Há uns anos, numa conferência, ouvi da boca de Peter Thiel, um dos fundadores do Pay Pal, que a Internet era uma coisa tão inovadora e tão especial que nenhum livro de Ficção Científica a tinha imaginado.
Não era bem assim e contra-argumentei nesse sentido: no Tetroscópio de Mark Twain, de 1898, no Neuromancer de William Gibson, de 1984, ou no Earth de David Brin, de 1990, havia referências a coisas novas que podiam prefigurar a Internet. E até no Star Trek, os tripulantes falavam com computadores. Havia também outros vestígios, em utopias e, sobretudo, em distopias, com aparelhagens ou sistemas que podiam antecipar esta “maravilha fatal da nossa Idade”. No Nineteen Eighty-Four, de Orwell, o Big Brother, tinha uma espécie de rede de vigilância colectiva e anulava todos os paradoxos numa nova verdade absoluta através do New Speak, a linguagem correcta, ou corrigida, para servir o modelo de sociedade imposto; e no Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, além da queima dos livros, havia televisões com séries viciantes a que a mulher do bombeiro Guy Montag estava agarrada. O livro é de 1953 e o filme de François Truffaut, com Oskar Werner como Montag e Julie Christie como Clarisse (a mulher que o converte à boa causa de salvar os livros) é de 1966. Bradbury publicou Fahrenheit 451 no rescaldo do Macarthismo, mas estava preocupado com o que os mass media podiam fazer à cultura humanista do Ocidente, simbolizada pelos livros.
Mas talvez ainda mais próximo da realidade que vivemos está um conto de 1946, de Murray Leinster, chamado A Logic Named Joe; um conto em que as personagens têm em casa aparelhos a que chamam “Logic”, ligados a uma espécie de central tank que acumula conhecimento, e a que podem fazer perguntas. A acção desencadeia-se quando um “Logic”, cujo nome é Joe, ganha consciência e, na melhor das boas vontades e para ajudar os utilizadores, começa a enviar conteúdos sexuais às crianças e informação suplementar sobre os temas que, a partir das perguntas, depreende que interessem aos adultos perguntadores. E numa espécie de “também poderá gostar de” fornece, por exemplo, informação detalhada sobre “como envenenar a sua Mulher” e “como assassinar alguém e escapar”.
O processo aqui indiciado, que é um processo de radicalização e de exploração e exacerbação do que procuramos, do que “talvez possamos gostar” e do que nos pode prender ao écran do fornecedor – até ao mais sórdido, viciante e destrutivo de nós – não é alheio aos universos paralelos em que hoje vivemos, com os motores de busca, a partilha de conteúdos e as redes sociais.
O dilema das redes sociais
Em The Social Dilemma, um documentário da Netflix de 2020, um grupo de “insiders” da Big Tech explica-nos de dentro como o sistema funciona e de como, a partir de dados que os utilizadores lhes vão facultando – através de procuras, visualizações, “likes”, buscas, partilhas, compras – passam a conhecê-los, por vezes melhor do que se conhecem a si mesmos, e podem, a partir daí, manipulá-los.
Psicólogos, web designers, engenheiros, programadores, usam o mecanismo e maximizam os seus efeitos, criando algoritmos que se alimentam e aperfeiçoam com dados que os utilizadores lhes fornecem. Quantos mais, melhor. O objectivo é colar-nos ao écran para obter lucro (que vem das receitas da publicidade) e os meios incluem a exploração das fragilidades, não só de uma imensa massa de gente ávida de companhia, de afectos, de emoções, mas de todos nós os que através dos nossos dispositivos comunicamos, compramos, investigamos, procuramos informação. E o que encontramos é “feito à nossa medida”, desenhado para nos cativar, contribuindo para que nos fechemos ou radicalizemos no nosso universo paralelo, individual ou colectivo. É, ou pode ser – como diz um dos narradores, quase todos eles quadros de Silicon Valley arrependidos – um xeque-mate à Humanidade.
Vi isso recentemente em duas ou três comunidades de amigos, grupos de WhatsApp a que pertenço. Seguimos e discutimos as eleições americanas. Nos grupos, com um denominador comum político entre o nacional-conservador e o liberal-conservador, havia simpatizantes de Trump e simpatizantes de Biden. Todos nos demos conta que, mergulhando nos nossos respectivos mundos, tínhamos percepções e visões diametralmente opostas da mesma realidade: bastava uns verem a CNNe outros a Fox News ou pesquisarmos online informações fornecidas pelos motores de busca adaptados a anteriores procuras. À medida que o processo avançava, apesar da melhor das amizades e compreensão pelos adversários, as realidades foram-se tornando cada vez mais diversas; e essa mudança e o choque das notícias, verdadeiras ou falsas, enviadas pelos outros, mais nos fazia desconfiar da informação alheia, que víamos parcial ou radicalizada, mergulhar no nosso universo e escalar na resposta. Ou seja, encontrávamos na radicalização (e tudo isto se passava entre pessoas amigas ou, pelo menos, com vários denominadores comuns) e na confirmação dos nossos universos paralelos a única saída.
Neutralidade e objectividade
Aí poder-se-á dizer: mas procurem uma terceira via – objectiva, equilibrada, factual, de confiança. A tragédia é que é capaz de não haver. Até porque a razão do uso das redes sociais é também a partidarização progressiva dos órgãos de informação tradicionais, ou melhor, a sua obsessão em, sob uma capa de neutralidade e objectividade, misturar factos com opiniões e passá-las como realidades objectivas. E seguindo, geralmente, uma mesma inclinação e cosmovisão, preferencialmente “à esquerda”.
É uma velha história e tenho até alguma experiência pessoal na matéria: quando participo num programa ou debate ou citam uma opinião minha sobre um facto político, levo, geralmente um carimbo ideológico – “de direita”, ou “de direita radical”, ou “defensor de Salazar” –, enquanto o meu opositor, ou a pessoa com quem dialogo ou debato, é apenas identificado pelo nome, pela profissão ou pelo título académico, não levando o carimbo equivalente – “de centro”, “de esquerda”, “de esquerda radical”, “defensor de Estaline” ou de Mao Tsé-Tung ou de Maduro, ou de Kim Jong-un –, passando assim por neutro e objectivo.
São pequenas subtilezas mas que entraram de tal modo na natureza das coisas, que muitos dos que as usam (e a elas assistem) já nem se dão conta do desequilíbrio.
Esta carga tem também que ver com um preconceito instalado: a “superioridade moral da Esquerda”, a natureza elevada dos seus ideais, a inexistência de demagogia ou de “populismo” na transmissão das suas mensagens, que são “neutras e objectivas”, contra o “populismo” e o “radicalismo” do lado oposto.
O hitlerismo tem os horrores do extermínio étnico, baseado na teoria da perigosidade especial do povo judeu e terá matado seis milhões de judeus – toda a Direita o carrega às costas e é com ele confrontada.
Em contrapartida, ninguém na Esquerda carrega às costas ou é confrontada com a História ou com o que quer que seja. E, no entanto, ninguém pode ter dúvidas de que o comunismo, até pela sua duração e expansão, foi, em número de vítimas, a doutrina mais necrófila e mais assassina do século XX. Entre Mao, Estaline, Pol Pot, Mengistu e outros líderes marxistas-leninistas, o comunismo, actuando para a Igualdade e Felicidade dos Povos, matou para cima de 100 milhões. E alguns destes casos também foram, como os dos nazis, de “limpeza étnica”: os Bolcheviques na Guerra Civil deportaram centenas de milhares de Cossacos do Don; em 1932-1933, Estaline decretou o confisco dos cereais na Ucrânia, causando a Holodomor, que matou à volta de três milhões de Ucranianos. E foi um grande genocida, não só interclassista – matou nobres, burgueses e Kuláks – mas também étnico, liquidando Chechenos, Ucranianos e Tártaros da Crimeia. Tal como o Presidente Mao, que bateu todos os records. Mas, curiosamente, tudo isto é sacudido das costas da Esquerda. A causa do falhanço e das hecatombes humanas é invariavelmente a maldade, a perversão do sistema e o “factor humano” dos líderes, e nunca a ideologia. Ponho a questão ao contrário – digam-me um regime comunista que tenha corrido bem e que, em número de vítimas políticas, se apresente mais benigno que a nossa “longa noite fascista”.
Mas o que começou a revelar-se uma tendência cada vez mais radicalizada nos chamados mainstream media – com a aplicação sectária de um “fact check” que leva até a penas de excomunhão (como o corte da transmissão do discurso do Presidente dos Estados Unidos), estende-se agora às redes sociais, pelo que aparenta ser a súbita consciência política e apetite censório dos novos arquimilionários, na sua ânsia ética de auto-regulação (a que, mais uma vez, o lucro não será alheio).
A “autoregulação” dos novos multimilionários
Duas semanas antes das eleições, o Twitter, que já tinha suprimido twitts do presidente Trump, bloqueou a partilha de artigos do New York Post sobre o caso Hunter Biden, que envolvia o filho do candidato democrata e o próprio Joe Biden numa história de corrupção. Os mainstream mediaocultaram a história, mas o Twitter foi mais longe e censurou-a, impedindo-a de circular. Deixou até de permitir que o New York Post transmitisse fosse o que fosse durante duas semanas. E o New York Postnão é um pasquim, é um jornal tradicional, fundado por Alexander Hamilton, em 1801, um dos mais antigos diários dos Estados Unidos e do mundo.
Esta decisão e o comportamento censório foi também assumido pela Google – depois de avaliar cuidadosamente os conteúdos e sob o pretexto de “discurso de ódio” e de “fact check” (e, como é sabido, destilar ódio e manipular a verdade são nítidas características da direita, dos conservadores, dos crentes e completamente alheias à esquerda laica e progressista).
Seja como for, o Senado convocou os três CEO’s da High Tech ou Big Tech, Jack Dorsey, do Twitter, Mark Zukerberg, do Facebook, e Sandai Pichai, da Google, que, segundo o Senador do Texas, Ted Cruz, representam uma indústria que “colectivamente encarna a mais singular ameaça à liberdade de expressão na América, e a maior ameaça às eleições livres e justas”.
O Senador Cruz começou por reconhecer que o Facebook estava pelo menos a tentar “desenvolver alguns esforços em defesa da liberdade de expressão” mas que, em relação à Google, companhia com “mais poder que qualquer outra à face no Planeta”, “as preocupações antitrust” eram reais, esperava que os abusos por parte da companhia, as tentativas de influenciar, manipulando informação, fossem discutidos no futuro.
Mas o objectivo principal da audição foi Jack Dorsey. Vale a pena ver online (“Cruz Torches Twitter CEO for Political Censorship”).
Hoje os super-ricos já não aparecem como os antigos capitalistas dos desenhos satíricos de George Groz ou do nosso Vilhena – gordos, de jaquetão, colete, colarinho alto, calça de fantasia, charuto na boca, cravo na lapela e uma corista encavalitada nos joelhos –, nem sequer como os seus homólogos de há 100 anos, os J.P. Morgan, os Rockfeller, os Ford, sempre engravatados, formais, a entrar ou sair de limousines ou a falar com presidentes. Não. Os arquimilionários de Silicon Valley não querem distinções formais – ou demasiadamente visíveis – entre exploradores e explorados: ténis, tee-shirt e o ar desprendido e alternativo de quem se está nas tintas para o poder e para o dinheiro e acabou de fundar uma start-up.
Assim é Dorsey, o patrão do Twitter, que, na audição, optou pelo casaco e a gola alta, tudo em preto, com as longas barbas da moda a darem-lhe um o ar de profeta de tragédia grega ou de sem abrigo místico. E é com um olhar azul, pálido e parado que responde que o Twitter não teve qualquer influência nas eleições.
Quanto à questão directa posta por Cruz (o bloqueio dos artigos do New York Post), a justificação de Dorsey, dada com uma inocência sonsa, foi que o material usado tinha sido “pirateado” e que havia um protocolo no Twitter para não usar materiais que conseguidos sem consentimento dos seus autores.
Se assim fosse, toda a história épica dos media progressistas, no século XX, se evaporava: os Pentagon Papers, as gravações de Richard Nixon no Watergate, todo o folhetim de jornalistas heróicos a revelar escândalos políticos. E tão pouco o New York Times podia ter publicado os “tax returns” de Donald Trump (que o Twitter “deixou passar”).
Ou seja, é Jack Dorsey, o patrão do Twitter, quem decide da Bondade ou Maldade dos conteúdos; quem, fazendo um aturado “Exame Prévio”, se auto-regula – regulando o que pode ou não ser divulgado.
O regresso do exame prévio
A última novidade é o restabelecimento da Censura pela coligação PSOE-Podemos, a coligação da Esquerda e Extrema-Esquerda que governa a Espanha, em nome da “defesa da verdade” e da protecção contra a intervenção estrangeira.
Há cerca de um mês, o Congresso de Madrid aprovou, com os votos contra do Partido Popular, do Vox e do Ciudadanos, uma iniciativa do partido Unidas Podemos que habilita o Governo a “impedir a propagação de mensagens de ódio nas redes sociais através da vigilância e da eliminação imediata das mesmas”. O pretexto é evitar que o “espaço digital” seja usado para “opiniões que culpem o Executivo da crise sanitária”, espaço esse que a direita está a instrumentalizar “para fins ideológicos”, recorrendo a um linchamento digital que pode degenerar em linchamento físico. É ainda alegada para justificação destas medidas de saneamento a defesa da opinião pública de “notícias falsas” e possíveis ingerências estrangeiras.
Estamos, pois, perante uma acção preventiva para “salvaguardar a integridade moral dos cidadãos” e impedir que se extraviem. O intuito é proteger o cidadão – da Covid, do Fascismo, das fake news, do discurso de ódio –, continuando a sublinhar que a liberdade de expressão se mantém e continua (após “exame prévio”).
O que querem e para onde vão? O que queremos e para onde vamos?
Lembro que na Constituição portuguesa de 1933, que institui o Estado Novo, a liberdade de expressão era “um direito individual dos cidadãos sob qualquer forma”… Mas que, entretanto, para evitar “preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos”, se instituiu “o exame prévio”.