Para assistir o presente a rimar com a história basta atentar nos discursos oficiais em relação ao comportamento dos portugueses durante a pandemia. Tem sido classificado como exemplar. Pouca gente refutará. Mas não é tanto isso que interessa para aqui. Antes destacar a expressão de uma tendência.

Em primeiro lugar, dar a entender que os portugueses estão a aderir massivamente ao confinamento não-obrigatório parece excessivo. Muitas pessoas estão a aderir, é verdade. E apesar dos evidentes sinais de desgaste.

Mas é visível a quantidade de incumpridores. O que traz ao segundo ponto. Por exemplo em Albergaria-a-Velha o estado de coisas é bem diferente daquele que é diariamente representado no discurso oficial. Nos últimos dias já se vem notando o aumento de tráfego rodoviário pela manhã – contado ao telefone por alguém que, agora em quarentena, até então se deslocava para uma fábrica onde não se cumpria o mínimo exigível de normas sanitárias preventivas.

Para além de excessivo no caráter, o discurso também tem sido parcial no alcance, pois não reconhece estas duas realidades.

Bem sabemos que a continuidade da imagem geral vive desse excesso que, por sua vez, preenche os espaços propositadamente encobertos. Mas é uma imagem fraca, construída a partir de uma evidente descolagem entre discurso e realidade, e que não revela qualquer espécie de unidade.

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E já sabemos onde um tipo de discurso que não reconhece as várias realidades que pretende representar nos pode levar.

Primeiro, lançam-se os discursos ao mar. Depois, a duração da viagem e o mar apagam as fronteiras e terraplanam a experiência. Os relevos caem no esquecimento. Em 20 anos, a metade ganha estatuto de totalidade.

A vigilância diz que o discurso tem sido excessivo e parcial. A relação é causal, e provavelmente assentará numa boa dose de otimismo. Mas motivações à parte, interessam agora os efeitos e a margem de ação que permitem. No caso hipotético de haver necessidade de reorientar o eixo do discurso, e impor novas restrições, não se percebe como poderá o discurso justificar aos cumpridores novas medidas restritivas sem cair em evidente contradição. Precisamente pelo facto de ser excessivo e parcial.

Num momento destes, nenhum ato deve ser branqueado. Todas as reações devem vir reconhecidas no discurso como representativas da reação coletiva à situação. Do modo como um povo se comporta em face da desgraça. Estaremos sempre a tempo de o reconhecer, por nós ou pela força das circunstâncias.

A situação é grave, mas nada justifica fabricar a memória individual através da direção da memória coletiva.