Um estudo sobre crianças sinalizadas pelas comissões de proteção de menores revela que apenas em 17% dos casos analisados os relatos dos jovens vítimas de maus-tratos coincidem com as provas que as comissões conseguiram reunir.
“Vários tipos de maltrato na infância não são detetados pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), mesmo quando as crianças são sinalizadas” por estes organismos, conclui o estudo de doutoramento realizado na Universidade do Minho, Escola de Psicologia.
O autor da investigação, Ricardo Pinto, disse à agência Lusa que o estudo procurou saber como é que jovens que foram identificadas pelas CPCJ como maltratados na infância descreviam as experiências abusivas de que foram vítimas.
Para isso, foram consultados processos arquivados em CPCJ de 380 crianças, com idades entre os cinco e os 12 anos, sinalizadas entre 1999 e 2006.
Destas crianças, foram localizadas 136, entre 2010 e 2011, já adolescentes e jovens adultos (com idades entre os 14 e 23 anos) que voluntariamente decidiram participar no estudo.
Um dos objetivos do estudo foi confrontar a forma como contam a sua história de infância com a informação que estava documentada nos seus processos.
“O que verificámos foi que o acordo entre aquilo que os jovens relatam em termos de experiências adversas e a informação que constava nos processos é muito baixo (17%)”, adiantou Ricardo Pinto.
A investigação revela que houve 40 jovens que relataram abuso emocional, mas esta informação apenas constava em três processos, de 37 jovens que descreveram abuso físico, apenas 12 tinham esta informação no seu processo, e de 23 que disseram ter sido vítimas de abuso sexual, apenas em oito tinham esta situação no processo.
No caso de 70 jovens que relataram negligência emocional, apenas 26 tinham esta informação no processo. Houve ainda 48 jovens que contaram ter sido vítimas de violência doméstica, mas apenas 18 tinha esta informação registada.
A negligência física, “a adversidade mais reportada às comissões”, foi o tipo de maltrato que “mais consistência” registou: de 49 jovens que relataram esta situação, apenas num processo não constava esta informação.
De acordo com o estudo, a dificuldade é maior quando o tipo de maltrato é mais facilmente ocultado pelo agressor (abuso sexual) e menos observável (abuso ou negligência emocional). Já a violência doméstica poderá não ser alvo de avaliação porque o foco da atenção é o maltrato direto à criança.
Para Ricardo Pinto, o facto de os jovens contarem situações que não correspondem com a informação presente nos processos “é o suficiente para se tentar perceber o que se passou”.
Esta situação pode colocar várias questões: “será que os jovens estão a mentir? Será que estão a revelar coisas que não aconteceram? Não há forma de saber, mas se esse argumento é válido foram muitos jovens a fazer isso”.
O investigador advertiu que “há uma elevada probabilidade de uma criança quando é abusada fisicamente, também ser negligenciada e abusada sexualmente”.
“Isto exige sensibilidade do técnico [da comissão] e tempo para recolher” informação de várias fontes. Contudo, a sua tarefa “não será fácil” porque os maus-tratos “poderão ser ocultados por quem os perpetra”.
A investigação também verificou casos em que os jovens ocultaram informação que constava nos processos.
“Muitas vezes têm receio de contar o que se passa por vergonha ou porque são ameaçados pelos agressores”, mais um fator que “dificulta o trabalho do técnico a encontrar a verdade”.
O estudo aponta a necessidade de mais meios humanos e mais formação dos profissionais que trabalham nesta área, no sentido de aumentar a eficácia na sinalização de vários tipos de abuso.
Em 2014, 8.470 crianças e jovens estavam em instituições de acolhimento.