Quando o pai de Mafalda foi diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), a filha não fazia ideia do que era. Nunca tinha ouvido falar da doença. Só depois percebeu que era a mesma que tinha surpreendido o físico Stephen Hawking aos 21 anos – uma doença neurológica degenerativa progressiva e rara, onde os neurónios responsáveis por conduzir a informação do cérebro aos músculos do corpo morrem precocemente. Não tem cura.

O pai de Mafalda é Salvador Guedes, na altura presidente executivo da Sogrape, empresa de vinhos que é a casa mãe de marcas como o Mateus Rosé, Gazela, vinho do Porto Sandeman ou Ferreira. Foi diagnosticado com ELA em julho de 2012 e em janeiro de 2015 passou a pasta da presidência ao irmão, Fernando da Cunha Guedes. A família uniu-se na luta. A Sogrape também.

“A Sogrape é como se fosse uma família e toda a gente vive esta doença como se fosse nossa e não só do meu pai”, conta ao Observador Mafalda Guedes, gestora de mercado na Sogrape e a quarta geração da família na empresa.

Três meses depois de ter passado funções ao irmão, Salvador Guedes fez nascer o “Todos Contra ELA,” projeto de angariação de fundos que revertem para a Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica (APELA). Entre um ciclo de jantares-concerto, que o músico Miguel Araújo estreou a 23 de abril, um leilão solidário na Torre de Londres a 7 de maio: uma garrafa do mais antigo vinho do Porto da Ferreira, o Vintage 1815. Base de licitação: quatro mil libras, ou seja, cerca de 5.420 euros.

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Com esta iniciativa, a Sogrape alia a responsabilidade social às celebrações do bicententenário da batalha de Waterloo, na qual o primeiro Duque de Wellington, Arthur Wellesley pôs termo ao império de Napoleão. Para comemorar a vitória, os ingleses batizaram o Porto Ferreira de 1815 com o nome “Waterloo Port”. Por detrás do evento, Salvador Guedes.

“A ideia partiu do meu pai. É ele quem organiza tudo”, explica Mafalda Guedes. No primeiro concerto solidário, que decorreu a 23 de abril, na Casa da Música, no Porto, o “Todos Contra ELA” angariou cerca de seis mil euros. Para participarem, os participantes pagaram 80 euros por pessoa.

“Até há bem pouco tempo, a APELA não tinha dinheiro nenhum. Algum do dinheiro que angariarmos com esta iniciativa vai para investigação e outra é para ajudar as famílias”, explica Mafalda. O objetivo é que o “Todos Contra ELA” se torne numa associação, com psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas da fala, que ajude quem está doente.

“Nesta doença, a pessoa fica completamente dependente de outros. É preciso fisioterapia, cama articulada, terapeuta da fala, etc. O meu pai tem a sorte de poder suportar esses custos, mas outras pessoas não. Isto surgiu para ajudar as pessoas a lidar com esta doença, a dar-lhes melhor qualidade de vida. A elas e às famílias”, afirma Mafalda Guedes.

À iniciativa juntaram-se outros nomes do panorama artístico nacional, como Paulo Gonzo, Pedro Abrunhosa, António Zambujo e Carminho. Há concertos agendados na Casa da Música e no Centro Cultural de Belém até setembro de 2015. Os artistas cedem a voz e o talento. As salas de espetáculo, o espaço.

“Isto [o Todos Contra ELA] é mesmo necessário. O meu pai conseguiu lidar com isto de uma forma… Nem eu sei onde é que ele vai buscar forças. Em julho de 2014, ele viajou para a Argentina, Chile e Nova Zelândia e concretizou negócios. Não baixa os braços”, conta Mafalda Guedes.

Um leilão “emocional e histórico” na Torre de Londres

A ELA não tem cura. E paralisa o corpo humano numa mente sã. Foi ela quem prendeu Stephen Hawking a uma cadeira de rodas – a história foi recentemente contada em “A Teoria de Tudo”, um filme realizado por James Marsh e que levou Eddie Redmayne a vencer o óscar de melhor ator, pela interpretação que fez do astrofísico. Também foi a ELA que tirou a vida a Zeca Afonso em 1987.

Fernando da Cunha Guedes, presidente da Sogrape, conta ao Observador que o leilão desta quinta-feira tem uma “carga emocional e histórica muito grande”. Pela causa e pelo aniversário da batalha. “É uma doença muito dura, muito difícil. E os fundos vão ser todos doados para ajudar não só os pacientes, mas também as famílias”, diz.

Na Torre de Londres, na quinta-feira, vão estar presentes apreciadores de vinho, colecionadores e apreciadores de arte em geral, da Europa, Angola ou Brasil. “Esta garrafa também é, de certa forma, uma obra de arte”, diz Fernando da Cunha Guedes.

Na garrafeira histórica das Caves Ferreira, estão cerca de 30 mil garrafas produzidas com colheitas entre 1815 e 2011. Um legado que Dona Antónia – “a Ferreirinha”, como era chamada – começou e que a Sogrape continuou quando adquiriu a Companhia Agrícola e Comercial dos Vinhos do Porto A.A. Ferreira, em 1987.

Entre os labirintos da garrafeira das caves Ferreira, bem perto do cais de Gaia, há vinho do Porto de todas as idades. Armazenadas à temperatura ambiente, a única luz que entra é a de duas lamparinas.

“Vamos guardando garrafas de vários anos. Cerca de 40 ou 50, porque isto não é um stock comercial, não é para vender. Tal como a Dona Antónia nos deixou este legado, a Sogrape tem a missão de o preservar”, conta Fernando da Cunha Guedes.

Em 2011, nas comemorações do bicentenário de Dona Antónia, a Sogrape abriu uma garrafa de 1815. A próxima será leiloada em Londres. Quem a vai abrir (se é que vai) não se sabe, mas a APELA agradece, a Sogrape agradece. E Salvador Guedes também.