Esta semana ficámos a saber que Elon Musk – 264 vezes bilionário, dono da Tesla, do Twitter/X e da rede privada de comunicações por satélite Starlink – decidiu privar a Ucrânia de uso desta última na Crimeia, alegadamente para evitar uma Terceira Guerra Mundial. É um exemplo revelador da excessiva concentração de poder nos donos de umas dezenas de empresas tecnológicas. Também ficámos a saber que Ursula von der Leyen, provavelmente, gostaria de se recandidatar ao cargo de Presidente da Comissão Europeia, nomeadamente para lidar com o desafio da governação da Inteligência Artificial.
O tecnobarão
Não nego a Elon Musk talento em promover novas tecnologias de elevado potencial para seu máximo lucro, como é o caso da Starlink, que mostrou ter uma enorme utilidade para a Ucrânia para lidar com a agressão russa. Trata-se, isso sim, de não confundir biliões de dólares em ações, com sabedoria e legitimidade universal. Trata-se de deixar claro que um indivíduo, uma empresa, não devem ter o poder de tomar este tipo de decisões de paz ou de guerra. Musk devia ter consultado o governo dos EUA. Ou melhor, deveria ter sido obrigado a fazê-lo. A Casa Branca teria mais informação sobre o assunto, e, sobretudo, teria legitimidade democrática para decidir.
Eu sou filho de pequenos empresários que sempre trabalharam no setor privado. A hostilidade de certa esquerda aos empreendedores, muitas vezes vindo de meios pobres, criadores de emprego e riqueza, sempre me pareceu um disparate. Mas também convém lembrar aos liberais atuais que os liberais originais foram grandes criadores de instituições estatais na Europa e nas Américas do século XIX, para as tornar menos discricionárias, menos autoritárias, mas mais capazes de responder a novas necessidades. O combate, mediante novas agências e novas leis, contra os abusos dos monopólios da Revolução Industrial não foi liderado por comunistas hostis ao capitalismo, mas por figuras como Teddy Roosevelt.
Uma questão central do século XXI será saber se os Estados serão capazes de limitar eficazmente as excessivas concentrações de poder e riqueza criadas pela aceleração da Revolução Tecnológica da Informação. O tecno-otimismo acrítico e a autorregulação, que os bilionários de Silicon Valley propagandeiam há décadas, falhou, exceto na multiplicação descontrolada do seu poder e riqueza. Agora enfrentamos os novos e maiores riscos da Inteligência Artificial.
Ursula e a inteligência artificial
Esta semana ficámos a saber que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, provavelmente quererá manter-se no lugar, se as eleições europeias do próximo ano assim o permitirem. É uma ambição legítima. Apesar de Ursula reclamar uma taxa de sucesso de 90%, ficou claro que considera que ainda há muito para fazer. O discurso sinalizou pelo menos duas viragens importantes e positivas: uma nova prioridade ao alargamento, incluindo a Ucrânia; e uma gestão mais geoestratégica das relações económicas externas. Estou mais cético na questão prioritária da coordenação e intensificação da produção de armamento na Europa para o nível requerido num Mundo mais perigoso. E a UE também parece querer insistir numa política, em grande parte falhada, de parcerias em África. Mas sobre isso voltaremos a falar. Hoje vou centrar a minha crítica na insistência num modelo de governação da Inteligência Artificial (IA) perigosamente insuficiente.
O discurso de von der Leyen identifica bem a gravidade do desafio, citando um grupo de pioneiros da IA que, depois de acumular fortunas com o seu desenvolvimento, descobriu que: “mitigar o risco de extinção da IA deve ser uma prioridade global, juntamente com outros riscos à escala social, como pandemias e guerra nuclear”. Perante este desafio existencial o que é que se defende? Um modelo de governação global da IA semelhante ao IPCC – o Painel Internacional da Mudança Climática – a mais fraca e ineficaz das instituições do sistema das Nações Unidas. Os EUA ou a China poderão não querer ir mais longe, e o seu acordo é indispensável? Pode ser, mas pelo menos na sua proposta inicial a UE devia ser mais ambiciosa e apontar para uma agência da ONU modelada na Agência Internacional da Energia Atómica.
O que é proposto ao nível da própria UE é também uma versão mais formalizada da habitual autorregulação, com mais um painel consultivo de peritos e responsáveis das empresas. Isto é o adequado para gerir um risco que a própria Presidente da Comissão considera equivalente ao do armamento nuclear?
Não sou um inimigo da tecnologia em geral ou da Inteligência Artificial em particular, em que reconheço enorme potencial. Mas, como todas as tecnologias de elevado potencial, ela pode ser usada para fazer muito bem e muito mal. Por isso devemos exigir mais e melhor governação pela UE deste setor. Devemos apoiar financeiramente um modelo de inovação que não viva obcecado com substituir e privilegie complementar o trabalho humano. Devemos criar uma agência europeia para a AI e as novas tecnologias com reais poderes inspetivos. Devemos criar uma obrigação de registo de toda e qualquer investigação em curso no campo da IA. Devemos criar mecanismos permanentes de controlo de atividades suspeitas. Devemos estabelecer medidas obrigatórias de redução dos riscos pela limitação das ligações e um sistema de kill switchs que permita garantir a eliminação de ameaças. O tal painel pode ser um início? Temo que seja demasiado pouco, demasiado tarde. Estamos a começar mal, o tempo escasseia e o risco de complacência interesseira é muito elevado. Inovar é importante, mas se isso levar à destruição da humanidade, não é difícil concluir que essa é uma inovação a evitar a todo o custo. Espero que os decisores na UE, nos EUA, na China e no resto do Mundo, o percebem a tempo.