Escrevo postais desde que me lembro de viajar. Do Kruger Park à floresta tropical de Santa Elena, seguiam pequenas notas cujo discurso adaptava consoante o destinatário, para a mãe e o pai, para a irmã, para as avós, e para as amigas e amigos de quem sabia a morada completa. O papel cartonado enchia-se com a emoção da descoberta ou com descrições simples sobre o local. E terminava quase sempre da mesma forma: depois conto o resto. No regresso, algumas vezes antecipado ao postal, descrevia a aventura, atropelava o relato dos dias, mostrava os cadernos de viagem cheios de desenhos e notas para memória presente e futura. As fotografias, analógicas então, eram uma incógnita. Poderiam trazer a catedral ou parte dela, apanhada de viés. Os amigos feitos no local poderiam ser reconhecíveis ou meras sombras sobrepostas por não se ter rodado o rolo. Primeiro a preto e branco, depois a cores, as imagens complementavam o que contava. Era uma aventura, um lugar, uma memória construída com palavras. As imagens ao lado. Ilustrações.
Sentada na esplanada neste fim da tarde de Agosto, em Belém, de frente para o rio Tejo, vejo uma barbatana preta, tímida, que ganha confiança com rapidez. “Olha”, digo, “uma família de golfinhos! Vê, adultos e crias!”. Uma dezena de golfinhos salta nas ondas discretas do rio. Nas mesas em volta, também se apercebem do acontecimento. A margem enche-se de uma barreira de gente, costas, rabos, pernas, e braços no ar agarrados aos telemóveis sôfregos de imagens. Entre mim e os golfinhos há uma barreira de gente e um muro de lentes mais ou menos sofisticadas, com revelação directa para as redes sociais. Num instante, os golfinhos saem do Tejo e entram no Facebook, no Instagram, partilhados até à infinitude do tempo. Na barreira à minha frente, já ninguém olha o rio se não for através da câmara. Depois virá a contabilidade do sucesso medida em likes e partilhas.
Já não se veem golfinhos sem lente intermediária, fotografam-se, filmam-se. Como já não se vive, encena-se, partilha-se. É a pornografia da vida. As imagens sobrepõem-se. As palavras passam a habitar os cemitérios das histórias. Já não há histórias. Há abreviaturas, emoji, imagem, lol no lugar do riso, jogo de espelhos numa existência que se julga diversa. Ficam bem nas redes sociais, o golfinho e as casas de pedra da aldeia turística, e os lugares secretos revelados sem pudor, as ondas de todas as praias, os passeios pela nossa terra, mais portuguesa este ano.
Não sei se existimos fora do Facebook, do Twiter, do Instagram, do Tiktok. Se podemos existir hoje sem mostrar que existimos. Os golfinhos parecem achar que sim. Pelo menos enquanto não regressam a poluição e os cruzeiros.