação não funcionou. Sentimos que falámos de alhos e alguém só percebeu bugalhos, ou que o nosso português, nas mãos de quem o escuta, mais parece um dialecto aborígene… Gostamos muito um do outro e é só mesmo a falta de comunicação que nos estraga. Ou seja: as dificuldades de comunicação são uma forma que se popularizou e que fez com que um mundo que se alimenta de narcisismo legitime que quem se sente magoado não o assuma, porque se reagir, imaginando que a outra pessoa reconsidera e pensa consigo, nos sentimos a falar para uma parede. Sempre que alguém, com sobranceria, nos remete ao silêncio quando assume que, a haver alguma coisa má naquilo que nos disse que mereça reparo, isso só pode ser “um problema de comunicação”.
“Um problema de comunicação” vale tanto quanto, depois de argumentarmos sobre um e outro e mais outro aspectos, alguém nos responde com um seco: “é o que tu achas”. Como se nada se pudesse conversar entre nós. Nada que faça do contraditório uma bênção diante da qual duas pessoas, depois de o discutirem, pensam melhor. “Um problema de comunicação” será uma forma menos áspera e menos hostil de alguém nos fazer sentir a falar para uma parede. E será menos arrogante do que: “É o que tu achas.” Mas bloqueia qualquer conversa séria entre duas pessoas que pretendam entender-se. E é aqui que o mundo em que vivemos é mentiroso: aparentemente aberto; aparentemente amigo da comunicação; aparentemente inclusivo; aparentemente mestiço, na forma como nos liga uns aos outros, sejam quais forem as nossas singularidades; e aparentemente acolhedor. Mas, depois, é um mundo ancorado em defesas narcísicas. Com pensamentos prescritos e pensamentos proscritos. Com reacções de ódio diante de determinados pontos de vista, como se estivéssemos diante de delitos de opinião. Com auto-estima no lugar do orgulho. Com auto-ajuda em vez de auxílio. Com controle das emoções em vez de as acolhermos como formas fulgurantes e premium de pensar com as quais se pode dialogar. Com censura da tristeza, vista, invariavelmente, como sinónimo de fraqueza e de depressão. Sem direito ao silêncio e com um predomínio ensurdecedor de ruídos na comunicação. Sem direito à atenção como consensualidade de sentidos e com a prevalência da irrequietude. Sem direito a meditar e a pensar e sob a hegemonia do impulso. Sem direito a pensar!
É claro que sempre poderemos afirmar que o mundo das pessoas não mudou tanto assim. Afinal, ontem como hoje, somos só pessoas. Com limitações sobre limitações mas que, apesar delas, foi cultivando a relação com Deus, como símbolo da verdade e prova da nossa pequenez. A diferença é que hoje somos muito mais escolarizados, muito mais educados e muito mais informados. A diferença é que, também por culpa da psicologia, consumimos lugares-comuns e expressões feitas. Como “o melhor de dois mundos”, “a zona de conforto”, “fazer a diferença”, etc. Tudo fórmulas inteligentes e sintéticas de caracterizar a nossa vida fazendo com que o nosso pensamento mais pareça uma sucessão de jingles da publicidade que as palavras que decorrem da meditação com que nos propomos pensar. E, depois, temos o telemóvel, as séries, os vídeos e as redes e sociais e a nossa atenção torna-se volátil. E o “autismo dos tempos que correm” que leva a conversemos pouco. Em vez de tertúlias temos, por exemplo, grupos de WhatsApp. Aliás, quando falamos, continuamos a imaginar que há um algoritmo que nos leva a supor que estamos sempre do lado certo da história. Logo, temos sempre razão. E o máximo da humildade a que conseguimos chegar é a “um problema de comunicação”.
Há um limite em que o mau, o mentiroso e o feio são a mesma coisa. Porque a desonestidade intelectual é uma forma de corromper a verdade. É feia. E, evidentemente, afronta, agasta e faz mal. E, no entanto, não é tanto porque vivemos muito depressa que as coisas se entaramelam e não nos fazemos entender. Sempre que nos refugiamos no narcisismo vivemos falando para o espelho. O que faz com que os outros, rapidamente, se sintam a falar com uma parede. Não são capazes de falar verdade, não somos capazes de assumir os nossos erros? O melhor que conseguimos é reconhecer “problemas de comunicação”. Somos, portanto, mais feios, piores pessoas e mais mentirosos do que era suposto que fôssemos. E, sendo assim, somos mais burros, ainda. Ora, sendo tão inacreditavelmente competentes para pensar porque é que insistimos em ser pouco humildes e tão vaidosos a ponto de sermos tão teimosamente desconhecidos de nós próprios?