Os grandes conflitos estiveram sempre na origem das grandes mudanças, não só na repartição territorial e na hierarquia dos Estados mas também nos valores e princípios inspiradores e legitimadores da ordem internacional.
Foi da Guerra dos 30 Anos que nasceu a ordem consagrada pelos Tratados de Vesfália, com a secularização dos poderes estatais e das razões da paz e da guerra. Adoptaram-se então regras comuns na relação entre as potências do Jus Publicum Europaeum que as diplomacias do século XVIII passaram a seguir. Das guerras da Revolução e do Império nasceu a ordem do constitucionalismo liberal, que depois de uma temporária restauração dos valores do Ancien Régime, dominou os Estados europeus e se estendeu aos novos Estados independentes do continente americano.
O mundo dos finais do século XIX era um mundo eurocêntrico de monarquias constitucionais, umas mais conservadoras, outras mais liberais – com as excepções das repúblicas francesa e suíça. À margem do sistema liberal, embora não ostracizada, ficava a Rússia czarista, que se olhava como um baluarte do cristianismo e da tradição e mantinha, nas suas classes dirigentes, um duelo surdo entre eslavófilos e europeizantes. A guerra da Crimeia, em que a Rússia enfrentou o Império Otomano, aliado dos franceses e dos ingleses, foi amargamente vista por Dostoievsky como uma traição das nações do Ocidente à Cristandade. A derrota na guerra e a morte do czar conservador Nicolau I levaram ao poder Alexandre II, que libertou os servos e procedeu a reformas liberalizantes. Mas o czar reformista foi assassinado à bomba em 13 de Março de 1881 pelos populistas do Narodnaïa Volia.
Os Estados europeus do final do século XIX agiam segundo as regras da Realpolitik, afirmando claramente, e às vezes arrogantemente, os seus interesses nacionais e os desígnios imperiais que os levavam à partilha de outros continentes – onde, entretanto, se esboçavam as primeiras reacções ao imperialismo.
As guerras do século XX
A guerra de 1914-1918 veio acabar com essa ordem. Os impérios centrais – alemão, austro-húngaro e otomano – saíram destruídos da Grande Guerra e nos seus territórios surgiram uma multiplicidade de nações: umas, na Europa, tornaram-se independentes; outras, no Médio Oriente e em África, passaram a outras tutelas e subordinações. Mas o resultado mais importante do conflito foi a Revolução Soviética de 1917, com o triunfo, num grande Estado da Eurásia, de uma ideologia política revolucionária, messiânica e internacionalista, com ambições de exportar a sua verdade e o seu modelo de sociedade a todo o globo.
As ideias, as ideologias, os movimentos e os regimes são reactivos, e a relação amigo-inimigo é o motor mais forte e dinâmico da razão política, que reage na razão directa do perigo. Assim, o medo do comunismo levou a soluções radicais de estado de excepção, com o apoio das nascentes classes médias. Nestas reacções anti-comunistas, além de movimentos populares totalitários, como o fascismo, que triunfou em Itália em Outubro de 22, contam-se, sobretudo, soluções nacionais-autoritárias, geralmente patrocinadas pelos exércitos, como a ditadura de Primo de Rivera, em Espanha, o Estado Novo em Portugal e uma série de movimentos semelhantes na Europa Oriental e nos Balcãs.
Entre as duas guerras, estas soluções propagaram-se pelo mundo não-europeu, num clima reforçado pela grande crise do capitalismo euro-americano que levou ao poder, por via democrática e eleitoral, o Partido Nacional-Socialista de Adolfo Hitler. Hitler reclamava um destino messiânico para o povo alemão e pretendia rasgar o Tratado de Versalhes.
Desta conjuntura veio a Segunda Guerra Mundial e, com ela, o fim do mundo eurocêntrico e a passagem do grande poder político-militar para uma potência da Eurásia – a União Soviética – e outra da América – os Estados Unidos. A Europa e o globo ficaram divididos por critérios e padrões ideológicos, que, teoricamente, opunham um mundo livre, democrático e liberal, a um mundo comunista e totalitário. Só que, do lado do “mundo livre”, estavam muitos poderes não-liberais, já que a divisão amigo-inimigo se fazia com base no anticomunismo.
O desfecho final da Guerra Fria, em 1989-1991, ficou a dever-se ao isolamento progressivo da URSS, conseguido pela Administração Reagan nos anos que precederam a queda final de Moscovo com a aliança de duas potências não-liberias: a monarquia absoluta e religiosa saudita e a China comunista. A Arábia Saudita ajudou Washington a degradar economicamente a União Soviética, fazendo baixar os preços do petróleo com aumentos de produção; e a abertura de Nixon e Kissinger à China de Mao, a partir dos anos 70, levou a que o comunismo de Pequim se juntasse ao capitalismo liberal de Washington para combater o inimigo comum.
Assim, a vitória final do Ocidente na Guerra Fria teve como elemento determinante a inclusão na aliança anti-soviética de Estados autocráticos. Henry Kissinger lembrá-lo-ia várias vezes, voltando recentemente a fazê-lo para criticar a pretensão da Administração Biden de fazer do confronto com a Rússia uma luta entre democracias e autocracias.
No pós-Guerra Fria houve alguma euforia interpretativa entre os vencedores, com a tentativa, teorizada por Fukuyama e impulsionada pelos neoconservadores, de estender a todo o globo o modelo liberal democrático anglo-saxónico de pluralismo partidário competitivo e de economia de mercado. Nos últimos 30 anos, os factos desmentiram a teoria e negaram a prática – com o terrorismo jihadista dos princípios do século XXI, a afirmação de tendências nacionais autocráticas em potências regionais, como a Rússia e a Turquia, e a coexistência do capitalismo com uma direcção política central comunista, na República Popular da China.
Transição
Mas se a ordem global das democracias liberais inaugurada no fim da Guerra Fria estava já posta em causa em importantes partes do mundo antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, foi a invasão que a veio definitivamente desafiar. Os europeus tinham-se habituado a assistir, com o olhar complacente e eurocêntrico dos “civilizados”, a conflitos semelhantes no resto do mundo; mas no dia 24 de Fevereiro, o direito de guerra e de paz, estabelecido pela Carta das Nações Unidas e condenatório da guerra de agressão era, pela primeira vez, violado dentro de fronteiras europeias.
A guerra na Europa Oriental veio, assim, desferir um golpe sério à ordem liberal e a uma globalização já ferida pela pandemia. Moscovo rasgou um protocolo sobre a guerra e a paz que parecia intocável, embora várias vezes tivesse sido violado noutros continentes (considerados, para o efeito, “periféricos”).
Que ordem sairá deste conflito e dos seus resultados? Não deixando de condenar a invasão russa, que trouxe a guerra de volta à Europa e a desgraça a milhões de ucranianos, não podemos ignorar as culpas do Ocidente – dos Estados Unidos e da Europa – na condução da resposta.
Além da imprudente declaração de Biden de que os Estados Unidos nunca entrariam em guerra com a Rússia, passível de ser interpretada por Putin como um subtil convite à invasão, ignorou-se levianamente todo um dossier de avisos cautelares, de George Kennan a Henry Kissinger, sobre a susceptibilidade securitária de Moscovo e de uma Rússia tantas vezes invadida e devastada por mongóis, polacos, suecos, franceses e alemães.
A política euroamericana de resposta à invasão tem também sido prolífera noutros erros. Até agora, as sanções contribuíram essencialmente para encher os cofres da Rússia e estimular a unidade pela negativa de países com valores tão diferentes como a China, a Índia, a Turquia, o Brasil e o México. A Rússia passou a vender por um preço mais alto o seu petróleo e o seu gás, com Putin a dar-se luxo de cortar o fornecimento aos sancionadores; e entre os Estados que se recusaram a alinhar com as políticas euro-americanas de segregação e punição de Moscovo contam-se mais de metade dos Estados da União Africana, a China, a Índia e parte substancial dos países da América Latina e da Ásia.
Os 7 no castelo de Elmau e a NATO em Madrid
No Castelo de Elmau, na Baviera, os sete mais ricos parecem ter chegado a acordo quanto ao controlo dos preços do petróleo para travar os ganhos russos e a inflação, deixando a cada Estado o estudo da forma técnica de o conseguir. A limitação dos preços (“price caps”), sobretudo sobre a comida e a energia, foi usada com sucesso na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, porém, o sistema não tem funcionado fora desse contexto e traz inconvenientes: o aumento da burocracia de controlo; a alocação “política” (logo, menos eficaz) dos recursos; a permeabilidade ao lobby e à influência; a supressão meramente temporária da inflação, que sempre reaparece em força quando os controlos são levantados. Uma outra sugestão, também americana, de pressão sobre as seguradoras dos tankers russos que transportam o petróleo, tinha já sido afastada por inoperacionalidade.
Também a reunião da NATO, em Madrid, esteve dominada pelo conflito russo-ucraniano, com os representantes dos países da Aliança Atlântica a reafirmarem o seu apoio à Ucrânia. A Rússia ocupa agora o primeiro lugar no pódio dos inimigos da organização, destronando o Terrorismo e a República Popular da China. A grande notícia foi o anúncio da Turquia, na terça-feira, de aceder à inclusão da Suécia e da Finlândia na Aliança Atlântica, caso Estocolmo e Helsínquia atendam aos seus pedidos de deportação e extradição de suspeitos de terrorismo. A Turquia assume, mais uma vez, um papel de charneira e os curdos pagam, mais uma vez, os custos pela reconciliação ocidental.
O comunicado final da “nova” NATO, além de reafirmar a determinação e o reforço da capacidade militar defensiva da organização, não esquece os desafios ambientais e a inclusão de género – tornados itens de preenchimento obrigatório nos comunicados e declarações.
O Ocidente e “os outros”
Se olharmos ao número e à geografia dos Estados alinhados contra Moscovo e dos que se mantêm neutros, deparamos com o que poderá configurar-se como uma segunda edição de The West against The Rest.
Assim, será bom que a ordem internacional a nascer deste conflito tenha uma preocupação realista de consideração e respeito pelos interesses de cada Estado e pelo equilíbrio de todos, dispensando proclamações ideológicas e maniqueísmos institucionais.
Esta disparidade entre “the West” e “the Rest” não surpreende e parece acompanhar uma tendência que se observa desde o começo do século: a avaliar pelos relatórios da Freedom House, a política de expansionismo democrático teve efeitos perversos, já que, actualmente, apenas 20% da população mundial vive em países livres (com 42% a viver em Estados híbridos e 38% sob regimes autoritários ou totalitários). E se se fala muito de “democracia iliberal” em relação à Hungria e à Polónia, ficam na sombra os populismos de esquerda em grandes países das Américas – México, Argentina, Chile e agora a Colômbia; países onde se vêm afirmando regimes de esquerda, cujo constitucionalismo liberal deixa muito a desejar. Não falando já da Venezuela e de Cuba; ou dos movimentos de policiamento e cancelamento cultural do tipo Woke, a operar em força no Ocidente pela lavagem cerebral, empenhando vastos recursos financeiros em delirantes campanhas de alfabetização em Newspeak, com a franca distribuição de fobias e de outras patologias a quem não jure bandeira ou não se inscreva na mocidade activista.
Quando uma ordem ideológica e geopolítica é posta em causa e não lhe sobreveio ainda outra, entra-se num período de interregno, como o que agora vivemos. Resta-nos esperar que o realismo e a força das coisas contenham euforias e histerias – é que, tanto na guerra cultural como na guerra real, uma escalada pode pôr em causa a própria viabilidade da civilização e da espécie.