O 11 de Setembro de 2001 passou-me quase ao lado. Num tempo em que ainda via TV, saí de casa com a notícia, à qual por falta de tempo não liguei, de que uma avioneta teria chocado com o World Trade Center. O dia estava apertado e eu, na altura embrenhado na política partidária, tinha um almoço-reunião para decidir uma lista eleitoral. Apesar do telemóvel, na altura ainda sem acesso permanente à internet, o meu mundo seguiu imperturbável até chegar a casa ao final da tarde e perceber que tinha perdido o filme todo: a avioneta afinal era um avião, depois seguido de outro, e as torres, junto com o queixo da Humanidade que a tudo assistia em directo, tinham caído num vazio de entulho, pó e fumo.
No entanto, ver o mundo mudar em directo na TV não começou em 2001. Trinta e dois anos antes e fora do planeta Terra, Neil Armstrong marcou com as botas a primeira pegada humana na poeirenta superfície da Lua num momento igualmente transmitido para o mundo inteiro. Mas aí, culminando a euforia decorrente da vitória na Segunda Guerra, a chegada do Homem à Lua, bem como o discurso de Kennedy de 12 de Setembro de 1962 que lançou a ideia no imaginário ocidental, representou a confirmação da crença na infinita capacidade humana e no progresso que, já desde o dealbar da Revolução Industrial, era tido como o caminho rumo ao paraíso radiante do “futuro”, um futuro onde tudo seria abundante, acessível e bom. A partir de 69, depois de conquistado um dos dois corpos celestes que mais regeram o firmamento e a psique do Homem ancestral, a vida humana ascendeu a um novo patamar, a uma dimensão cósmica onde todos os problemas passaram a ser solúveis — uma ideia bem resumida no ditado comum “se somos capazes de pôr um homem na Lua com certeza seremos capazes de…”.
Esse entusiasmo e essa crença ilimitada no nosso engenho como motor da História foi novamente confirmada em 1989 com a queda do Muro de Berlim. Aí, mesmo que apenas pronunciando a dissolução da URSS que viria mais tarde, em 91, o triunfo do “mundo livre” passa a ser completo e, com ele, recrudesceu o optimismo e a confiança exagerada na infalibilidade do nosso próprio sucesso — quer político, quer civilizacional. Aliás, foi tal a excitação que o slogan que dali viria a sair para o imaginário do público culto e informado resumiu-se, simplificado, no célebre “fim da História” apregoado por Fukuyama.
Tal como Marx imaginou no comunismo o sistema perfeito que inauguraria um tempo novo, a verdadeira História, colocando fim às tensões e conflitos próprios da idade velha, também os intérpretes da democracia liberal se imaginaram, a partir de 1991, como os portadores de uma verdade política entendida como o culminar de um processo histórico e racional, logo superior, representando um, senão “o”, ponto de equilíbrio, permanente e perpétuo, onde, daí em diante, assentaria a “nova ordem internacional”.
O “fim da História”, no entanto, durou 10 anos e ruiu, junto com as torres gémeas, em 2001. Naquele que será, olhando agora de longe, o anti-clímax da húbris Ocidental, a invencibilidade e a superioridade da nova ordem internacional tropeçaram, afinal, numa mão cheia de andrajosos fundamentalistas com meia dúzia de aulas de aviação. Onde a chegada à Lua havia prometido o paraíso cósmico, as imponentes torres de Nova Iorque, ali castradas e em poucos minutos regressadas ao pó, acabaram por mostrar-nos a nossa comezinha realidade: terrena, perene, caduca, frágil.
Muito do que vivemos hoje nasceu naquele dia, ou pelo menos naqueles que imediatamente se lhe seguiram. Desde logo, politicamente, um esbanjar da autoridade moral estado-unidense em guerras que a corrente “neo-con” instalada na Casa Branca não conseguiu convencer, ou sequer justificar, perante a opinião pública mundial — primeiro com W. Bush e, depois, com o anti-Bush-oracular-Obama que, tantos eram os frémitos de antecipação, “mereceu” um prémio Nobel antes de sequer assentar arraiais na Sala Oval, mas que implementou exactamente as mesmas políticas.
Depois, a germinação da polarização face ao real. A versão oficial do próprio evento, foi desde logo, para horror dos comentadores, negada como “conspiração” por um número de pessoas, primeiro ínfimo, mas que hoje cresce exponencialmente na internet alimentada por documentários, vídeos, artigos e podcasts. Ainda hoje, no campo das “teorias da conspiração”, o 11 de Setembro é o tema que mais interesse e dúvidas suscita.
O ataque às torres lançou também o paradigma informativo do nosso tempo: sensacional, trágico, ininterrupto, numa torrente informativa em modo permanentemente “live”. Paradoxalmente, a TV, entretanto no formato 24/7, deixou de conseguir fornecer um consenso informativo sobre o mundo: aquilo que todos vêem em directo tem tantas interpretações quantos observadores, mas com a diferença, porque tudo é visto sem filtros, com os próprios olhos, que cada uma dessas interpretações se imagina como a única verdadeira, tal e qual um lance de um penálti assinalado que, apesar das infinitas repetições, não consegue ser unanimemente aceite — “mas és cego, não vês?”, gritamos uns aos outros.
Assim, num mundo em que tudo acontece ao vivo e a cores, à frente dos nossos olhos, num contínuo ininterrupto entretanto também multiplicado pelas salas de chat e blogues que furaram o gatekeeping dos media tradicionais, no caos primordial da internet, quebrou-se o consenso sobre o próprio real, entretanto gradualmente substituído por uma nova ideia de realidade assente em “narrativas”. Nesse aspecto, o 11 de Setembro foi um incrível e impressionante gatilho da polarização que vivemos hoje.
Depois, e mais importante, o impulso securitário logo bem visível, por exemplo, nos aeroportos e na impossibilidade de voar munido de um tubo de pasta de dentes com mais de 100ml, ou nas maquinetas de radiação ionizante que, junto com as apalpadelas desconfortáveis dos seguranças, tudo vasculham. Dos aeroportos para o resto da sociedade, o 11 de Setembro atacou a própria concepção ocidental de liberdade.
Até 1991, os dois blocos que disputavam a supremacia mundial propunham duas formas opostas de encarar a liberdade social. De um lado, do comunismo soviético, permitia-se tudo aquilo que a lei estabelecia, ou seja, tudo aquilo que a lei não previsse, ou controlasse, seria naturalmente proibido. Numa sociedade desenhada, o desconhecido representa o hipotético “glitch” com potencial para avariar a marcha da engrenagem. Daí que sociedades planeadas exijam vidas igualmente planeadas, ultra reguladas e limitadas em função daquilo que o Estado estabelece como sendo o interesse do colectivo — sois livres para fazer como o Estado exige que façam. Naturalmente, esse interesse reveste-se de preocupações com a alegada segurança colectiva, visando controlo social.
Do outro lado, na ordem liberal, a noção de liberdade era a oposta: se a lei não prevê, sois livres de o fazer. Aliás, é dessa liberdade, desse risco social permanente, que a inovação e o avanço do Ocidente se fizeram: do abraçar o desconhecido, do desafiar o risco, do assumir que a liberdade, em particular a individual, consiste no valor-farol do desenvolvimento humano que ilumina o mundo — ideia (ainda) bem representada na tocha empunhada pela Estátua da Liberdade, em Nova Iorque.
A partir de 2001, com a ameaça terrorista que eventualmente alargaria ao Ocidente inteiro, começando nos EUA com a aprovação do Patriot Act, abriu-se a porta para o crescente fortalecimento dos poderes de fiscalização securitária do Estado face aos seus cidadãos. Daí, com a ajuda do sensacionalismo mediático, a seu tempo, a noção da segurança do colectivo como novo valor cimeiro da sociedade ocidental fez o seu caminho — moral, social, político — e implementou-se a todos os níveis, desde o lockdown à ridícula noção de safe space, com as consequências naturais: menos liberdade, mais Estado, menos risco, mais (alegada) segurança, menos desconhecido, mais controlo.
O culminar da substituição do valor da “liberdade” pelo da “segurança” ocorreu em 2020, com a Covid-19, quando caminhamos agora a passos largos para uma concepção de liberdade muito mais próxima daquela que derrotámos em 1991. No entanto, não fosse o 11 de Setembro e os 20 anos que se lhe seguiram, na psique optimista, corajosa e confiante — talvez em excesso — do Ocidente pré-2001 e, arrisco dizer, nunca teria sido possível a actual imposição de uma narrativa única, sem contraditório, sem debate, vinda de cima para baixo, de um estado de emergência permanente, ultra-securitário, cego, que tudo regula, controla e dispõe, numa espécie de segurança aeroportuária sanitária imposta a cada rua e a cada esquina em nome de “combater” um vírus com uma taxa de sobrevivência que ronda os 99,9% dos infectados. Aliás, uma visão do nosso mundo de 2021 não poderia aparecer a qualquer um em 2001 como outra coisa além de absurdo.
Hoje, olhando as ruínas do 11 de Setembro, não consigo deixar de ali vislumbrar aquilo que de mais importante me escapou há 20 anos atrás: os escombros da concepção político-social que fez o Ocidente. E sendo eu um crente convicto no sucesso do risco-liberdade, bem como na tragédia que espera sempre aqueles que, munidos da obsessão pelo controlo, decidem seguir a avenida do medo, revendo agora as imagens das torres a desmoronar, invade-me a estranha intuição que foi também ali que, de certo modo, colapsou o mundo livre onde nascemos — e o momento em que, das cinzas, se começou a erguer a distopia sanitária que agora, para tristeza e revolta daqueles que ainda se lembram, merece aplauso generalizado nos media e nas redes sociais (convenientemente revistas e certificadas pelas “autoridades” competentes). Extraordinária e trágica mudança esta que vivemos em apenas 20 anos.