Título: FBA. O design gráfico como prática de clarificação
Autor: João Bicker
Editora: Almedina
Páginas: 347
Preço: 49,90 €

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A ganhar prémios e créditos internacionais, o design português (melhor seria dizer: o design feito por portugueses) tem merecido um redobrar de exposições e bibliografia impulsionado por uma nova geração de estudiosos, curadores e profissionais empenhados em construir uma nova historiografia artística no nosso país. Sucessivas monografias sobre designers defuntos, retirados ou activos dão-nos conta de um panorama inesperadamente rico e multifacetado, apesar das queixas, legítimas e fundadas, de que o design gráfico não influenciou nem influencia ainda capazmente a indústria, os serviços e o comércio de proximidade, produzindo logótipos, sinalética e demais identidade corporativa. E este défice é de difícil solução, porque, faltando-nos o lastro antigo das boas práticas conservadoras que identificam as culturas consolidadas, não há Experimentas ou anos nacionais do design que nos valham, por muito meritórios que sejam e são.

Um aspecto é particularmente elucidativo: temos uma lamentável paisagem de dísticos e toldos de lojas e estaminés que embrutece ainda mais o espaço urbano (“o país feio” a que Souto Moura se referia há dias), e que contrasta em absoluto, por exemplo, com o que havia nas primeiras décadas do século passado, quando as ruas dos centros históricos se exibiam tipografadas por enormes letreiros de vidro com letras douradas sobre fundo preto, letras em metal, pedra cinzelada ou azulejo nas fachadas comerciais, e depois, por coloridos néons caligráficos — hoje poupados à sucata por privados diletantes ou vendidos em lojas vintage a preços de arqueologia urbana.

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A aflitiva indigência gráfico-visual dos outdoors eleitorais diz muito acerca do padrão estético em que vivemos ou que toleramos. Num grande número de serviços ou ocasiões, uma folha impressa a laser e colada com adesivo nos cantos é quanto basta para comunicar o que quer que seja. E, hoje, os pequenos progressos no comércio resultam sobretudo de um fascínio provinciano pela última moda do “cosmopolitismo”, agora chamado trendy, de que são exemplo actual as carrinhas de street food. Se servem, não ficam.

O comércio digital e a montra online das empresas abriram novos e estupendos domínios de serviços do design à economia, mas, apesar dos avanços conseguidos, as debilidades culturais do nosso pequeno e médio empresariado — que é a grande maioria — ainda dispensam em larga escala o design como um dos pilares da vida das instituições económicas e o trabalho de jovens designers formados em escolas da especialidade. Sectores estimulados por exigente concorrência ou potencial de exportação, como a produção vinícola, deram um rápido e longo salto na qualidade estética dos rótulos de garrafas, mas o panorama geral é ainda muito confrangedor. Em design de produto, por exemplo, talentos de monta precisam de buscar marcas e fabricantes nórdicos para irem além de tiragens mínimas para galerias. E o resultado de tudo isso é que o Estado (sempre o Estado!…), nas suas sucessivas declinações — dos ministérios aos grandes eventos, das autarquias aos museus, das empresas públicas às universidades — continua a ser o maior e mais regular cliente dos ateliês de design, mais do que as principais fundações ou os grupos editoriais e de media.

É também por isso que não merece passar despercebido o livro de João Bicker FBA. O design gráfico como prática de clarificação, agora publicado pela Almedina.

É a primeira vez que um designer escreve tão longamente sobre o trabalho do seu próprio ateliê: um ateliê na terceira urbe do país (em muitos aspectos ainda bastante provinciana, benza-a deus) que, numa década e pouco, serviu o melhor que há em Coimbra, chegou ao principal museu nacional e recebeu galardões internacionais.

Envolvido na cena cultural da cidade desde os anos 1980, com o teatro universitário e os inesquecíveis encontros de fotografia em destaque, Bicker, 54, começou como capista acidental dos livros de uma pequena editora “alternativa”, Fenda, mas cedo conquistou um lugar determinante com a renovação estética da editora Almedina (de resto, um dos símbolos de Coimbra), quando administrada por um ex-quadro da Sonae, Carlos Pinto. A capacidade financeira deste potentado da edição jurídica e reconfigurações no meio editorial permitiram à Almedina ampliar-se, adquirindo os direitos da Edições 70 (que tinha sido muito forte no pós-1974; basta dizer que foi a primeira a publicar Sinais de Fogo, de Jorge de Sena), cujo grafismo o ateliê FBA renovou completamente através de uma incisiva experiência de tipografismo, sem dúvida a principal marca de Bicker desde sempre.

De facto, já em 2000-1 ele adoptara tipos desenhados por Mário Feliciano, se destacara dos seus colegas de ofício por ter promovido a edição de duas obras essenciais de Giambattista Bodoni e Eric Gill (além dum apontamento de Albrecht Dürer), e fizera um extenso e inédito exercício de replicação gráfica de futurismos e modernismos vários nas capas de uma colecção de Fenda que incluía O Teatro e o Seu Duplo, de Antonin Artaud (1938) e O Meu Último Suspiro, a autobiografia de Luis Buñuel (1982). O livro também nos informa do seu máximo apreço pelo suíço Jan Tschichold, teórico de uma “nova tipografia” e grande designer da Penguin Books (1902-74; curiosamente, filho de um pintor de letreiros), a quem dedica sete páginas.

Esse notório interesse panorâmico pela história da tipografia, pelo desenho da escrita em tipo e pela lição dos grandes mestres, tanto “clássicos” como “modernos”, deu ao autodidacta curioso “uma consciência tipográfica” (p. 315) e as melhores bases para um trabalho criativo que instituiu a “clarificação”, que dá título a este livro, como a sua principal meta: “Por vezes a procura de clarificação implicou a ousadia de não inovar, ou de, inovando, reter como mais adequadas as melhores práticas do passado” (p. 25; itálico meu).

Essa atenção lúcida e conservadora aos antigos — também muito presente noutros designers da mesma geração, como Paulo Ramalho e Teresa Olazabal Cabral, que recriaram paginações setecentistas em álbuns dedicados a esse período — confere ao trabalho de João Bicker e seus parceiros do FBA um classicismo sereno e “pensado”, carregado de referências “eruditas” mas leve (“uma discrição intencional”, p. 164), que sem qualquer atrito foi transposto para o design expositivo: primeiro, de 1998 a 2006, no Museu Antropológico da Universidade de Coimbra, em intervenções de orçamento muito reduzido; e depois, já com algum desafogo e outro fôlego, no Museu Nacional de Arte Antiga, desde o início da direcção de António Filipe Pimentel. Pelo caminho, houve uma exposição sobre literatura portuguesa com curadoria de António Feijó e arquitectura dos irmãos Aires Mateus, na Fundação Gulbenkian (2008), outra sobre a obra de Fernando Távora, na Escola de Arquitectura da Universidade do Minho (Guimarães, 2012), e ainda outra, muito itinerante (2007), sobre teatro e arquitectura, sobre o cenógrafo João Mendes Ribeiro.

A esta exigente área de trabalho — com fasquia alta fixada, no nosso país, por Mariano Piçarra, Miguel Vieira Baptista ou Luís Moreira — correspondeu João Bicker com particular brilhantismo na exposição “Primitivos Portugueses (1450-1550): o século de Nuno Gonçalves” no MNAA, confrontando a exuberância das telas com um elegantíssimo dispositivo cénico em três tons de malva nas paredes, e ouro velho, azul da prússia e cinzento claro nos painéis, tabelas e legendas textuais, diferenciados por uma “rigorosa hierarquia tipográfica” (p. 247; e também pp. 227, 307). Pena é que o livro não se ocupe também do trabalho na exposição dedicada por este museu à colecção Franco Maria Ricci, em Novembro de 2014, em que Bicker ainda participou num debate sobre Ricci, a revista FMR e Bodoni.

A centralidade do design

Outra área de trabalho diz respeito a logótipos (ou à renovação de marcas institucionais, como a da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em que conservou o emblema desenhado por Raul Lino), como o do mosteiro de Santa Clara a Velha — premiado em 2009 —, também apenas tipográfico, em que aparou a base das letras para invocar o facto de o monumento ter estado parcialmente submerso durante séculos. O do Centenário da República foi concebido como um “balão de fala” sobre as letras C e R. O do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra é um nenúfar-coração, ao mesmo tempo uma das suas plantas ex-libris e “símbolo do afecto que a cidade tem por este jardim” (p. 203).

A permanente reflexão conceptual, a fidelização de clientes de longa duração e o trabalho serial desenvolveram em João Bicker uma disciplina metodológica, que de resto percorre o livro na avaliação da obra feita, mas também do ateliê em si; e isto pode ser entendido como uma raridade, pois FBA foi fundado por gente alheia ao ofício… A espacialidade foi discutida com base na bibliografia disponível sobre o assunto, de modo a criar “reforço da identidade e coesão da equipa” (p. 123), mas sobretudo o ateliê inovou ao separar, desde o início e até fisicamente, trabalho criativo e gestão, pois “os ganhos em eficiência, disponibilidade, criatividade e rentabilidade eram evidentes” (p. 139). Além disso, quando cresceu deslocou-se para o “centro da cidade” para dar expressão ao conceito de centralidade do design na vida social, enquanto, numa exposição sobre a obra feita (2005), elegeu o conceito de design local como “contiguidade, vizinhança, um estado de estar próximo”. Por outro lado, trabalhos pro bono, “sugeridos por membros da equipa”, são considerados uma “forma de reforçar a cultura do estúdio” (p. 142).

Neste auto-retrato (também colectivo), João Bicker fala-nos da sua quota-parte nessa tarefa infinita de legitimação do design no nosso país, mas sem a grandiloquência ou aquela insuperável vaidade que já vimos em obra laudatória de um colega de ofício. E será assim talvez porque, além de outras coisas, “ao longo dos anos — escreve ele — percebemos que os nossos melhores trabalhos sempre estiveram ligados a assuntos que nos interessavam ou que se tornaram interessantes, às vezes apaixonantes, durante o processo de design. Foi o facto de o design gráfico ser quase sempre sobre outra coisa que especialmente nos interessou” (p. 41; itálico meu). As páginas dedicadas a capas de discos e o sugestivo jogo de epígrafes no livro, que incluem, além de designers conceituados, John Coltrane, Joseph Joubert, Hugo Ball, Robert Frank, Henri Matisse, T. S. Eliot, Samuel Beckett e Agustina Bessa-Luís, não deixam quaisquer dúvidas quanto a isso.