Vivemos uma situação grave na Saúde, talvez a maior desde que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi criado, e isto não pode ser escamoteado aos portugueses sob o pretexto simplista de lhes poder causar medos irracionais ou um acréscimo de patologias do foro mental. Todos nós somos suficientemente crescidos para perceber a verdade quando ela é contada com honestidade intelectual e quando nos é apontado um caminho em que podemos acreditar.

Portugal apresenta neste preciso momento mais mortes por Covid-19 entre os países europeus com idêntica densidade populacional, alguns milhares de profissionais de saúde infetados, um aumento crescente de casos positivos, internamentos em hospital e em unidades de cuidados intensivos, centros de saúde sem resposta e um aparente descontrolo total das cadeias possíveis de transmissão do vírus. Esta é a verdade que os portugueses precisam de saber.

O problema é que a maioria dos portugueses não sabe onde estamos, para onde vamos e como nos vamos libertar desta calamidade que nos afeta. E é esta incerteza que gera desânimo, medos e uma desconfiança real sobre quem decide neste momento.

Nesta guerra amplificada diariamente pela sociedade de informação, apresentamos então chefias confusas e aparentemente extenuadas, mas muito longe de serem derrotadas, pois o SNS mostrou uma resiliência fora do comum nestes dez meses e a maioria dos seus profissionais de saúde soube enfrentar a crise com uma vontade incrível de cuidar dos seus semelhantes.

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No entanto, e desde essa altura que não faltaram avisos a uma segunda vaga que poderia ter consequências ainda piores. Nesses meses seguintes de verão e de aparente acalmia faltou preparação antecipada e criteriosa por parte de quem decide, embora louvemos aqueles gestores hospitalares como no Centro Hospitalar de S. João, e muitos outros, que sem esperar por vozes de comando se foram municiando de muito do que poderia ser útil num futuro próximo.

Então, o que nos falta para vencermos esta guerra?

1 Precisamos primeiro de uma luz e de um caminho que possam ser apresentados de forma eficaz aos portugueses para que a luta seja mesmo de todos nós.

E não é só a guerra imediata da pandemia que temos que travar, como também, e mais importante que tudo, evitarmos a todo o custo um contínuo aumento do agravamento de doenças e mortes por outras patologias. É importante que os portugueses percebam que este ano houve milhares de rastreios de cancro que não foram feitos, assim como cerca de 5 milhões de consultas em presença física em falta e milhares de cirurgias. Uma grande parte dos portugueses já sentiu que o acesso aos seus centros de saúde está dificultado e que a população mais vulnerável está a sofrer no corpo os pesadelos deste surto pandémico.

2 Necessitamos, depois, de explicar claramente a todos os portugueses o que cada um deve contribuir para acabarmos rapidamente com a pandemia.

Para isso temos de ter honestidade intelectual e sermos eticamente corretos para criar a empatia necessária para uma envolvência de todos. Temos, de uma vez por todas, que acabar com a incoerência das mensagens e sinais que passam todos os dias e que dinamitam a confiança dos portugueses, pois parece que estamos perdidos no meio da floresta em que nenhum e todos os caminhos servem.

Os portugueses perceberão muito bem o que cada um pode fazer para que todos possamos ganhar neste momento difícil das nossas vidas, sem chicotes nem regulações sem nexo de peso ou medida. E isto é essencial, porque sem todos não seremos nada.

3 Precisamos também de acabar com as intermináveis guerrinhas pessoais e de grupo que continuam a querer controlar interesses e a dirigir assuntos de que pouco ou nada percebem, e delegar numa pequena equipa de topo (a tal “task force”), que atue imediatamente no terreno com a autonomia necessária para motivar os ativos que temos e construir pontes e parcerias em rede entre serviços do SNS e mesmo fora, de forma a conseguir manter um controlo da situação pandémica que não degenere em muitas mais mortes e situações de crise que podem, de facto, levar a situações de pânico e mesmo de violência na população.

O que a população precisa de ver, são medidas concretas que controlem a pandemia e, ao mesmo tempo, permitam uma rápida reativação do acompanhamento e tratamento de todas as outras doenças que matam muito mais do que o vírus em causa. Não pode haver preconceitos entre os vários setores da saúde e todos são úteis no momento difícil que atravessamos e que queremos que passe com o menor número possível de danos colaterais.

4 Depois temos, hoje, e porque estamos muito fora da nossa zona de conforto, de começar a preparar o futuro pós-Covid. Por força das circunstâncias e eventuais apoios externos, teremos uma oportunidade única de reconstruir um SNS forte, que possa continuar a cumprir a Constituição Portuguesa.

Ao longo dos anos fomos assistindo a tímidas reformas e paletes de leis e regulamentações para melhorar o sistema de Saúde. E se estamos incomparavelmente melhor do que há 30 anos atrás, corremos sérios riscos de acordar mais tarde com um SNS fraco e de amparo apenas para os mais pobres e desfavorecidos. Temos de assumir que o que foi feito está muito longe de ser o que queremos para todos os portugueses e não poderemos culpar unicamente o tal subfinanciamento crónico de vários anos.

Pensemos um pouco: para além da retórica habitual, quando é que colocámos o paciente no centro das decisões? E se estamos a falar das estruturas hospitalares, que são as empresas mais difíceis de gerir pelo seu inerente princípio de incerteza e inúmeras externalidades, quando é escolhemos os líderes mais capazes para assumir a gestão deste conjunto tão difícil? Se em todas as empresas de sucesso os colaboradores estão amplamente motivados, porque é que na Saúde a maioria já não consegue vestir a camisola? E porque é que os portugueses já pagam do seu próprio (e magro) bolso cerca de 30% das suas despesas de saúde?

E nunca nos devemos também esquecer, que os desafios que temos de enfrentar hoje não podem ser superados com o nível de pensamento do contexto em que foram gerados ao longo do tempo.

Então, é preciso mudar: mudar para que nada fique como antes!

5 Por fim, temos forçosamente de profissionalizar o SNS, separando-o do crivo constante do Ministério da Saúde.

O poder político e executivo deve assumir com coragem e sagacidade a criação de uma pequena estrutura autónoma e responsabilizada, de topo, com uma liderança forte, preferencialmente com conhecimentos clínicos e preparação robusta em gestão de saúde, a quem deve confiar a administração do SNS, num espaço de tempo para além de uma legislatura e que possa ir, aos poucos, reconstruindo/reformando o sistema de saúde, tendo sempre em devida conta os seus ativos mais importantes, criando condições para remunerações adequadas e a valorização de competências pela introdução efetiva da avaliação de desempenho pelo valor acrescentado.

Gerir a trajetória de todos nós desde que nascemos até à nossa morte é o core business da Saúde.

Sem demagogia e ideologicamente isentos nos cuidados a ter pelo nosso bem mais precioso: a nossa saúde, aqui estamos ,juntos, neste manifesto que pretende ser uma contribuição ativa e decisiva para todos os portugueses.

Texto da Direção da Sociedade Portuguesa de Gestão de Saúde