Meu caro António Costa

Escrevo-te na dupla qualidade de militante n.º 54161 do PS, com as quotas em dia, e de responsável de uma instituição privada do ensino superior e membro da direção da Associação Portuguesa do Ensino Superior Privado (APESP) e do seu Conselho Consultivo.

Podia enviar este e-mail para o teu Chefe de Gabinete, mas não era a mesma coisa, por isso resolvi dar-lhe publicidade, não para procurar protagonismo, mas porque o assunto é importante e foste tu que te puseste a jeito, como diz o nosso Povo, que te deu a maioria absoluta.

Para enquadrarmos o assunto, convém recordar que quando decidiste, e bem, disputar a liderança ao António José Seguro, eu fui dos que estive na primeira linha, modestamente, a apoiar-te, não por menos consideração pelo AJS, mas porque entendi que tinhas mais carisma e capacidade de liderança para levares o Partido Socialista a liderar os destinos do país.

“O poucochinho” acabou por dar lugar a uma maioria absoluta, embora com a Geringonça pelo meio, que nunca apoiei, por entender ser uma solução espúria, mas que tenho de reconhecer ter sido um meio necessário para chegarmos onde o PS está neste momento.

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Aqui chegados, esperamos todos que deixes de ser um líder partidário a tentar legitimar-se eleitoralmente e passes a atuar como um estadista. Na minha opinião és, sem sombra de dúvida, o melhor líder político da chamada esquerda depois de Mário Soares, o fundador da República Abrilista.

E começa aqui o problema que me leva escrever-te esta carta pública. Disseste que querias ouvir a Sociedade Civil antes de formares o novo governo. Bom, não sei o que é para ti a Sociedade Civil, mas julgo ser a parte da sociedade portuguesa que não vive do Estado ou à sua sombra. Como sabes, um dos problemas estruturais mais graves que temos no país é o excessivo peso do Estado que sufoca a sociedade. Por isso, muita gente se encheu de esperança quando tal foi anunciado. “É agora, liberto da Geringonça, que António Costa vai desenvolver políticas menos estatistas e que correspondam ao tempo presente em que os velhos cânones do estatismo deixam de ter lugar”.

Surpreendentemente, convocas o CRUP (Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas) e o CSSISP (Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos) e não convocaste a APESP (Associação Portuguesa do Ensino Superior Privado). Ainda se admitiu, com bondade e não ingenuidade, que houvesse um lapso do teu gabinete, mas a resposta pronta foi que “não se podia ouvir toda a gente”, o que é enigmático pois em São Bento deve haver mais do que duas cadeiras e é sabido que o CCISP não representa todos os Politécnicos.

Não acredito que tenhas sido tu a tratar deste assunto, mas um qualquer manga de alpaca de serviço, que ainda considera que socialismo e iniciativa privada são incompatíveis e, sob influência do vírus Govgeringonça, resolveu estabelecer uma cerca sanitária relativamente ao ensino superior privado.

Meu querido camarada, o ensino superior privado corresponde a cerca de 20% do ensino superior, tem cerca de 80 mil estudantes, 10 mil dos quais internacionais, 8 mil docentes, 4 mil funcionários, mil ciclos de estudo. O setor corresponde a um coletivo de cerca de um milhão de pessoas que pagam impostos e votam. Cerca de 10% da população portuguesa está ligada ao ensino superior privado; e não falamos dos outros níveis de ensino que na governação anterior foram objeto de uma tentativa de extermínio.

Querer ouvir a Sociedade Civil e deixar de fora os representantes de 10% dos/as portugueses/as, os que vivem exclusivamente das propinas dos estudantes, cujas famílias pagam impostos como todos/as os/as portugueses/as e ainda têm de financiar o ensino estatal através dos impostos, é um feito inacreditável e apenas ao alcance de quem vive ou finge viver noutra galáxia.

Como és um homem inteligente e politicamente assertivo, por isso conseguiste inaugurar uma nova era na política portuguesa, não governa quem ganha, mas quem consegue maioria parlamentar, e agora a maioria absoluta, dou de barato que estavas distraído ou mal aconselhado e que vais, rapidamente, reparar o lapso.

E convém ter presente, para memória futura, que um qualquer ministério não se destina a governar os serviços dos Estado, mas os do país na sua diversidade complexa; é que estamos habituados a que os ministérios e os serviços públicos se julguem dotados de um mandato leonino para beneficiarem tudo o que é Estado, esquecendo-se de que este existe para o serviço da sociedade e não para se servir a si próprio.

Caro camarada, todos reconhecemos as tuas qualidades, mas convém que não se menosprezem setores fundamentais. O ensino superior privado tem um papel insubstituível no ordenamento académico do país e não é justo nem politicamente aceitável que o setor seja discriminado. O ESP quer ser parte da solução e é óbvio que a cooperação é preferível à omissão. O futuro do país exige convergência de esforços e tu deves ser o primeiro a promoveres o entendimento e a não deixares cadeiras vazias.

Com estima e consideração.
José Manuel Silva