Quando descemos o grande canal de Veneza, mesmo perto do seu final, a última curva no nosso lado esquerdo revela-nos uma das mais belas vistas do mundo. Vista que mostra a boa combinação entre a intervenção humana e a natureza. Veneza é, e em especial este final do grande canal, com a sua abertura para a Lagoa, o “Golfo de Veneza”, um espetáculo de cores e sensações. Evoca também o que a capacidade humana pode proporcionar. O canal corre de forma fluida, alarga e nesse momento abre-se em todo o seu esplendor. Somos prendados com as cúpulas bizantinas, as fachadas trabalhadas dos palácios e das igrejas. Os ricos palacetes tornam-se mais nobres e orgulhosos sobre aquele magnífico e vivo espelho de água.

As cores refletidas nas águas do canal são impossíveis de descrever, não só pela sua variedade, mas também porque as interações entre a luz, o ar e as águas com as construções e os barcos criam constantes mudanças, exuberantes e de beleza refinada e infinita. No que toca à parte natural, domina o azul-claro e escuro, o verde e o esbranquiçado dos dias de nevoeiro. Temos também o prateado, e por vezes dourado, efeito do sol a bater naquelas águas suavemente ondulantes do Adriático. Já na parte humana ou urbana, temos os brancos, os cremes e as cores de pêssego. Pela noite, o escuro generalizado é animado pelo amarelo dos candeeiros dos passeios, refletido de forma fragmentada na água. Existe por lá algum verde, o dos estreitos canais, que são uma espécie de verde turquês. O verde das folhas e da vegetação existe, mas pouco, o suficiente para introduzir um elemento orgânico e a paz que estes jardins, mesmo sendo pequenos, nos trazem.

Veneza foi construída sobre água, no extremo norte do Adriático. O seu início deveu-se à fuga dos povos da região das ameaças bárbaras vindas do norte. Foi no início um local de refúgio. Usaram-se estacas de carvalho e de pinheiro espetadas na areia, foram-se drenando estas pequenas ilhas conquistadas à lagoa e, sobre elas, foram construídas as primeiras casas. A pouco e pouco as ilhas tornaram-se numa grande ilha, e a ilha numa cidade e numa civilização. Veneza terá nascido por volta do ano quinhentos ou seiscentos, foi nação independente por volta do ano oitocentos. Foi Bizantina. Chegou a ser a terra mais rica do mundo. A sua moeda, o ducado, foi em determinada altura a principal moeda europeia.

Veneza mistura o clássico com o gótico, o estilo bizantino com o renascentista. As suas atividades económicas eram indústrias variadas, o comércio intenso e a pesca. Deu origem a muita arte, à Escola Veneziana, onde artistas, alguns saídos de Roma, encontraram terreno fértil para a sua criação. Também abriu novos caminhos de outro tipo, através de inovações contratuais, financeiras e bancárias. Philippe de Commynes, um diplomata viajado e neste sentido talvez um dos primeiros cronistas ou travel bloggers da nossa história, declarou o grande canal como sendo “a rua mais bela do mundo”. Ainda hoje muita gente, e eu próprio, concorda com esta afirmação e penso que o local mais fotografado de Veneza é a vista que a ponte da Academia proporciona, verificável nas redes sociais.

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A atividade comercial de Veneza teve rivais, em especial Génova. Mas Veneza teve de tal maneira um crescimento notável que o seu modelo e estrutura foi analisado pelos seus contemporâneos. Os princípios económicos e legais eram a base para que existisse muita iniciativa privada e individual, a inclusão e a liberdade económica foram motor indispensável. Imperava um sistema aberto, novos empreendedores poderiam tentar a sua sorte e entrar para as classes altas se a sua aventura económica fosse bem-sucedida. Também poderiam ter um eventual lugar no conselho que governava, sendo até alguns lugares escolhidos à sorte. Este modelo “social-ascendente” permitia contratos por ações com o risco e os potenciais ganhos partilhados e os tribunais funcionavam de forma isenta para resolver conflitos. Havia também um limite do poder central e embora houvesse elites, entravam em grande velocidade novos nomes para junto dela. Chegou a ser numa proporção superior a sessenta por cento o número de novos nomes a entrar para a elite veneziana, isto antes do seu pico de atividade económica descentralizada e aberta, por volta de 1315.

Os venezianos diziam “primeiro Veneza e depois os Cristãos” espírito bem demonstrado pela ambição e pelos juros bancários disponíveis numa Europa que não olhava com bons olhos para rendimentos puramente vindos do dinheiro. Mas os juros faziam sentido, um depósito em dinheiro não desaparecia ou desvalorizava, mas crescia. A praça de São Marco enchia-se aos domingos para as pessoas assistirem a missa, talvez para pedirem perdão por serem tão usurários e ricos.

Tal como o grande canal fluía e se abria para o esplendor da lagoa, Veneza abriu-se e ofereceu a criatividade e a riqueza. Foi entreposto entre o Oriente e Ocidente. Como tudo o que gera dinheiro chama o interesse dos estados, este ciclo teve um fim. O estado tomou conta do comércio e ditou assim o fim dos vivos e dinâmicos negócios dos venezianos. O que veio em troca foram pesados impostos, uma lógica extrativa e pouco produtiva. Veneza manteve-se mesmo assim numa posição de destaque até perto de 1515. O verdadeiro fim foi, por ironia, quando Portugal passou a dominar o comércio das especiarias. Veneza tornou-se cliente e não comerciante. Hoje Veneza vive de pouco mais do que o turismo em massa.

Hayek, austríaco, foi um economista que escreveu bastante sobre o fenómeno das interações entre o estado e as atividades económicas. No fundo defende que o estado deve fazer o que faz bem e deixar fazer quem consegue fazer melhor determinada tarefa. O Liberalismo ou o movimento e pensamento libertário é essencialmente isso, a defesa da liberdade económica. Os estados têm que existir, a pandemia por exemplo, deixou isso bem claro pois por vezes a liberdade individual impede a liberdade absoluta. Mas a liberdade económica é muito importante, penso que nada grandioso foi conquistado ou feito sem génio, sem iniciativa individual ou mestria. A lógica de um crescimento bottom up ou crescimento livre e orgânico funciona, seja agrícola, industrial ou comercial. Uma lógica de centralização ou um sistema top down é para além de frágil, um sistema que representa um ciclo vicioso com tendência para a estagnação ou paragem. O capitalismo disfarçado numa estranha convergência entre o estado e as grandes entidades financeiras muito menos ainda consegue fazer. Modelos sem a criatividade e sem o fazer bem só resultam em sociedades “museu”, bons unicamente para o turismo e onde olhamos para trás e dizemos já fomos grandes”. Como Veneza.