Tinha talvez quinze ou dezasseis anos quando apresentei um trabalho sobre a Inquisição em Portugal. Não me lembro exactamente para que disciplina, se História ou Português. Sei que passei muitas horas com Alexandre Herculano, entre a curiosidade e o horror, num equilíbrio precário assente na competência intelectual do autor. É daí que vem o meu fascínio e temor pelo fenómeno das multidões: aquele momento em que o indivíduo, identidade única, se dilui numa massa homogénea, na “plebe sedenta de sangue” que imune à razão e escudada no anonimato exige e opera as maiores atrocidades. Na História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, de Herculano, à multidão que assistia ao auto-de-fé não interessava o crime cometido, interessava, sim, a crueldade do castigo sob a forma de humilhação e de dor física – alimento para o povo faminto. Hoje a “plebe” é outra. A fome é a mesma.

Numa série recente, em exibição na Netflix, The Chair (A Directora), escrita por Amanda Peet e Annie Julia Wyman, a personagem principal, interpretada por Sandra Oh, é uma professora, a primeira mulher a ser eleita para dirigir o Departamento de Inglês da Universidade de Pembroke. Uma universidade idêntica a outras, entre o conservadorismo institucional, representado por alguns docentes, a idealização de uma universidade mais actual e actualizada, e as exigências da comunidade estudantil. A série reflecte com humor inteligente temas como o sexismo, o idadismo, o racismo ou, mais subtilmente, o movimento Woke e a cultura de cancelamento. Um dos professores, popular e querido entre estudantes, faz uma referência caricatural a um gesto nazi ao ilustrar a influência ideológica do fascismo na literatura. Esse momento, gravado com o telemóvel às escondidas por um aluno, é colocado a circular nas redes sociais. O vídeo, descontextualizado, torna-se viral. Deverá este professor pedir perdão? Ser ouvido? Despedido? Desculpado?

As massas que se agitam sob a batuta do algoritmo de serviço à questão do dia são as mesmas que se manipulam para a eleição do ano, para a obliteração das democracias.

As redes sociais são a nova “plebe”. A nova “multidão sedenta de sangue”. E somos nós, desprovidos da nossa individualidade, aglomerados em likes e partilhas, subjugados pelo poder do algoritmo, que conferimos ao monstro a sua dimensão. Como somos nós, colectivo omisso pelos representantes dos Estados de uma Europa ainda de direito, que assentimos a esse monstro porque não o sujeitamos financeiramente às obrigações que todos, indivíduos e empresas temos: impostos. E depois dos impostos a responsabilidade legal pelos conteúdos. Como cada um de nós é responsável e responsabilizável por tudo quanto transgrida a liberdade de expressão.

O que Frances Haugen, a engenheira ex-funcionária do Facebook, documentou na sua audição no Congresso norte-americano não nos deixa quaisquer dúvidas quanto às decisões a tomar.

A necessidade de regulação não é apenas individual, não é apenas moral. É da res publica e em seu benefício social e democrático.

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