O Público oferece-nos um novo exemplo de wokismo aplicado à história da escravatura. Trata-se, desta vez, de um artigo escrito pelo argumentista e realizador de cinema Artur Ribeiro, que viveu nos Estados Unidos da América e que vem dar-nos, como o próprio diz, “uma lição de História autodidacta”. O intuito dessa “lição” cedo se adivinha, mas só se torna claro e assumido no fim do seu texto.

De facto, para chegar onde quer Artur Ribeiro começa por nos falar da Portuguese Company, designação oficiosa de um grupo de portugueses sediados em Nova Iorque que, nos anos finais do tráfico transatlântico de escravos, esteve envolvido no transporte de africanos para Cuba. Ribeiro está erradamente convencido de que em Portugal não nos interessamos pelo papel que o nosso país desempenhou na escravatura no século XIX, época em que o tráfico já era total ou parcialmente ilícito, e julga, por isso, que nos está a dar uma grande novidade. Mas está a pregar a convertidos. As pessoas poderão não ter presente o que foi a Portuguese Company nem conhecer os seus membros e métodos, mas sabem perfeitamente que houve muitos portugueses a lucrar com o tráfico ilícito durante o século XIX. Esse período foi e continua a ser muito falado entre nós devido à dificuldade ou lentidão dos governos portugueses em agir politicamente contra o comércio negreiro que se realizava a coberto da sua bandeira. Eu próprio fiz uma tese de doutoramento sobre isso que foi publicada em Lisboa, mas também em Nova Iorque, como pode ver-se aqui, e essas questões têm sido repetidamente abordadas e debatidas na imprensa. Aliás, basta a qualquer português ler Os Maias, de Eça de Queirós — e quem não o leu? —, para encontrar, logo nas primeiras páginas desse extraordinário romance, a figura de Manuel Monforte, o pai da bela “negreira”, um Monforte que fizera a sua fortuna a transportar escravos de África para as Américas e que personifica o negreiro português nessa época de tráfico clandestino.

Em suma, as atitudes e o envolvimento dos portugueses de Oitocentos no comércio da escravatura são conhecidas e, nesse sentido, a actividade da Portuguese Company nada tem de insólito. Quando, no século XIX, o tráfico se tornou ilícito e capaz de, em certas condições, dar lucros altíssimos aos investidores, houve muitos aventureiros e gente sem escrúpulos que tentou a sua sorte nesse odioso comércio, tal como hoje em dia também há muito bandido que, atraído pela promessa de grandes ganhos, se envolve no tráfico de droga e noutros negócios criminosos e imorais. Assim, no século XIX viram-se pessoas de quase todas as nacionalidades a arriscar no transporte transatlântico de escravos. Houve até austríacos — apesar da Áustria não ter mar nem colónias — e alguns chefes e reis africanos. E houve, sim, muitos portugueses sediados, sobretudo, no Brasil. Quando, em 1850, esse país interditou de facto a importação de mais escravos, alguns desses negreiros voltaram para Portugal, outros ficaram por terras brasileiras, reconvertendo a sua actividade, e uma pequena parte fixou-se em Nova Iorque, como foi o caso de Manuel Basílio da Cunha Reis, que Artur Ribeiro menciona e que se tornou, talvez, o mais conhecido de todos os membros da chamada Portuguese Company. Essa organização fora da lei terá levado a cabo, ao que se julga, cerca de 40% do comércio negreiro que, no final da década de 1850, se fazia a partir de Nova Iorque; o restante ficou na mão de traficantes de outras nacionalidades. O objectivo de toda essa gente era transportar escravos para Cuba, a única região americana que ainda continuava a recebê-los. Tratava-se de um comércio de altíssimo risco, em que os lucros podiam ser grandes, mas as perdas e os problemas com a justiça eram frequentes e, às vezes, terminais. Por isso, em 1859, a firma de Cunha Reis — que, entretanto, se mudara para Cuba — soçobrou.

Por essa altura já Portugal abolira há muito o tráfico e já o combatia. Desde 1839 que, em colaboração com a marinha de guerra britânica, a Armada portuguesa perseguia e apresava navios negreiros nos mares das então chamadas províncias ultramarinas. Assim, a pergunta que devemos fazer a nós próprios é a seguinte: deverá Portugal ser penalizado ou responsabilizado, nos dias de hoje, por uma dúzia de portugueses, muitos deles naturalizados americanos, se ter dedicado, contra as leis do país e residindo em terra estrangeira, a um tráfico criminoso e ilícito? Eu acho que não deve, mas as pessoas woke com os seus mil dedos culpabilizadores apontados ao passado, têm uma opinião diferente e por isso, Artur Ribeiro onera o nosso país pelas malfeitorias de cidadãos ou ex-cidadãos seus que viviam há 160 anos na América.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E não fica por aí. Numa segunda etapa do seu texto, e olhando mais para trás, condena-o, também, pelo seu prolongado e volumoso envolvimento no tráfico. Para que essa condenação seja maior, em vez de referir, como é usual, os números do tráfico transatlântico propriamente dito, engorda-os com números intra-africanos. “Estima-se” — escreve — “que cerca de 24 milhões de pessoas tenham sido capturadas, do interior ao litoral africano, tendo morrido praticamente metade antes de embarcar, sobrando 12,5 milhões de cativos que foram transportados para o outro lado do Atlântico.” Há, todavia, duas omissões importantes neste excerto de Artur Ribeiro pois, ainda que refira que houve outros participantes no tráfico, o cineasta não especifica qual a parte de Portugal nesses trágicos números, deixando-os a pesar em bloco, de forma indistinta, sobre as nossas cabeças. Mas eu esclareço: o nosso país foi politicamente responsável pelo transporte de 4,5 milhões de pessoas escravizadas para as Américas. Todavia, o que mais importa aqui sublinhar é que, para além de omitir os quantitativos relativos a Portugal, Artur Ribeiro se esquece igualmente de dizer que a captura e escravização de pessoas que refere foram efectuadas por africanos, e que a responsabilidade por terem morrido ainda em África quase metade dessas pessoas —  11,5 milhões, segundo o cineasta — deve ser assacada em boa parte aos reis e comerciantes africanos que as traziam até à costa e que muitas vezes permitiam que fossem mantidas em quintais ou barracões infectos, à espera de embarque. São infelizes esquecimentos, convenhamos, mas têm, juntamente com a referência à Portuguese Company, o objectivo de melhor alavancar a agenda woke.

E é precisamente essa agenda que desponta na parte final do artigo de Artur Ribeiro quando aí se censura a suposta inacção ou lentidão de Portugal em lhe corresponder. Efectivamente, o cineasta considera que “o tema da escravidão (…) não tem sido verdadeiramente encarado e discutido na sociedade portuguesa”. Trata-se, como sabemos, de um erro grosseiro, absurdo, pois esse tema debate-se entre nós há seis longos anos e produziu até ao momento centenas de textos e intervenções diversas. Só à minha conta, de 2017 até agora, foram 57 artigos, três livros, várias entrevistas para a imprensa, rádio e televisão. O debate, porém, não tem corrido como os woke desejariam, e assim sendo, muitos dos que perfilham essa ideologia, falam como se ele fosse inadequado, ou como se nem tivesse existido e continuasse a decorrer. É manifestamente o caso de Artur Ribeiro.

Mas o cineasta não se limita a esse reparo à qualidade do debate sobre escravatura. Para criticar o país pela sua suposta demora ou pouca vontade em corresponder ao programa woke, pronuncia-se, também, sobre o memorial à escravatura, aprovado no Orçamento Participativo de 2017/18 da Câmara Municipal de Lisboa. E indigna-se pelo facto desse memorial ainda não estar construído, ao passo que os símbolos das ex-colónias, que considera uma “manifestação anacrónica de orgulho do Estado Novo”, já foram refeitos, em calçada portuguesa, e já ornamentam a Praça do Império — o que, para ele, apoiando-se em Edmund Burke, seria um sinal do triunfo do mal perante a inacção dos homens bons, nos quais obviamente se inclui. Mas Artur Ribeiro parece ser um homem bom demasiado exigente. Eu estou de acordo, e já o escrevi várias vezes, em que haja um memorial em Lisboa, mas o cineasta não se contenta com tão pouco. Fala em “vários memoriais e museus dedicados ao flagelo da escravatura” e considera que essa “é uma questão da maior relevância (sic) à qual deveria ser reconhecida mais urgência na agenda política.” Ora, seria bom que Artur Ribeiro percebesse que algo desse género pode fazer sentido na América, onde viveu, mas não tem qualquer relação com a realidade histórica portuguesa e é completamente desproporcionado face ao papel relativamente menor que Lisboa e outros portos do país tiveram no tráfico transatlântico de escravos. Como pode ser verificado no Atlas of the Transatlantic Slave Trade, o número de viagens de navios negreiros iniciadas nesses portos não chegou a 4% do total (3,8% para ser exacto). O grosso dessas viagens partiu do Brasil, tanto nos tempos em que foi colónia portuguesa como, depois, nos de país independente. Aí, sim, justificam-se vários memoriais e museus, não em Portugal, sobretudo num Portugal que ainda não tem — e, se calhar, nunca chegará a ter — um Museu dos Descobrimentos.