Quem fala com todos, pode acabar aliado de algum. E António Costa está neste momento falar à esquerda e à direita. A ordem não é de menosprezar: o homem que se apresentou à candidatura à liderança do partido defendendo um governo à esquerda, e que fez o discurso na campanha virado para esse lado, escolheu falar primeiro com o PCP e depois com o BE – mais uma ordem a não menosprezar, mas já lá vamos. E se o socialista estiver mesmo apostado em juntar comunistas e bloquistas no apoio a um Governo de esquerda, mesmo não tendo sido o partido mais votado? Costa está mesmo a fazer o número para colocar culpas no PCP e no BE?

Na série televisiva Borgen, Birgitte Nyborg chegou a primeira-ministra não tendo sido a força política mais votada. Mas era aquela que conseguia juntar debaixo do mesmo chapéu vários partidos que sustentassem o governo. A ficção dinamarquesa esteve longe da realidade portuguesa no sentido em que este cenário era impensável até às eleições de dia 4. Agora não. Costa sempre se apresentou como o homem capaz de unir as esquerdas e pode estar a pensar ir além do jogo político de devolver à esquerda a pressão que PCP e BE lhe puseram em cima logo na noite das eleições. Foi essa, aliás, a primeira leitura. O socialista pressionado pela esquerda à sua esquerda, decidiu pedir-lhe uma “clarificação”, que é como quem diz: até onde estão dispostos a ir?

Tendo em conta vários indícios, há que questionar se Costa não está mesmo a falar a sério e a pensar num Governo de esquerda, mesmo que isso seja para muitos uma “utopia” e por isso mesmo impossível.

Os indícios

Números – Sem se conhecerem ainda os números da emigração (faltam atribuir 4 deputados), PS+BE têm os mesmos 104 deputados que PSD+CDS. OS 17 do PCP serviriam para aprovar um governo ou documentos à esquerda, mas não à direita. Neste cenário, os socialistas precisam sempre do voto a favor do PCP, abstenção não chega. Contudo, os mandatos da emigração podem desfazer o empate e podem dar poder ao deputado do PAN e ao Nós Cidadãos eleger (há a possibilidade de elegerem um deputado no círculo fora da Europa).

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A equipa – Para as conversas à esquerda com o PCP e o BE, António Costa rodeou-se de socialistas mais à esquerda, como Ana Catarina Mendes e Pedro Nuno Santos. Mas mais que isso, levou um não-político para as conversas: Mário Centeno. O homem das contas chegou com uma pasta na mão. Costa levou para as negociações políticas o homem dos números, para fazer número como um jogador de Poker ou não é mesmo bluff?

A ordem – António Costa saiu da reunião da Comissão Política Nacional com mandato para falar com todos, à esquerda e à direita. Mas houve diferenças no tratamento, que começou logo com a ordem das conversas: primeiro a esquerda e só depois, ainda não se sabe quando, a coligação PSD/CDS. E à esquerda a ordem também merece avaliação: primeiro o PCP, que admitiu apoiar um Governo à esquerda mais do que fazer parte dele, para saber até que ponto os comunistas estão dispostos a dar a bênção a um governo de esquerda.

O discurso – Na reunião da direção alargada do partido, Costa não terá mostrado inclinação nem para a esquerda nem para a direita, mas é certo que quando saiu da sede do partido pediu “clarificação” à esquerda e disse apenas que a coligação PSD/CDS tinha o “ónus” de encontrar uma solução de governabilidade. Não se colocou de fora de nenhum tabuleiro, mas colocou-se de fora do bloco central. E conversar com a coligação? Sim, quando Passos quiser, mas só depois da esquerda. Acresce ainda que quando respondeu aos jornalistas, Costa vincou a necessidade de saber, afinal, o que quis Jerónimo de Sousa dizer e acentuou a posição do BE dizendo que Catarina Martins “reafirmou já depois das eleições aquilo que tinha dito no debate na televisão”. E o que tinha dito no debate? As condições para uma conversa com o PS.

O tempo – A comissão política do PS deu uma coisa a António Costa: tempo. Os críticos internos fecharam a torneira pelo menos para já e deram até ao líder do PS tempo para mostrar o que vale até depois das eleições presidenciais. E com este tempo no bolso, Costa pode espraiar-se em negociações, mas q.b. porque há um eleitorado que não está habituado a estas andanças e pode perder o capital que lhe resta. Se as longas negociações para formação de coligações na Europa servem de muleta para o discurso do Presidente, há no PS quem lembre que estas conversas à esquerda podem ser mais longas, demoradas e em várias voltas. Podem até reunir-se mais vezes até haver uma solução.

A personalidade – Foi o próprio líder do PS que se repetiu durante a campanha eleitoral a puxar dos louros de acordos à esquerda na Câmara de Lisboa. Bem, a situação era diferente uma vez que em Lisboa, Costa ganhou por minoria. Agora perdeu. Mas a personalidade política puxa dessas ideias que ainda não lhe terão saído do pensamento: fazer no país o que fez na câmara, ou seja, começar com uma minoria em coligação à esquerda e passar para uma maioria absoluta nas eleições seguintes.

As condições

Do PCP para o PS – Jerónimo de Sousa nunca foi claro nas “condições” para uma negociação com os socialistas. Disse que os comunistas estavam dispostos a viabilizar um governo desde que o PS deixasse cair a política de direita. Mas há pontos que não são comunicantes como as nacionalizações ou os compromissos sobre a dívida pública. No fim da reunião desta quarta-feira com o PS, Jerónimo de Sousa enumerou as prioridades: aumento salário mínimo (aumento para 600 euros), combate à precariedade, valorização da contratação coletiva, reposição salários, pensões e salários, política fiscal justa que tribute fortemente os grupos económicos, reforço e diversificação de receitas da segurança social, mais profissionais de saúde e eliminação de taxas moderadoras, reversão de processos de concessão de empresas de transporte, revogação da última alteração à lei do aborto.

Do BE para o PS – As condições mais claras saíram do debate entre Catarina Martins e António Costa. A coordenadora do Bloco terminou o debate a lançar a escada a Costa dizendo que se o socialista quisesse lá estaria no dia 5 à espera que o telefone tocasse. Mas para se sentarem à mesa, Catarina, que cresceu em deputados, quer que o PS abdique de: 1) descida da Taxa Social Única; 2) Manutenção do congelamento das pensões; 3) mecanismo conciliatório para fim de contratos a prazo. A quarta condição vinha agarrada a estas: a renegociação da dívida. Mas se esta poderia ser a matéria mais difícil para um entendimento, é nas palavras que se pode encontrar um consenso. António Costa nunca disse ser contra uma renegociação da dívida, disse, isso sim, que ela não se pode fazer de forma unilateral. Ou seja, que para uma descida da dívida pública, tem de ser concertada na Europa, Portugal não pode agir sozinho. Acresce ainda que Costa tem na sua equipa alguns membros que defendem essa negociação. E fizeram-no em conjunto… com bloquistas. Pedro Nuno Santos assinou um estudo com Francisco Louçã há um ano sobre uma renegociação da dívida. E Costa também falou do assunto.

Do PS para os dois – As condições enunciadas por Costa na noite de domingo são: virar a página na política de austeridade e na estratégia de empobrecimento, a defesa do Estado Social e dos serviços públicos, o relançamento do investimento na ciência, inovação, educação, formação e cultura, o respeito pelos compromissos europeus e internacionais.

As dúvidas

São sobretudo mais políticas. Pode o PS formar um governo com o BE quando disse que respeitava os resultados eleitorais e que cabia à coligação o ónus de conseguir um governo de estabilidade? Pode o PS formar um governo de esquerda não tendo sido o partido mais votado? Como reagiriam os portugueses a esta novidade? Conseguiria Costa que o Presidente da República aceitasse esta solução? Como iria Costa aguentar o cimento de uma coligação a dois+apoio de outro durante uma legislatura? Conseguindo-o, como seria este governo visto pela Europa? Que pressões vai ter Costa (europeias, de empresários, de banqueiros e do próprio partido) para não enveredar por esta solução? Como garantir a sobrevivência do partido (além da própria) num governo que nasce “atípico”?

Pode o PCP viabilizar um governo PS/BE sem perder eleitorado numas futuras eleições? Cederá Jerónimo em alguns pontos mais sensíveis como a pertença de Portugal à NATO ou abdicar de pensar no estudo de uma saída da moeda única?

O mesmo vale para o Bloco: Pode o BE entrar num Governo com o PS que seja mais ao centro-esquerda e menos à esquerda? Conseguirá ser o CDS da esquerda, abdicando de políticas mais radicais? Como o fará sem perder eleitorado numas futuras eleições?

Esta seria uma lista interminável. Certo é que Costa terá pensado em todas estas dúvidas e mesmo assim decidiu falar à esquerda primeiro – número político de sobrevivência ou talvez não.