Vivemos uma década extraordinária em que se fazem sentir os principais efeitos das grandes transições, a saber, os eventos climáticos extremos, os problemas com a transição para uma nova matriz energética, o combate pela preservação da biodiversidade e serviços de ecossistema, os problemas com o crescimento dos fluxos migratórios, a transformação digital e a inteligência artificial e os seus impactos nos mercados de trabalho, as pandemias e os novos problemas de saúde pública, entre outros.

No plano geopolítico e geoeconómico, o espaço da União Europeia é especialmente visado. Em primeiro lugar, o receio de uma guerra longa na Ucrânia pode estar, ainda, associado ao colapso do regime político da federação russa com consequências que são, neste momento, absolutamente imprevisíveis. Em segundo lugar, as ambiguidades e as hesitações relativas aos futuros alargamentos, seja os países dos Balcãs ocidentais ou o trio Ucrânia-Moldávia-Geórgia, têm consequências que não é possível prever neste momento. Em terceiro lugar, é impossível subestimar o facto de que a fronteira leste e sul da União Europeia está rodeada de estados falhados que se transformam em focos permanentes de guerras intestinas e tráfico de seres humanos cujo destino é quase sempre a União Europeia. Em quarto lugar, a crise profunda no sistema multilateral da ONU e a emergência de um mundo multipolar em formação deixa as instituições de relações internacionais nascidas no pós-guerra muito desprotegidas e à beira do colapso. Em quinto lugar, esta turbulência no sistema de relações internacionais desencadeia novos alinhamentos entre estados, faz crescer o número de regimes populistas, iliberais e autocráticos e tem consequências diretas na governabilidade do sistema político da União Europeia.

No contexto acabado de descrever existem dois elementos analíticos de extrema importância que vale a pena observar. O primeiro desses elementos é a disponibilidade do instrumento prospetiva no plano da geoestratégia e da geopolítica no horizonte desta década 2030. O segundo elemento diz respeito ao modo como lidamos com os acasos do serendipismo, (do inglês serenpidity), que trata de interações fortuitas, incidentes imprevistos, impactos inusitados, descobertas acidentais, que acontecem em consequência da interdependência sistémica, a causalidade circular e a multiplicação de efeitos de retroalimentação de todas as grandes transições que referimos.

No primeiro caso, a prospetiva pode ser lida como uma teoria do tempo social na relação que a sociedade mantém com o futuro e de como este é antecipado, decidido e configurado. Conhecer o futuro é, também, uma teoria histórica conhecida que começa nos oráculos e profecias, passa pela superstição e bruxaria, pela planificação e previsão e vem desembocar nos métodos da prospetiva. A prospetiva hoje está algures entre a projeção do presente e a antecipação do futuro, entre o diagnóstico e o prognóstico. Todavia, perante uma contingência tão elevada e recorrente, a prospetiva deixa de ser o futuro como progresso e passa a ser o futuro como risco e probabilidade. Trata-se, portanto, para a prospetiva, de minimizar o risco sistémico e os seus efeitos colaterais, por um lado, e de alargar o campo das possibilidades, por outro. Ou seja, em vez de uma grande prospetiva para a configuração de um futuro melhor, temos hoje uma rotina burocrática e administrativa, uma micro prospetiva, se quisermos, uma modernização reflexiva no quadro de instituições e burocracias. Acresce que, nas condições atuais de extrema contingência, a decisão política torna-se modesta e muitas decisões políticas são, por isso, pouco relevantes. Vivemos, assim, o tempo da prospetiva incremental em face do risco sistémico e interdependente e seus efeitos colaterais e confrontados com a ingovernabilidade política e o radicalismo político-partidário.

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Quanto aos acasos do serendipismo as origens mais referidas são as alterações climáticas e os eventos climáticos extremos, mas podemos, igualmente, referir os impactos eletromagnéticos da constelação tecnológica 4G+5G, sobretudo quando todas as suas características principais estiverem alinhadas, a saber, hipervelocidade, baixa latência, alta conectividade, elevada densidade e intensidade, curto alcance. Se pensarmos, agora, no polígono digital que esta rede nos oferece – Big Data e computação na nuvem, (BDCC), Internet dos objetos (IOT), Inteligência artificial (IA), Realidade aumentada e virtual (RAV), Computação periférica (EC) – e na interação intensa entre estes e outros dispositivos tecnológicos e digitais, estamos cada vez mais próximos da chamada interdependência sistémica máxima e próximos de uma cadeia de acidentes e incidentes inusitados, imprevistos e fortuitos. Se a este risco de colisão acrescentarmos o efeito adição digital pelo uso abusivo destes dispositivos, então, tudo pode acontecer.

Nos dois casos, estamos obrigados a utilizar uma boa hermenêutica interpretativa para os diversos momentos da incerteza, do risco global e do acaso. Vejamos alguns aspetos desta hermenêutica interpretativa.

Em primeiro lugar, quando todos, pessoas, objetos e inteligência artificial, comunicarem entre si no grande polígono digital e cada um usando uma linguagem simbólica convertível, teremos atingido o paroxismo absoluto, uma espécie de histeria coletiva de informação e comunicação num ambiente totalmente saturado. Estaremos, cada vez mais, num campo desestruturado à beira do caos e é cada vez mais estreita a margem ou o limbo em que vivemos.

Em segundo lugar, viveremos, cada vez mais, em ambientes simulados e virtualizados e seremos, por isso, atores e personagens constantemente comprometidos e utilizando máscaras diversas conforme as circunstâncias e as conveniências.  Imagine-se, agora, o princípio da realidade a contas com a simulação dos objetos quando estes, por via da internet das coisas, começarem a ditar, também, a sua realidade. De facto, as tecnologias 5G tornam-se cada vez mais imersivas e, portanto, mais insidiosamente intrusivas e invasivas na esfera privada e particular de cada um de nós. O impacto pode ser enorme, de uma violência inusitada, e, no entanto, sem explicação aparente. No reino das máscaras tudo parece estar invertido e todos os acasos podem acontecer.

Em terceiro lugar, com os acasos do serendipismo, todos os efeitos externos do sistema capitalista surgirão agravados e, nesse sentido, o Estado tratará, mais uma vez, de mitigar esse risco sistémico através da socialização do prejuízo que o contribuinte pagará no tempo próprio. À boleia do risco sistémico crescerá, também, uma forte litigância e contencioso de responsabilidade que procurarão dirimir o que é responsabilidade própria e o que é responsabilidade alheia e/ou coletiva. Seja como for, às externalidades do capitalismo convencional somam-se, agora, as externalidades do Antropoceno e do capitalismo digital. Não sei se teremos Estado bastante e contribuinte que chegue para tanta socialização de prejuízos. Caberá à União Europeia, cada vez mais, a mutualização do risco global e dos acasos do serendipismo.

Em quarto lugar, na sociedade da informação e da comunicação a inteligência deixou de estar contida nos limites humanos originais. Deste ponto de vista, a realidade não para de aumentar todos os dias à medida que a inteligência se transfere para ambientes inteligentes que são extensões da nossa própria inteligência. Ao transitar para fora do seu habitat biológico o corpo humano instala-se em dispositivos tecnológicos transumanos e pós-humanos cuja configuração futura nem sequer imaginamos. E muito menos os acasos que nos esperam. Por outro lado, porque somos screeners muitas horas por dia, é impossível manter a atenção num ambiente saturado de notificações e avisos. Todos os dias mergulhamos num oceano de informação, experimentamos uma vertigem permanente para separar o essencial do acessório e lutamos com dificuldades para administrar a nossa economia da atenção. No final do dia estamos exaustos e, no dia seguinte, tudo recomeça. Nesta vertigem o foco da atenção converte-se num turbilhão, os incidentes e as interações fortuitas são inevitáveis.

Por último, nas sociedades de risco global e de muitos acasos inusitados, estamos obrigados a desenvolver treino específico e capacidades especiais para entender e antecipar como se forjam e desenvolvem as interações fortuitas, os incidentes imprevistos e, por via deles, as descobertas acidentais.  Este é o grande paradoxo da incerteza e um desafio para a prospetiva analítica. Quanto mais incerteza mais liberdade, uma vez que se alarga o campo das possibilidades e, também, o campo do episódio acidental. Por outro lado, os sinais dessas interações acidentais podem ser de tal modo fortuitas que dificilmente caberão no interior das nossas métricas conceptuais e instrumentais habituais.

Nota Final

Eis o vórtice em que estamos metidos. De um lado, eventos climáticos graves e recorrentes, do outro, ambientes simulados, virtuais e imersivos cada vez mais sofisticados e misteriosos. A esta luz, o nosso arsenal teórico e, em especial, o campo das ciências sociais e humanas, estão definitivamente postos em causa e a academia deve preparar-se para rever rapidamente o seu estatuto científico por mais eminente que ele seja. Neste ambiente saturado é impossível não acontecerem vários acidentes e incidentes, fortuitos, imprevistos e inusitados. Aqui chegados, estamos obrigados a multiplicar os ângulos de observação e as perspetivas de olhar para os problemas, o campo mais indicado para a hermenêutica interpretativa, em que, modestamente, as sociedades estão obrigadas a aprender constantemente. Esta é, ainda, a hora para a regulamentação e regulação da inteligência artificial na União Europeia, cuja decisão final foi tomada em abril. Precisamos urgentemente de manter os termos da equação e não trocar os fins pelos meios, ou seja, a estupidez humana pela estupidez artificial. Voltaremos ao assunto.