Corresse tudo como esperado, e esta semana teria havido acordo sobre o resgate a pagar durante os doze meses do ano que se avizinha. Se, como muito boa gente parece crer, “os impostos são o preço da civilização”, isso parece não só implicar que vivemos sob ameaça implícita de caos barbárico, mas também que anda por aí uma máfia (governo?) que, para não soltar esse caos à nossa porta, exige o pagamento de um salvo-conduto.

Obviamente, quanto mais medo tivermos do que poderia acontecer se deixássemos de pagar esse resgate, maiores quantias estaremos dispostos a pagar para que nos deixem em paz (pelo menos até ao próximo atestar de depósito), e mais esses empreendedores da civilização por sequestro se sentirão seguros em subir a fasquia do resgate exigido.

Por outras palavras, se os impostos são o preço da nossa civilização, isso é sinal de que alguém conseguiu, de facto e com êxito, “reclamar para si o monopólio da violência física legítima” neste nosso território. Esse alguém, ou conjunto de alguéns, chama-se Estado (é o insuspeito Max Weber quem o afirma, logo no início do seu Política como vocação).

Curiosamente, ou talvez não, a forma como este nosso Estado moderno legitima o seu “monopólio da violência física” é precisamente dizendo-nos que tal sequestro é feito em nosso nome (“O Estado somos nós.”) e para nosso bem (“Foi o SNS que nos salvou.”). Mas o sequestro mantém-se – e nisso, os libertários, mais além de venerarem Bastiat (“O Estado é a grande ficção pela qual todos tentam viver à custa uns dos outros”), acabam também por concordar com Engels: “o Estado não é outra coisa senão uma máquina para a opressão de uma classe por uma outra e, de facto, na república democrática não menos do que na monarquia.”

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Aquilo em que não concordam é na constituição das classes. A luta de classes libertária não é aquela que Marx trouxe ao mundo (apesar de o 3.º volume do seu Capital terminar precisamente quando, enfim, nos ia explicar “o que constitui uma classe”…). Para os libertários, enquanto este argumento “sequestracional” for o fundamento do governo, a luta de classes será sempre entre os governantes e os governados (leia-se Dunoyer, Comte e Thierry, ou Calhoun), isto é, entre quem vive do resgate e quem o paga.

Como já foi notado há vários séculos (leia-se La Boétie ou David Hume), os governantes, sendo uma minoria, seriam facilmente colocados em desvantagem num confronto direto. Os governantes precisam de fazer o cidadão acreditar que constituem o único baluarte que impede os seus vizinhos de pegar fogo à sua casa ou o céu de lhe cair em cima da cabeça; o único baluarte que impede o “estado de natureza” hobbesiano de engolir a rotina do dia a dia. Para o conseguir, a maneira mais eficaz é criar uma cada vez maior camada da população para quem o ganha-pão depende, pelo menos num curto-prazo, da manutenção deste sequestro civilizacional – seja por fazer parte dos exércitos literais ou figurativos (administrativos, funcionais, académicos) do Estado, seja por fazer parte dos seus exércitos pensionistas ou de reserva, seja por ter familiares próximos que a eles pertençam, ou seja por, sei lá, beneficiar de transportes públicos ou de habitação subsidiada pelo Minotauro. Essa camada da população vai constituir a classe cujos interesses e “garantias” asseguram a manutenção da minoria governante, ao exacerbar a síndrome de Estocolmo de que padece a classe oposta: a que paga o resgate.

Se, enquanto isso, se puder centralizar o Poder e minar a autonomia de todas as fortificações independentes que se poderiam opor à expansão do Minotauro, tanto melhor (leia-se de Jouvenel!). Isto foi precisamente o que fez o maquiavélico Otto von Bismark, tão ingénua e tolamente elogiado hoje em dia; ou, em menor escala, para citar dois exemplos nacionais, Sócrates e Passos Coelho, no caso das pensões dos bancários (estes constituem exemplo paradigmático, também porque, apesar da abismal diferença de valores que os separa, acabaram ambos por fazer cumprir o fado sequestrador do nosso Estado – é a dialética, estúpido!)

Ainda assim, é interessante – e importante! – notar que a generalidade dos liberais na tradição clássica não corrobora esta perspetiva pessimista e cínica da natureza do Estado. Mises, que confidenciou com Weber em Viena durante alguns meses em 1919, chega ao ponto de afirmar, na sua última obra, que o governo é “a instituição mais necessária e benéfica” da vida em sociedade. Para os liberais clássicos como Mises, “se todos os homens fossem capazes de perceber que a alternativa à cooperação social pacífica é a renúncia a tudo o que distingue o homo sapiens das bestas de rapina, e se todos tivessem sempre a força moral para agir em conformidade, não haveria qualquer necessidade de estabelecer um aparelho social de coerção e opressão.” Para estes autores, nem sequer é correto dizer-se que o Estado constitui um “mal necessário”, pois a seu ver o mal não está no Estado mas sim na imperfeição dos seres humanos (Locke, trezentos anos antes, dizia essencialmente a mesma coisa).

Assim, medidos ambos os argumentos, talvez o mais sensato até seja seguir o nosso estimado professor José Manuel Moreira e estabelecer que os impostos são, na verdade, “o preço que somos obrigados a pagar pelo insucesso da civilização”, definição que no fundo também se coaduna com o ideal libertário spenceriano, visto dela retirarmos que “um Estado totalitário de planificação centralizada representa o fracasso da civilização, enquanto uma sociedade totalmente voluntária seria expressão do seu êxito.”

Note-se a dicotomia de sentidos que emerge destes dois “preços” alternativos. Se os impostos constituem “o preço da civilização”, isso implica não só o tal sequestro civilizacional, como veem os libertários, mas também o berço da engenharia social, como veem os sociais-progressistas, que consideram competir ao Estado o impulsionar do avanço da civilização. Já se, por outro lado, os impostos constituírem “o preço da descivilização”, isso deixa bem claro que o fardo está do lado do indivíduo de promover (e implementar) um conjunto de instituições e regras morais que, a pouco e pouco, cumpram o desígnio civilizacional do Homem e deixem para trás os vestígios descivilizacionais do Estado, da “máquina para a opressão de uma classe por uma outra” (algo que os comunistas do tempo de Marx supostamente também gostariam de alcançar, mas através de meios completamente contraproducentes…).

Para além disso, o economista em mim não resiste também a notar que, se os impostos são “o preço da civilização”, então o que se verifica é que esse “bem” – a civilização, a paz social – é provavelmente o único cujo preço continua em escalada desde o tempo dos reis, independentemente da política monetária seguida pelo banco central (o que, dando razão aos libertários, não abona nada a favor da gestão governamental deste “bem público”…). Já se os impostos forem vistos como “o preço do insucesso da civilização”, as razões da nossa atual carga fiscal ficam bem patentes…

Mas quem é, afinal, esta curiosa criação humana a quem passivamente permitimos que faça o que a nós ela nos proíbe de fazer? [Exemplos flagrantes: 6 de outubro, começa julgamento por suposta formação de cartel entre privados; 8 de outubro, celebra-se e promove-se acordo de formação de cartel entre Estados. Se o leitor quiser um exemplo ainda mais próximo do seu bolso, consulte a sua folha salarial e contemple a contribuição mensal para o Ponzi estatal.] Seja qual for a definição predileta do leitor, acredito que o chumbo do presente Orçamento em nada invalida (e até torna mais premente) a necessidade de uma Quaresma Orçamental, na qual reflitamos com honestidade sobre a essência do Estado e dos impostos.

Por fim, como creio ter deixado claro nos parágrafos precedentes, este texto nem tem de – nem deve – ser visto como uma ode a uma anarquia libertária. Eu vivo manifestamente bem com a visão dos liberais clássicos, desde que sejam sempre tidas em conta e denunciadas as perversas e incontornáveis tendências que este glutão estatal tem para se expandir, para criar dependências e para minar os costumes e instituições que resistem aos seus fitos – mesmo que tais costumes e instituições nem sempre sejam totalmente liberais. Nisto, há que admitir e alertar, o liberalismo de tendência individualista e racionalista, denunciado por de Jouvenel mas do qual obviamente não posso nem quero afirmar-me isento, acabou e acaba muitas vezes por servir de porteiro à gula estatal – é a dialética, estúpido!

Estejamos, portanto, alerta, não deixando que a libertação do indivíduo dos grilhões locais e setoriais tenha como preço a sua ainda mais sufocante submissão aos grilhões estatais.