“Eu neste preciso momento abandono o programa. Já chega”, disse Manuela Moura Guedes antes de se levantar e cumprir a sua promessa de sair em directo da emissão do debate semanal “Barca do Inferno”, da RTP Informação.

A decisão foi tomada pela antiga jornalista da TVI depois de o tom em estúdio ter subido consideravelmente a propósito da discussão em torno da sustentabilidade da segurança social e das soluções apresentadas pelo Partido Socialista para esta questão, pelas quais passa uma descida da Taxa Social Única (TSU) dos trabalhadores.

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Depois de uma intervenção da deputada socialista Isabel Moreira, que tal como Manuela Moura Guedes é comentadora residente do programa, a ex-jornalista deixou-lhe a seguinte pergunta:

“Eu gostava só de perguntar como é que a descida da TSU – estou a perguntar-te Isabel, não sei se estás cá. Como é que a descida da TSU vai garantir emprego, crescimento, salários… Como é que vai ser? Garante? Garante como?”

Depois de uma breve troca de palavras acesas, onde as comentadoras falaram umas por cima das outras – aliás, como é costume neste programa – a voz de Manuela Moura Guedes ouviu-se mais alta do que todas. “Estou a perguntar!”, repetiu mesmo, esperando a resposta de Isabel Moreira.

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Esta, por fim, respondeu-lhe:

“A descida de três anos imediata da TSU representaria um acréscimo de disponibilidade financeira nos trabalhadores e com isso uma ajuda no crescimento da economia com os efeitos que eu expliquei. Provavelmente não ouviste porque não estarias cá.”

Não satisfeita com esta resposta, Manuela Moura Guedes pediu mais explicações à deputada socialista, recordando o efeito de políticas semelhantes no passado. E fê-lo, de novo, com a voz particularmente elevada. Nilton, o humorista a quem cabe a tarefa de (tentar) moderar este programa semanal, interpelou a ex-jornalista e disse-lhe: “Ela já respondeu!”.

Perante a insistência renovada de Manuela Moura Guedes, Nilton reagiu como nunca o tinha feito antes no programa e lembrou-lhe: “Manuela! Estamos em direto! Alguma boa educação, tá bem? Então, pronto. Não atacas, portanto vamos com calma.” Por fim, virou-se para uma das quatro painelistas, Sofia Vala Rocha, para prosseguir o programa. “Sofia, avançamos.”

Só que não avançaram. Foi aí que a antiga apresentadora do Jornal Nacional da TVI disse as fatídicas palavras: “Eu neste preciso momento abandono o programa”.

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“Eu peço imensas desculpas aos espectadores, mas quando há um debate, pergunta-se e as pessoas respondem. Não viram a cara para o lado”, disse ainda, em alusão aos momentos que protagonizara pouco tempo antes com Isabel Moreira.

Manuela Moura Guedes levantou-se, tirou o microfone e, quando já estava pronta a abandonar mesmo o estúdio, a deputada socialista lançou-lhe uma última provocação: “Espero que entretanto já saibas que morreram trabalhadores na greve de 82”.

Este aparte diz respeito a um programa passado, em que Isabel Moreira e Raquel Varela, também ela participante do “Barca do Inferno”, falaram de duas mortes que ocorreram na sequência de uma carga policial na madrugada do 1º de maio de 1982 no Porto, não de uma greve. Segundo escreveu a deputada socialista na sua conta de Facebook, Manuela Moura Guedes não acreditou na veracidade destes factos. O post, escreveu Isabel Moreira, serviu como “um abraço aos familiares e amigos dos grevistas que ontem [dia do programa em questão] tenham tido a infelicidade de ouvir gargalhadas sobre os seus mortos [os mortos não eram grevistas, mas activistas ligados à CGTP que preparavam o 1º de Maio]”.

Depois daquela interpelação final de Isabel Moreira, a ex-jornalista respondeu-lhe: “Se me tivesses dito logo que tinha sido no 1º de maio em que houve entre a UGT e a CGTP pancadaria, eu talvez me lembrasse.”

E aí abandonou, de vez, o estúdio do “Barca do Inferno”. Nilton, a fazer jus à sua profissão de humorista, ainda tentou aligeirar o momento. “Momento Pedro Santana Lopes na Barca do Inferno. Pedimos desculpa a José Mourinho, que acabou de chegar à Portela e tivemos aqui um percalço”, disse, em alusão à vez em que o antigo primeiro-ministro saiu do estúdio da SIC Notícias depois de ter a sua intervenção interrompida por uma notícia de última hora que dava conta da chegada de José Mourinho ao aeroporto da Portela.

Logo após o programa, Isabel Moreira reagiu ao incidente na sua conta de Facebook, no qual se referiu extensivamente a Manuela Moura Guedes sem, no entanto, lhe referir sequer o nome. “O moderador fez o seu papel de forma exemplar e a profunda superficialidade de uma das participantes posta a nu ao longo do programa viu ali uma oportunidade de saída de vítima de ‘má educação'”, escreveu. “As participantes no programa não são iguais, há quem se prepare e há quem debata. E é um bom programa. Sempre o defenderei. O programa. Não quem saiu tarde. Num desrespeito total pelo público.”

No final da tarde de terça-feira, Manuela Moura Guedes rompeu o silêncio e deixou uma mensagem no Facebook de agradecimento “às muitas e muitas pessoas” que a “compreendem. E deu a entender que o que se passou na segunda-feira à noite na RTP teve a ver com respeito: “Há um mínimo de condições que se exige para que haja respeito, e já só falo daquele respeito que se tem por si próprio sem o qual deixamos de ser quem somos”.

Num comunicado, a direção de informação da RTP reagiu ao incidente da seguinte maneira: “A situação verificada ontem na Barca do Inferno será sempre, do ponto de vista ideal, algo a evitar mas possível de suceder em debates em direto”.

Sem surpresa, é agora sabido que a ex-jornalista não vai voltar ao programa. Este, por sua vez, terá mais três emissões. Depois disso, avança o Expresso, o “Barca do Inferno” não deverá ter continuidade.

Quanto à vaga deixada na noite de ontem, ainda não se sabe se haverá uma substituta para Manuela Moura Guedes ou se o programa vai continuar apenas com as três comentadoras que restam: Isabel Moreira, Sofia Vala Rocha e Raquel Varela.

Programa com “pessoas que pensam pela própria cabeça”

O programa de debate “Barca do Inferno” foi pela primeira vez para o ar a 6 de outubro de 2014. Na altura, José Manuel Portugal, então diretor de informação da RTP, disse ao jornal i que o critério de selecção “foi escolher mulheres inteligentes e com pensamento independente, pessoas que pensam pela própria cabeça”.

Ainda assim, o programa teve logo uma demissão após o primeiro episódio. Dessa vez, foi a psicóloga Marta Gautier a fazê-lo, depois de ter apresentado uma preparação para discutir os temas da actualidade mais ligeira do que as suas colegas de painel. José Manuel Portugal falou de uma “falta de química” entre Gautier e as restantes comentadoras.

Na altura, Manuela Moura Guedes foi um pouco mais direta do que o então diretor de informação da RTP quando reagiu à opinião da psicóloga quanto ao impasse que se vivia então na Justiça. “Isto é a visão da Marta que parece-me que está um bocado longe e que não se interessa muito pelas coisas da justiça, ou pelo menos pelo mundo da informática da justiça. É a leitura possível da Marta.” Recorde-se que, naquela altura, a plataforma Citius deixara de funcionar e por isso os tribunais do país inteiro pararam.

Marta Gautier foi depois substituída por Sofia Vala Rocha, militante do PSD.