Nos últimos anos, os chamados “esquemas em pirâmide” ou “esquemas Ponzi” têm vindo a merecer um maior interesse tanto do público português como também dos nossos órgãos de comunicação social. A popularidade do fenómeno, especulo, tem variadas causas: por um lado, a “eutanásia do rentista”, recomendada por Keynes (1936), administrada pelos bancos centrais e agradecida pelos governos despesistas, priva a generalidade dos cidadãos da possibilidade de obter um juro decente pelas suas poupanças (ou seja, proletariza-os à força, chutando depois a culpa para o fantasma do capitalismo neoliberal); por outro lado, a nossa fraca literacia financeira torna os portugueses alvos apetecíveis deste tipo de esquemas: numa sociedade em que a maior parte dos cidadãos vê nas apostas online e na epidemia das raspadinhas a coisa mais parecida com um rendimento financeiro que consegue obter, é normal que os esquemas em pirâmide pareçam o negócio do século (quando na verdade, há quase 250 anos, já Adam Smith se espantava com a ignorância de quem não percebia que as lotarias estavam feitas para as pessoas em geral perderem dinheiro – vide Riqueza das Nações, (p. 245), “O mundo nunca viu, e nunca verá, uma lotaria perfeitamente equitativa”). Se a isto juntarmos a emergência de fenómenos ainda misteriosos como as criptomoedas e a massificação e “democratização” tanto das plataformas de trading como das stories do Instagram, temos o ambiente perfeito para a proliferação do engodo.

Em 2015, já o Banco de Portugal alertava que lhe estavam a chegar ao conhecimento “diversas situações enquadráveis nos denominados ‘esquemas de pirâmide financeira’”, sendo que uma breve pesquisa rapidamente nos leva ao encontro de esquemas deste tipo com os mais diversos contornos: pirâmides de livros, militares da GNR, funcionários judiciais e polícias burlados ou, um pouco mais razoável, adolescentes sem grande paciência para estudar. Ao que parece, a tipologia mais comum nos tempos que correm está relacionada com a prática do chamado multi-level marketing (“marketing multi-nível”) ou network marketing (“marketing em rede”), que por si não é necessariamente ilegal, mas cuja lógica é extremamente propícia a que represente meramente um esquema em pirâmide.

Em que consiste então um esquema em pirâmide? Há umas semanas atrás, a SIC passou uma reportagem sobre o assunto, onde explica que este é “um esquema em que um investidor avança com dinheiro com a promessa de altos juros e convence outros a entrar no sistema. Os juros vão sendo pagos, mas não correspondem a nenhuma rentabilidade. O dinheiro vem da entrada de mais pessoas, que acabam por ir entregando mais dinheiro. Para continuar a assegurar o pagamento dos juros, o esquema precisa de crescer com o dinheiro de mais gente. Mas quanto mais a bolha cresce, mais insustentável se torna. Quando o esquema rebenta, habitualmente o burlão foge com o dinheiro ou é apanhado” (minuto 15).

Na reportagem, o esquema é introduzido com a denominação “Ponzi”, pela qual é mais conhecido na gíria financeira, em homenagem (?) a um famoso burlão norte-americano da inevitável década de 1920. Em Portugal, contudo, há quem associe este esquema à Sra. Dona Branca, a famosa “banqueira do povo” dos anos 80. Mas tal associação é, na verdade, algo injusta, como explica Pedro Arroja no seu livro Cataláxia (pp. 271-274), pois o crime da Dona Branca foi simplesmente… imitar um banco – conquistou a confiança das pessoas, recebia depósitos em troca de um juro e emprestava esses montantes em troca de um juro mais alto. Ao contrário do de Ponzi, o negócio era em teoria tão sustentável como o de um banco normal; mas as suspeitas semeadas na opinião pública (o que vem a ser isto!? concorrência livre no setor bancário!? afronta!) levaram ao seu colapso, assim como teriam levado ao da maior parte dos outros bancos. E a nós levar-nos-ia a uma muito interessante conversa sobre a natureza e legitimidade do setor bancário (a qual, note-se, não desejo aqui colocar em causa), mas essa terá de ficar para outro dia. Ainda assim, não deixa de ser irónico que o Banco de Portugal, no mencionado alerta, depois de concordar que “a sustentabilidade de tais esquemas [em pirâmide] só é assegurada se e enquanto a entrada de novos membros for superior ao número de participantes dentro da pirâmide” e que “o seu colapso é inevitável logo que esta condição se deixe de verificar”, indique (quanto a mim, algo surpreendentemente) que “este tipo de atividade comporta um segmento de natureza financeira, configurando a atividade de receção de depósitos ou de outros fundos reembolsáveis”, cujo exercício não autorizado “faz incorrer os seus autores em responsabilidade criminal e contraordenacional”.

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Para já, e sem prejuízo da irónica sanção notificada pelo Banco de Portugal por alegada atividade bancária não autorizada, saiba o leitor que os esquemas em pirâmide são punidos na sua essência enquanto “práticas comerciais enganosas”, por força da alínea r) do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 57/2008 (versão consolidada), que classifica como tal a atividade de “criar, explorar ou promover um sistema de promoção em pirâmide em que o consumidor dá a sua própria contribuição em troca da possibilidade de receber uma contrapartida que decorra essencialmente da entrada de outros consumidores no sistema e não da venda ou do consumo de produtos”. E, para que não se diga que eu insinuei que o regulador bancário despreza tal contraordenação, saiba também o leitor que pode encontrar (e que eu encontrei) o referido normativo no sítio do Banco de Portugal.

Onde quero eu chegar com tudo isto? Já vão perceber.

É que é impossível deixar de notar o “elefante na sala” quando procedemos à leitura da lei e dos alertas do Banco de Portugal ou à visualização da mencionada reportagem da SIC acerca dos recentes esquemas em pirâmide. Toda esta história faz-nos lembrar a resposta que já no séc. V, na sua Cidade de Deus (p. 383), Agostinho de Hipona colocou na boca de um pirata a quem Alexandre Magno perguntou o que lhe parecia toda aquela pirataria com que infestava os mares. Respondeu o pirata: «O mesmo que a ti parece isso de infestar todo o mundo; mas a mim, porque o faço com um pequeno navio, chamam-me ladrão; e a ti, porque o fazes com uma grande armada, chamam-te imperador».

Será que se percebe já ao que me refiro? À pirâmide da Segurança Social, pois claro! De facto, o mais ajuizado conselho que se pode oferecer a quem tenha ideia de montar ou esteja já a implementar um esquema em pirâmide, a melhor receita para aumentar longevidade do seu esquema e diminuir a probabilidade de ir parar à cadeia, é simplesmente… declarar-se um Estado Social!

Todo o esque… sistema público de pensões funciona em pirâmide: quem pagou aos reformados de ontem? Os reformados de hoje (trabalhadores de ontem). Quem paga aos reformados de hoje? Os reformados de amanhã (trabalhadores de hoje). Quem paga aos reformados de amanhã? Não interessa.

Quem ganha mais com o esquema? Quem primeiro entrou no esquema (ainda se lembram daquela distante época em que o valor das pensões era calculado com base nos “10 melhores anos dos últimos 15 anos de descontos”?) e todos os funcionários que dele se ocupam. Quem sai mais prejudicado? Como em todos os Ponzi, saem mais prejudicados os últimos a entrar – os que adiantaram o dinheiro aos da ronda anterior, mas que, quando chega a sua vez, ficam a chuchar no dedo, sujeitos a um “fator de sustentabilidade” e a impostos mais altos para pagar a dívida pública que representa 69% do ativo do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) – i.e. o Estado tira dinheiro do bolso chamado Segurança Social para gastar no bolso chamado despesa corrente, deixando no primeiro um papelinho a dizer que o segundo lhe fica a dever (metáfora roubada ao Ricardo Campelo de Magalhães); e querem-nos a nós fazer acreditar que isto é um “investimento”, um fundo de “estabilização”, como se quem paga a TSU não fosse a mesma pessoa que paga o IRS, e como se já não soubéssemos que o contribuinte é sempre o “estabilizador” de serviço…

A coisa só funcionou tanto tempo, e parece continuar a funcionar, porque o Estado, tal como Alexandre Magno, tem algo que os pequenos burlões não têm: não, não é vergonha ou sentido de responsabilidade geracional; é um exército, uma polícia, o poder de fazer leis e uma legião de crentes que tem apregoado o seu esquema milagroso durante décadas (bem, se calhar esta última alguns burlões também a têm, mas em menor escala). Se me derem um exército e uma polícia para obrigar novos “contribuintes” a juntarem-se à minha pirâmide, eu também consigo fazer um milagre financeiro e social – ou pelo menos fingir que o faço, pois o que toda esta gente se esquece, ou finge esquecer, é que… a pirâmide inverte! Como José Diogo Quintela já brilhantemente explicava em 2012, “em 1982, por cada reformado descontavam quatro contribuintes. Hoje é só um.” Quando as pessoas percebem que já não precisam de investir em filhos (que trabalheira!) nem em ativos financeiros (que capitalismo!) para alcançarem estabilidade financeira a longo prazo, o mais natural é começarem a chutar para os (filhos dos) vizinhos a enfadonha tarefa de pagar a reforma que acham que merecem. Mas se todos fizerem isso… este Ponzi terá o mesmo fim que todos os outros: a falência.

Apesar de a polícia nos poder visitar se andarmos a esconder dinheiro ao Ponzi democrático, ela (ainda) não o pode fazer por não estarmos a entrar com escravos suficientes para a pirâmide da natalidade. E daí vem o desígnio nacional de fazer bebés, de arranjar mais almas para a Matrix Socialista chupar, de tentar sustentar um Ponzi que a própria lei diz que é enganoso. Antes isso do que enfrentar a realidade e implementar um regime de capitalização, valha-nos Deus (ou São Vieira da Silva)!

Tudo isto é, na verdade, mais uma consequência não intencionada da tentação keynesiana que profetiza às massas que “no longo prazo, já estaremos todos mortos”. Ora, os da minha geração chegaram mesmo a tempo de levar com o “longo prazo” que os “pais do Estado Social” lhes deixaram. Há quem acredite que a coisa se endireita com imigração… A mim, com 26 anos, já me custa acreditar. Preferia que, em vez disso, ganhássemos coragem de falar de Ponzi como gente adulta. Que parássemos com a hipocrisia institucional.