Nos últimos dias tenho tido muito que fazer junto ao mar, pelo que só na última semana é que consegui “esfregar os olhos” na “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030”, apresentado por António Costa Silva.

Havia uma coisa que me preocupava já há algum tempo. Onde é que está a “visão” estratégica sobre Portugal? Tantas e tão variadas luminárias a brilhar permanentemente na comunicação social, tal como os pirilampos luzem na escuridão das matas, e não há uma estratégia para um país que é Estado-membro da UE? E não se encomenda alguma coisa a Bruxelas, essa referência tão famosa pela “luz” que irradia?

Afinal não, estava equivocado. Eis que surge um novo D. Sebastião e com ele o futuro de Portugal ficou assegurado por tão messiânica “visão”.

Confesso que a extensão do título e as 121 páginas me assustaram um pouco e demorei mais meia semana até me habituar à ideia de que tinha de ler a “visão”. O calor do Verão também não ajuda, pois desperta mais vontades de lazer do que desejos de “saber”.

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E, depois, o título é enganador. Indica que se trata de uma “visão estratégica para o plano …” e não do plano propriamente dito. Em Portugal, documentos extensos são habitualmente aqueles que têm pouco para dizer e, por isso, precisam de “palha para encher”. Mas, finalmente, concedi-lhe o benefício da dúvida e entreguei-me devotamente à sua leitura, confirmando que o plano afinal estava lá.

A apreciação geral é difícil de fazer, ao contrário das expectativas que foram geradas pela comunicação social. Ou se calhar por causa disso. Sendo um trabalho feito por uma pessoa só, não devemos desprezar o esforço. Naturalmente, levanta-se a questão, se um trabalho desta generalidade, para ser feito a sério, pode ser escrito por apenas uma pessoa. Tenho muitas dúvidas, mas adiante, pode ser que daqui nasça uma moda.

Mas talvez não tenha sido escrito por uma pessoa só. Não me dei ao trabalho de confirmar o que é que este plano foi buscar aos programas dos partidos do novo “triângulo da governação”. Mas pela orientação das medidas e pela defesa fervorosa do Estado não é difícil adivinhar que PS, PCP e BE deram muita coisa a este plano.

O que é que merece destaque? Nada melhor do que uma frase marcante que ilumina os espíritos mais sombrios ou sossega os mais atormentados (página 5): “Todo este projecto se liga de forma simbiótica com outros pilares do Plano, como o da Reconversão Industrial, ligada à reorganização das cadeias logísticas e de produção e o da reindustrialização do País, baseada no reforço do cluster das energias renováveis, no lançamento do cluster do hidrogénio, no desenvolvimento da bioeconomia sustentável, com a valorização da biomassa florestal, e com o desenvolvimento sustentável de alguns recursos minerais estratégicos”. Nunca tinha visto futuro tão sustentável!

O que mais posso realçar nesta “volumosa visão” sintetizada em tão “singela” frase? Na realidade, nada. Ou talvez as ligações “simbióticas” que o autor apresenta entre as “cadeias”, os clusters, a reconversão industrial e a reindustrialização, que é a segunda desde 2010 e da Estratégia de Lisboa. Tudo bonitas palavras, certamente adequadas a uma inovadora “visão” sobre Portugal.

Ou a cereja em cima do bolo. O cluster do hidrogénio faz justiça ao seu nome: é uma medida de génio, que mete alguma água, é verdade, mas não deixa de ser genial. Só um génio conseguiria tirar de uma lâmpada tamanha proeza. Ainda bem que o resto do Mundo ainda não se lembrou desta nova oportunidade. Portugal vai liderar o hidrogénio graças a um grupo de geniais visionários que percebem muito de economia e que sabem gerir negócios muito bem e, ainda por cima, o fazem com o dinheiro dos outros.

E a Universidade do Atlântico e o centro de climatologia, todos no meio do saudoso Mar, que há décadas nos promete “mundos e fundos”? O único problema que vejo é que a “visão” os remete para o polo dos Açores, o que “cheira” a cunha de quem nisso é pródigo. A Madeira, coitada, fica noutro polo, porque não está sintonizada com estes canais de governação.

Uma curiosidade que eu tinha, era em que é que esta “visão” estratégica iria fugir da dependência de fundos europeus. E aí as minhas expectativas não foram defraudadas. Não fugiu absolutamente nada, a estratégia para Portugal que o Governo encomendou está completamente dependente do dinheiro dos outros. Estamos ao mesmo nível do que se passou no período de 1580 a 1640.

No meio de tanta coisa, consigo ainda encontrar uma “marotice”. A “visão” estratégica é crítica do Governo. O cluster do mar, as obras nos portos, a rede ferroviária, tudo parou nos últimos anos por opção governamental, que privilegiou a redução do horário dos profissionais de saúde e o dinheiro para as clientelas do “arco que se tornou o triângulo da governação” sobre o investimento no futuro do país.

Mas, para grande pena minha, a estratégia falha numa coisa essencial. Portugal precisa do exterior para se desenvolver, de uma forma activa dos mercados externos, ou de uma forma passiva dos fundos dos nossos amigos europeus que nos sustentam há quase três décadas. Mas o texto ainda não se liberta da dupla vertente continental e marítima dos tempos de Salazar e da adesão à EFTA. Já parece como o mercado de arrendamento em Portugal, ou melhor, a falta dele. A culpa de não existir ainda é de Salazar, já o homem morreu há 50 anos. Não encontraram nenhum António Costa (outro que não o Silva) para o aprimorar? Faz falta, porque a Roseta decoradora há já demasiado tempo que está fossilizada.

A páginas tantas perdi a paciência para ler mais. O documento é enfastiante e não resolve os problemas do país. Tem uma utilidade óbvia: serve para que jornais e televisões falem do Governo. Mas isso é aquilo a que se assiste todos os dias, mesmo quando não há nada de interessante para dizer, o que, verdade se diga, acontece na maioria dos casos.

Para o fim, fica o mais importante. Uma coisa que devemos sempre elogiar é a honestidade e, em pelo menos uma ocasião, não se fica desiludido. Uma pequena frase da página 16 resume o essencial da “visão” estratégica e do plano: “Como é que o futuro vai evoluir? Não sabemos.”