Título: O Adeus ao Império – 40 anos de descolonização portuguesa
Organização: Fernando Rosas, Mário Machaqueiro, Pedro Aires Oliveira
Editora: Nova Vega
Preço: 21,20 €
“Portugal nunca pôs, nem poderia pôr em causa a data histórica de 11 de Novembro, fixada para a independência de Angola, que não lhe compete outorgar, mas simplesmente declarar. Nestes termos, em nome do Presidente da República Portuguesa, proclamo solenemente — com efeito a partir das 0 horas do dia 11 de Novembro de 1975 – a independência de Angola e a sua plena soberania, radicada no Povo Angolano, a quem pertence decidir as formas do seu exercício.” Esta passagem do discurso proferido pelo alto-comissário Leonel Cardoso, na cerimónia de transferência de soberania, realizada em Luanda a 10 de Novembro de 1975, deixa patente a controvérsia que envolveu a formalização da independência de Angola. De acordo com a posição dominante na Comissão Nacional de Descolonização e no VI Governo Provisório, eram três as hipóteses que se colocavam a este respeito: o reconhecimento do MPLA como único representante do povo de Angola; o reconhecimento de um governo de unidade nacional, constituído por entidades não directamente ligadas aos movimentos de libertação; a entrega da soberania ao povo angolano. As duas primeiras possibilidades foram descartadas, com base na violação dos acordos do Alvor ou pelo seu manifesto utopismo. Após hesitações de última hora, a opção recaiu sobre a terceira hipótese e só a 22 de Fevereiro de 1976 Portugal viria a reconhecer o governo da República Popular de Angola, sendo o 82.º país a fazê-lo. As relações entre os dois Estados não começavam da melhor forma, facto que ensombrará durante décadas o seu relacionamento.
Quarenta anos passados sobre estes acontecimentos, a imensa actividade editorial acerca dos processos de descolonização portugueses deixa patente que este continua a ser um tema fracturante e que ainda existem feridas na memória colectiva, ou pelo menos em sectores da sociedade portuguesa, sobre o fim do então designado império ultramarino. O inquisitorial dedo que pende sobre as cabeças de alguns dos dirigentes político-militares dos anos de 1974-1975 — Costa Gomes, Vítor Crespo, Rosa Coutinho e Melo Antunes –, que domina a capa do livro Acusamos! A descolonização (Edição Literal e jornal O Retornado, Lisboa, 1976), permanece em riste, alimentando uma literatura que assume um tom polémico e acusatório.
Conscientes das dificuldades em desenvolver um debate sereno sobre o passado colonial e a forma como se procedeu à descolonização, três autores de referência da história contemporânea portuguesa — Fernando Rosas, Mário Machaqueiro, Pedro Aires Oliveira –, congregaram esforços para trazer ao público uma obra colectiva que se propõe, sem qualquer pretensão em esgotar o tema, revelar trabalhos académicos sobre o tema, numa perspectiva de divulgação.
A desconstrução dos mitos
Sob o sugestivo titulo O Adeus ao Império, numa cuidada edição da Nova Vega, o livro reúne um conjunto de 13 ensaios de especialistas nacionais, africanos e anglo-saxónicos, que nos apresentam, numa óptica transversal e, na maior parte dos casos, inovadora, os aspectos mais significativos da descolonização portuguesa. Ainda que, em nosso entender, alguns desses estudos pequem por não mencionar obras de referência que já existem sobre a temática e o período em apreço, e, ainda, pela compreensível necessidade de síntese que um livro deste tipo pressupõe, trata-se de uma obra equilibrada e de grande qualidade.
A par dos expectáveis capítulos dedicados aos processos de descolonização da Guiné (a cargo de António E. Duarte Silva, com importantes dados sobre o destino dos antigos combatentes guineenses que tinham integrado as FAP), Cabo Verde (da responsabilidade de Ângela Benoliel Coutinho), Moçambique (de Amélia Neves de Souto), Angola (Fernando Tavares Pimenta), São Tomé e Príncipe (Augusto Nascimento) e Timor (Fernando Augusto de Figueiredo), este livro apresenta também uma reflexão sobre “retorno e recomeços” (de Marta Rosales), a memória da descolonização (de Mário Machaqueiro), as visões sobre o fim do império (Bruno Cardoso Reis) ou a descolonização portuguesa no “puzzle internacional” (Pedro Aires Oliveira). Segundo Pedro Oliveira, ainda que o fim do colonialismo português se deva essencialmente a factores endógenos, é “indiscutível que várias dinâmicas internacionais, ou até mesmo transnacionais, contribuíram para que actores influentes na política e na sociedade portuguesa tomassem consciência dos riscos inerentes a uma resistência cega à descolonização”.
Da autoria de Fernando Rosas, o primeiro capítulo da obra reveste-se de particular importância ao desmitificar a ideia de que o anticolonialismo foi, desde cedo, uma bandeira das oposições, deixando patente a ambiguidade de algumas das posições assumidas pelos antifascistas portugueses neste domínio. O mote está dado para a desconstrução de outros mitos que, ao longo das últimas décadas, têm dominado a literatura sobre a descolonização. Malyn Newitt, por exemplo, empenha-se em desconstruir a ideia de que a luta pela independência se circunscreveu a alguns movimentos singulares e decorreu sob o signo da unidade. No caso de Angola, por exemplo, o autor chama a atenção para o facto de em 1960 existirem pelo “menos de 58 organizações nacionalistas angolanas activas em Leopoldville, actual Kinshasa”. No seu balanço militar nos três teatros de operações, Norrie MacQueen polemiza sobre se houve uma ou várias guerras coloniais, destacando o “equívoco enganador” dos que afirmam ter existido um único “equilíbrio de forças” em África em 1974. Recuperando uma ideia já enfatizada por outros autores, recorda que “foi a política – nacional e internacional – e não a capacidade militar que determinou o curso dos acontecimentos”.
Finalmente, uma referência à “inelutável independência ou os (in)esperados ventos de mudança em São Tomé e Príncipe”, da autoria de Augusto Nascimento, provavelmente um dos capítulos mais inovadores da obra, deixando patente como a descolonização “chegou inesperadamente para o comum dos são-tomenses”. Segundo o autor, “a pressupor-se acriticamente a irradiação de sentimentos e de ideias independentistas nas ilhas, coarcta-se a compreensão, não só do que se passou entre 25 de Abril de 1974 e 12 de Julho de 1975, como também da construção do país”.
No seu Portugal em Transe, José Medeiros Ferreira observava que “escrever sobre a descolonização é operar num domínio ainda sacralizado da história nacional”. Da mesma forma, na introdução desta obra que agora vem a lume, Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira interrogam-se se, 40 anos volvidos sobre os acontecimentos, a história conseguiu estabelecer um quadro interpretativo que permita um debate sereno sobre o fim do ciclo imperial português, observando que “talvez ainda não tenhamos chegado a esse ponto”. Partilhando desta posição, não podemos deixar de destacar o importante contributo deste livro para a compreensão da descolonização portuguesa e do Portugal contemporâneo.
Maria Inácia Rezola é historiadora e docente da Escola Superior de Comunicação Social