Na sua última intervenção no Observador, Jaime Nogueira Pinto fez a difícil tarefa de se meter na pele de Putin, e elencou os motivos que para Putin justificam a invasão da Ucrânia pela Rússia. Um exercício útil, onde grosso modo, os argumentos seguem dois tipos de raciocínios: o da relação histórica entre a Ucrânia e a Rússia e a ameaça sentida pelo alargamento da Nato.
Ora usar a história para justificar as acções do presente é apenas e só um exercício de desonestidade intelectual. Se assim não fosse, então à Espanha não faltavam motivos válidos para invadir Portugal. Ou à França, visto que o conde D. Henrique vinha daquelas paragens. Ou para Marrocos ficar com pelo menos o Algarve. Ou para a Itália se assenhorar da Lusitânia. Quando se trata de justificar o injustificável, qualquer argumento serve. Em especial leituras tortas da História, coniventes com os nossos interesses.
Já quanto ao argumento da ameaça percebida pelo alargamento da NATO, neste caso trata-se do já estafado estratagema de culpar a vítima. Os países do Pacto de Varsóvia, para os mais esquecidos, não estavam lá por saudade e amor ao pai dos povos. Mas sim pela ameaça das kalashnikovs russas. Que por mais de uma vez foram disparadas, não contra a NATO, mas contra as populações do Pacto de Varsóvia. É perfeitamente natural, que com a queda da USSR em 1991, estes países se tenham abrigado junto da organização criada para contrabalançar o peso da USSR. Ou dito de forma muito clara: não foi a NATO que se alargou a Leste, foi a USSR que ao desabar escancarou as portas da prisão onde mantinha o Leste Europeu. E os prisioneiros naturalmente fugiram para longe do carcereiro.
A pobreza óbvia dos argumentos utilizados para invadir a Ucrânia, concordamos, é irrelevante quando se tem um largo exército ao nosso dispor. O que não é irrelevante é Jaime Nogueira Pinto aceitar estes argumentos como inevitáveis. Porque nada do que está a acontecer na Ucrânia e na Rússia é uma inevitabilidade histórica, nem uma consequência lógica da Guerra Fria.
Após a queda da USSR, em Dezembro de 1991, o que falhou foi a capacidade da Rússia e de alguns dos seus ex-satélites soviéticos em construir países capazes de dar prosperidade e um futuro melhor aos seus cidadãos. Poderiam ter copiado o exemplo da China, que com Deng Xiaoping se foi abrindo gradualmente ao capitalismo sem nunca abrir mão do controlo férreo que mantinham sobre o país. Xi Jiping comanda hoje um país muito mais rico, e também muito mais influente a nível mundial que a USSR alguma vez foi. Também poderiam ter seguido o exemplo dos países de Leste, que se abriram à democracia e ao capitalismo. E que passados 30 anos nos estão a ultrapassar nos rankings económicos. Houve sempre escolha e o que não faltou foram exemplos de sucesso para copiar.
Ironicamente, onde o povo russo terá razões de queixa será no fechar de olhos do Ocidente aos muitos atropelos aos direitos humanos. Ao envenenamento de opositores e ao assassinato de jornalistas. Ao estender da passadeira vermelha aos oligarcas russos de fortunas com origens duvidosas. No fundo, ao processo que levou, em passo curto mas firme, ao estabelecer da Rússia como a quinta privada de Putin y sus muchachos. Sobre isto, Jaime Nogueira Pinto não gasta uma única vírgula.
Onde pelo contrário gastou muita tinta foi em saudosismos da Guerra Fria, como se o mundo tivesse de estar para sempre preso numa luta entre gigantes armados com armas nucleares, capazes de aniquilar o mundo várias vezes. Uma época em que boa parte do mundo não era livre, a começar por membros fundadores da NATO. Poderá ser natural para Jaime Nogueira Pinto, nascido e criado no ambiente da Guerra Fria, ter uma certa deferência para com a Rússia, herdeira natural da USSR. Mas, pergunte-se: porquê? A USSR representa o pior que houve no século XX: repressão brutal de populações, ditadura, o Gulag, dachas para alguns, miséria para quase todos. Por que razão alguém no seu perfeito juízo deveria ter uma atitude subserviente perante este tipo de monstruosidades ?
Antes que me venham acusar de lirismo ideológico, próprio de quem nasceu já em democracia e cresceu com a entrada na UE, reafirmo o que já escrevi mais acima. O que conta, no fim de contas, é a capacidade militar de impor a nossa vontade aos outros. Por isso sim, são necessárias forças armadas capazes, bem treinadas e melhor equipadas. Mas são necessárias para defender a liberdade da sociedade, não para oprimir sociedades vizinhas em nome de pretensas glórias passadas.