Talvez tenha sido a grande vitória política da direita nos últimos anos, esta coisa das «contas certas», que se tornou, finalmente, algo aparentemente consensual. É parca vitória, de resto. O que o jargão das «contas certas» significa não é mais que um princípio de responsabilidade financeira que em qualquer país civilizado decorre mais de uma cultura do que de um pensamento. Não é uma doutrina, mas um pressuposto básico de verdade política. Nós conseguimos tornar as «contas certas» numa filosofia, através da direita entusiasmada pelos quatro anos de ajustamento financeiro e de um Partido Socialista que, nos últimos oito anos, compreendeu que podia e devia ser tudo e o seu contrário para garantir o cumprimento do seu programa político, isto é, a mera conquista e manutenção do poder, e que se colou às «contas certas» como se elas fossem sequer uma ideia. Como a direita já tinha feito o mesmo, ficou anos sem discurso. Quando a única ideia que existia nem sequer era uma ideia, uma vez roubada, restava apenas o deserto, a fragmentação, novos dogmas e esta nova doença infantil de que o comunismo era dono.

Nesse sentido, a novíssima Aliança Democrática é um bom ponto de partida, na medida em que retoma um princípio histórico da direita democrática de oferta eleitoral politicamente ampla. Federar do centro-esquerda não estatista ao conservadorismo democrático foi sempre uma receita de sucesso. A chamada «direita possível», num regime de plano inclinado à esquerda, venceu sempre que colocou todo o espaço não-socialista a compreender que o voto numa grande força é mais relevante para derrotar as esquerdas do que um voto na direita mais dogmática e de protesto. Era a compreensão prática de uma lógica simples: o eleitor preferia o resultado, isto é, a derrota dos socialistas, ao romantismo do voto «convicto».

Sucede que talvez isso se tenha perdido. O Partido Socialista, tal como compreendeu que a austeridade era uma forma de lhe garantir o apoio popular se lhe dessem outro nome (e é aí que nasce a fórmula das «contas certas», no fundo), também resolveu fazer o que nunca tinha feito antes, ou seja, fomentar a destruição da direita democrática em prol da direita populista como mecanismo essencial à perpetuação no poder.

Partidariamente, estamos, por outro lado, reduzidos à mais pura insignificância em termos de programas de políticas públicas. A AD não tem ainda um programa e terá dificuldade em apresentar-se com um conjunto de reformas a um país que vive apavorado com a mudança; o Chega não o terá, porque o protesto não é um programa; a IL tem um programa, mas é hoje um dogma ideológico, mais próximo da religião do que da política; o PS nunca teve um programa; e a esquerda mais ou menos folclórica tem apenas o programa do desastre. No fundo, todos fingem representar alguma coisa, ganhará quem se apresentar como força mais credível de manutenção do status quo e subirá para patamares mais elevados quem se mostrar mais útil como megafone de protesto, à esquerda ou à direita.

Em paralelo a tudo isto, as instituições da democracia consolidam-se mais como instrumentos de podridão partidária ou pessoal do que de exercício democrático, isto é, de responsabilidade, de escrutínio, de fiscalização, de controlo e sanção. Mesmo a justiça, que já foi em tempos do reino da política (como sucedeu nos casos das FP25 ou da Casa Pia), acabou posteriormente consolidada como o único centro de fiscalização política, num pântano institucional porventura irrecuperável, e que serve agora para o poder político e mediático se queixar do excesso de força política que, no fundo, ele próprio ofereceu ao sistema judicial. Fora dela, de resto, sobra um regime de instituições mais centrado nos respectivos titulares do que nas próprias instituições; em que o titular do cargo se presume sempre sério, o que, num país onde qualquer imbecil com a lista telefónica certa é automaticamente tido como relevante e sério, não faz adivinhar grande futuro a uma democracia que nunca o soube ser plenamente.

Marcelo, na mensagem de Ano Novo, aludiu aos tempos finais da ditadura para salientar que hoje há voto livre, liberdade de associação, não há censura nem polícias políticas. O erro existe se se achar que isto é suficiente para que uma democracia sobreviva. Sobretudo uma como a nossa, mais presa pelos arames europeus do que pelas forças internas. É por isso que, em 2024, as eleições relevantes são as de Maio e não as de Março. Estas, as mais próximas, são mais entretenimento do que outra coisa.

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