Li muitas vezes à minha filha, para ela adormecer, “O Gato do Chapéu”, do Dr. Seuss, autor famoso nos Estados Unidos, mas não em Portugal. A tradução, numa excelente edição da Gradiva, era em verso. Nunca li o original, mas as quadras em português eram bem ritmadas e tinham uma musicalidade que as tornavam eficazes para adormecer, tanto quem as ouvia com quem as lia. Este foi o único livro de Dr. Seuss que alguma vez li (ou vi, porque também tinha desenhos).
Mas eis que a editora americana que detém os direitos dos livros de Dr. Seuss optou por navegar a onda “woke” retirar da circulação dois títulos do mesmo autor, com o argumento de que continham estereótipos de japoneses. Isto, partindo de uma editora que legalmente é a única habilitada a publicar o autor, é na prática um ato de censura imposto por um privado. Não se trata de uma proibição legal (por enquanto), mas tem quase o mesmo efeito prático, uma vez que torna muitíssimo mais difícil o acesso aos livros.
Stephen Colbert, o apresentador do “Late Night Show” da CBS, disse que estava de acordo – que lhe parecia razoável uma editora retirar certos livros do Dr. Seuss do mercado para isolar as crianças dos estereótipos –, o que me faz pensar que ele, se pudesse, faria o mesmo. Ou talvez não. Talvez dissesse isso apenas para parecer alinhado com os tempos e não perder audiência.
Há 464 anos foi pela primeira publicado o Index Romano de Livros Proibidos, por iniciativa do Papa Paulo IV. A censura católica durou quatrocentos anos. O objetivo era nobre, como sempre: formatar bons leitores e protegê-los de leituras perniciosas.
O Index era afixado nas portas das igrejas, pelo que, paradoxalmente, fazia publicidade a livros que, de outra forma, poucos saberiam que tinham sido escritos.
Tal como em “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, no qual um livro de Aristóteles sobre a comédia foi escondido por um monge preocupado com o efeito perverso que ele poderia ter sobre a humanidade – escondido, mas não destruído –, também os livros que a Igreja proibia não eram todos destruídos, sendo alguns exemplares conservados, escondidos dos olhares comuns e apenas acessíveis a leitores devidamente autorizados.
Por vezes os livros não eram proibidos de forma definitiva. Narrativas, romances cavalheirescos ou contos eróticos ficavam guardados nos arquivos inquisitoriais até serem devidamente purgados, como se no Purgatório estivessem. Por exemplo, um conto de Boccacio foi proibido, mas voltou ao domínio público depois de “corrigido”: os “monges que traficavam ilicitamente raparigas para as suas celas” foram substituídos por “estudantes que discretamente levavam raparigas para os dormitórios”. Isto foi em 1573. Não é espantosamente parecido com o que se faz hoje, em que até livros para adultos, como os de Agatha Christie, são alvos de “comités de sensibilidade”?
Quem censura ou “corrige” autores falecidos julga-se num nível ético de tal forma elevado que se sente legitimado para impor ao presente e ao passado a sua visão moral do mundo. Está a afirmar, implicitamente, que os seus princípios são absolutos e eternos e podem, por isso, ser utilizados para condenar um autor de qualquer época.
Se os princípios morais fossem absolutos e eternos, então não teriam certamente uma origem humana – existiriam para além dos tempos e das mudanças de compreensão dos homens. A moral do censor seria então uma moral revelada, a que só os iluminados, como ele, teriam acesso.
Daqui se infere que o “wokismo” tem, por isso, a natureza de uma religião.