O portão de ferro pintado de verde-escuro está aberto. O movimento é raro na rua, mas até para os poucos que passam é difícil perceber o segredo que escondem os 600 metros quadrados do edifício branco. Lá dentro, ao som da música moderna que sai do rádio, sobrepõe-se o barulho das máquinas e ferramentas antigas. “O comprimento tem de ficar certo”, diz Manuel Caldas a um dos trabalhadores. Há uma medida que ficou mais curta que a padrão. “A diferença pode estar no tubo?”, questiona um empregado, que começou a trabalhar na fábrica há dois dias. “É de certeza. Se o tubo anterior não fechou tanto, só pode ser isso”, responde a experiência do patrão. E continua com as indicações: “Se aparecerem mais tubos assim, vamos ter de retificar.”
O relógio marca 10h15, mas o dia na fábrica de móveis metálicos começa às 8h30 da manhã. Ao longo da linha de montagem da Arcalo estão, para além de Manuel Caldas, três trabalhadores. Ao fundo, no armazém, outros dois embrulham as encomendas. É assim todos os dias na Rua do Desembargador, aldeia de Vale da Pinta, concelho do Cartaxo. “Temos poucos trabalhadores mas só temos um produto, cinco pessoas fazem o trabalho que é necessário”, diz o industrial. Há cinco anos, Manuel Caldas decidiu fazer um único artigo em exclusivo. Encontramo-lo fundamentalmente em esplanadas mas a fábrica também já o produziu para interiores.
A Arcalo dá, diariamente, continuidade a um ícone do design português: a cadeira Gonçalo. Uma cadeira de ferro composta por quatro peças fundamentais: dois tubos, um encosto e um assento. O primeiro tubo define as duas pernas traseiras, o apoio para os braços e o contorno superior do encosto, o outro compõe as duas pernas dianteiras e o contorno do assento. O encosto é curvo e ligeiramente inclinado, e o assento, também levemente inclinado, tem a frente curvada.
Apesar das suas linhas visivelmente simples, a confeção da cadeira é complexa. Manuel Caldas desvenda o processo: “A primeira coisa a fazer é cortar os dois tubos de ferro com um serrote mecânico.” A medida, essa, não a revela, mas o tubo que compõe as pernas traseiras é o maior. Depois de serem cortados, vão para a máquina de curvar tubo. “É este o primeiro ciclo”, explica. Paralelamente, o assento e o encosto, também de ferro, são cortados numa guilhotina. Depois são prensados, um processo que lhes confere a inclinação e a curvatura. Às quatro peças base juntam-se, ainda, duas barras que suportam o assento.
O próximo passo é a soldadura. Aqui, o esqueleto é unido. Numa primeira fase, os tubos e os suportes são colocados num gabari de geometria, uma peça de ferro feita artesanalmente por Manuel Caldas, que torna as cadeiras todas iguais. Junto a estes componentes da cadeira coloca-se um talão de ligação de cada um dos lados do assento para que os dois tubos não sejam diretamente unidos. Há, ainda, uma segunda operação onde se colocam e soldam o encosto e o assento. Uma vez soldadas, as cadeiras são desempenadas e retificadas. Aqui “algumas acabam por ir para a sucata uma vez que já não têm aproveitamento possível”, conta o industrial.
A última fase, antes de serem entregues ao cliente, é a pintura. Mas primeiro as cadeiras levam um tratamento que Manuel Caldas prefere manter em segredo. A finalidade é proteger o ferro da ferrugem. “Dependendo do uso, há sítios que as mantêm há 15 anos”, revela. Depois de tratadas com a fórmula secreta da Arcalo, aí sim, são coloridas com um sistema de pintura eletrostático, uma coloração em pó. Num forno, entre os 190 e os 200 graus, as cadeiras são cozidas aproximadamente durante 45 minutos. “Todas as cores que o cliente quiser estão disponíveis”, diz o proprietário, mas a cor que mais gosta de lhes vestir é o vermelho, “por motivos clubistas”. Antes de serem embaladas e devidamente isoladas, ao assento juntam-se três pequenas borrachas pretas. “Uma em cada lado e outra na parte traseira”, explica Manuel Caldas. O objetivo é que quando forem empilhadas não toquem umas nas outras.
Conhecidos os ingredientes e explicada a receita, o resultado são 73 centímetros de altura e 55 de largura, um assento com 43 centímetros de altura e uma profundidade de 38 que compõem a cadeira de esplanada mais famosa de Portugal. Apesar de a sua maior expressão ser na grande Lisboa, a cadeira Gonçalo pode ser facilmente encontrada de norte a sul do país. Do Cartaxo também já saíram cadeiras para “Holanda, Áustria, Espanha, Bélgica, Alemanha”. Em França, por exemplo, encontramos a Gonçalo na Ópera parisiense.
Uma cadeira alegre, salva de cair no esquecimento
Nem sempre a cadeira foi produzida no Cartaxo. A peça terá nascido entre os anos 30 e 40, no número 16 da Rua Alegre, em Algés, a primeira casa da Arcalo. Produzida pelas mãos do mestre serralheiro Gonçalo Rodrigues dos Santos, na década de 40, a cadeira já podia ser encontrada na esplanada do Café Lisboa, na Avenida da Liberdade. Ainda assim, o modelo original apenas viria a ser registado nos anos 50, com o nome de cadeira modelo 7, pelo seu criador.
Manuel Caldas, de 67 anos, é o atual dono da fábrica. Nasceu na mesma rua da cadeira. “Todos os dias passava à porta da Arcalo”, relembra. O encarregado, Serafim, e outros trabalhadores eram seus conhecidos desde miúdos e com 17 anos começou a trabalhar na empresa. “Eu trabalhava no comércio, mas de vez em quando gostava de trocar e lá saltava para o ferro”, conta.
Depois de um período emigrado na Alemanha, regressou a Portugal e apercebeu-se que a Arcalo estava para fechar. O tempo fez com que o negócio esmorecesse mas o antigo empregado da fábrica quis recuperá-lo. “Achei que a fábrica merecia mais respeito e continuidade”, explica. Na altura, Gonçalo Rodrigues dos Santos já tinha falecido e nem os filhos nem o encarregado estavam nessa disposição. “Eu arrisquei”, lembra Manuel Caldas. O filho do mestre Gonçalo aceitou a proposta, corria o ano de 1994. “Achei que era uma parvoíce acabar com a empresa e apostei na cadeira.”
Em 1995, Manuel Caldas apresentou ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), um pedido de registo da Arcalo como marca, mas só em 1997 ele foi concedido. Desde aí, a fábrica é reconhecida como marca nacional de móveis metálicos. Ainda em 1995, o proprietário viu o design da sua cadeira ser também registado como modelo industrial nacional. “Cadeira destinada a esplanadas e outros recintos abertos ou fechados”, lê-se na epígrafe do processo disponível na base de dados do INPI. O resumo é simples: “cadeira conjunto de linhas geométricas, ângulos no encosto, pernas e assento”.
Em homenagem ao homem que lhe deu vida, Caldas batizou-a Gonçalo. “Entendi que esta tinha de ter um nome para ser uma senhora cadeira, senão seria só mais uma”, diz. Em 1995, o industrial fez um último pedido que consistia em registar a Gonçalo enquanto marca nacional. Dois anos mais tarde, o requerido viria a ser aprovado pelo INPI e, por isso, Manuel Caldas afirma: “A cadeira Gonçalo é só nossa, embora toda a gente chame Gonçalo a todas as outras e elas não o sejam.”
Com quatro anos a comandar os destinos da marca, surgiu o maior desafio da história da Arcalo: equipar todo o recinto da EXPO 98. “Em Algés não havia capacidade”, recorda Manuel Caldas. Para fazer as 9.000 cadeiras que tinham sido encomendadas, a fábrica foi obrigada a mudar-se para Torres Vedras. “Demorou três meses a fazer”, conta o industrial. A visibilidade da EXPO trouxe mais procura pelo artigo. “Na altura todos beneficiaram, até a concorrência.”
O tempo que teima em trazer o esquecimento
Em 2000, a Arcalo conheceu a sua atual morada. “Mudámo-nos para o Cartaxo porque o espaço era agradável e as rendas mais baixas.” Aos 67 anos e há 21 a gerir a empresa, Manuel teme pelo futuro. “Já não tenho mais 30 anos pela frente.” A sua preocupação atual é a de arranjar alguém que o possa substituir, mas a tarefa não tem sido fácil. “Aqui é como encontrar uma agulha num palheiro. Nesta juventude é muito difícil arranjar alguém.” Mesmo não pondo de lado quem não sabe do ofício, “não há ninguém que o queira aprender”, diz.
Nenhum dos dois filhos, conta Manuel Caldas, quis pegar no negócio. Alexandre “seguiu o ramo mas não fabrica, apenas compra e vende, optou por trabalhar por conta dele”. Sofia também preferiu procurar outro tipo de trabalho. “Quero ver se antes de fechar os olhos entrego isto a alguém capaz de continuar”, desabafa. Propostas já surgiram, mas estrangeiras, e Manuel Caldas não as aceitou. “Gostava de deixar isto nas mãos de um português, porque a cadeira é portuguesa.”
Por agora, e até conseguir, Manuel Caldas não pensa em parar. “Sou feliz no que faço porque isto é criativo, o que mais gosto de fazer é criar.” Em tempos foi convidado para fazer cadeiras de café para outros fabricantes mas nunca aceitou. “Só faço aquilo que quero, que é o meu modelo.” Pegar na cadeira Gonçalo e, inspirado nela, dar-lhe outros moldes é que o industrial mais gosta. “A cabeça está sempre a pensar.”
Há 20 anos produziu, pela primeira vez, a mesma cadeira numa versão para crianças. O ano passado desenvolveu a Gonçalo em madeira maciça curvada, uma peça que Manuel Caldas considera difícil fazer. “Ainda não estou pronto para a vender porque não tenho preparada a linha de produção.” No final do ano passado voltou a reinventar. “Olhei para a cadeira e lembrei-me de lhe esticar as pernas.” É a mais recente inovação da fábrica, a Gonçalo em chaise longue. Num curto período de tempo já a vendeu para a piscina de um hotel lisboeta, coisa que nunca pensou.
O portão de ferro pintado em verde-escuro fecha-se. São 17h30. Manuel Caldas esteve o dia todo na fábrica, mas nem sempre é assim. Passa vários dias fora a entregar as encomendas. Durante essas viagens e enquanto conduz, conta que, de vez em quando, olha para o lado e identifica sempre as cadeiras da Arcalo. “Conheço-as à distância. Mesmo no meio de muitos, conhecemos sempre os nossos filhos.”
Texto editado por Ana Dias Ferreira