A polémica acerca da eutanásia tem como pano de fundo a alteração substancial da escala de valores que deveria reger qualquer sociedade humana. Vivemos, no mundo acidental, claramente um final dos tempos, que propiciará a chegada de outros que nos substituirão. Degradação semelhante ao final do império romano do ocidente. Todavia, tal como nesses tempos, outros “bárbaros” chegarão – e felizmente estão a chegar – e a vida continuará. Outros tomarão o testemunho dos valores inquebrantáveis da vida. Sem dramas. Além do mais, a humanidade é muito mais – é cada vez mais – que o denominado ocidente civilizacional.
A eutanásia é a ruptura final no dique humanista que ainda sustentava a barbárie do hedonismo e do relativismo ético, que tudo permite. Confunde-se, propositadamente, liberdade com anarquismo. Tem-se vergonha do sofrimento, dos velhos, dos doentes e não se suporta o que não é politicamente correto.
A eutanásia destrói a dignidade da vida humana, a celebração do quotidiano, a busca incessante da saúde corporal e espiritual e inverte a supremacia da vida sobre o negrume da morte. Permite, não apenas antecipar a morte física, mas abre as portas ao desânimo e à morte espiritual.
Morrer com dignidade – como defendem os apologistas da eutanásia – só se atinge quando se vive com dignidade. E viver com dignidade tem sido, desde sempre, o motivo para as grandes movimentações humanas de massas, para as grandes revoluções que marcaram a história das civilizações, das enormes convulsões sociais, de guerras, de nascimento e morte de ideologias, etc. Viver com dignidade tem conduzido pois aos grandes sobressaltos da humanidade, que fizeram com que hoje se viva melhor do que no passado. Inverter esta luta, é um caminho de morte, de desistência, de egoísmo e de rendição. É um sinal de “fin d’époque”. É baixar os braços.
O alargamento dos cuidados continuados e dos cuidados paliativos a todos tem — e deve — fazer parte do património humano das grandes lutas sociais. Lutar, uma vez mais, por viver com dignidade.
Por outro lado e de facto, o Estado não tem nada de se meter na vida das pessoas. Esse é mais um dos motivos pelos quais sou frontalmente contra a eutanásia: cada um faz da sua vida o que bem entender, embora também dentro das regras da convivência coletiva. Mas dentro da sua esfera íntima, não pedindo a terceiros que, entrando nessa intimidade, terminem com a sua vida. Abomino o suicídio, mas não se peça a outros que operacionalizem essas convicções de morte.
Estando frontalmente contra actos de auto destruição – as pessoas têm de ter todas, um acompanhamento que as salvaguarde de atitudes terminais -, não posso concordar que todos aqueles que têm ideias absurdas sobre a morte, obriguem outros a fazer aquilo para o qual não têm coragem – e não têm coragem, porque são precisamente acções antinaturais.
Se o suicídio é doentio, obrigar o Estado a fazer aquilo que um proto suicida não quer fazer, ainda mais doentio se torna. É meter-se na esfera privada de quem quer morrer. Mais absurdo é obrigar profissionais de saúde – pagos pelos impostos de todos -, que têm como sublime missão a salvaguarda da vida, matarem a pedido, metendo-se, assim, na vida pessoal de cada um.
Finalmente, o Estado Português – que foi dos primeiros a abolir a pena de morte –, antes de tudo o mais, tem sim o dever de cuidar de todos os seus cidadãos mais frágeis, garantindo o mínimo de dignidade de vida para todos, não podendo, mesmo que sibilinamente, convidar à morte, ao desânimo, à derrota e à desistência.
Vida até ao fim!
Militante do PS, antigo dirigente distrital (Santarém)