Nome: Monte dos Vendavais
Autor: Emily Brontë
Editor: Relógio d’Água
Páginas: 432
Preço: 10€

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Escrever sobre o que quer que seja implica sempre uma certa familiaridade com o objecto de que se pretende falar. Se pretender descrever, por exemplo, um animal feroz que só existe no Nepal terei que, para poder ser compreendido, relacioná-lo de alguma forma com coisas que me sejam vizinhas, seja um animal feroz menos distante como um leão ou um outro objecto qualquer, como por exemplo, uma escrivaninha. É essa a principal dificuldade que surge quando tentamos escrever sobre O Monte dos Vendavais (Wuthering Heights no original), porque, olhemos seja de que perspectiva for para o romance de Emily Brontë, não conseguimos nunca compreender os motivos que levam as personagens do romance (particularmente Cathy e Heathcliff) a agirem da forma como agem. Não percebemos porque escolhe Cathy casar com Edgar, não percebemos porque é que, por vontade própria, se decide a contrair a doença que a vitimaria, não percebemos o que leva Heathcliff a, na véspera do seu casamento com Isabella, tentar enforcar o cachorrinho da sua noiva e não percebemos, fundamentalmente, a mágoa crescente de Heathcliff, que o leva a odiar profunda e incessantemente todos os habitantes de Gimmerton, sem excepção.

É a crueza e a incompreensibilidade de O Monte dos Vendavais que explica que Hélia Correia escreva dezassete páginas onde não encontramos uma única ideia, uma única linha que nos facilite a leitura da obra. No prefácio que acompanha a nova edição do romance lançada pela Relógio d’Água, Hélia Correia faz uma biografia da família Brontë e uma historização de Haworth que pouco acrescenta ao livro porque pouco se pode dizer sobre um objecto que escapa a qualquer tentativa de domesticação. Também no célebre filme homónimo de 1939 de Willliam Wyler encontramos uma tentativa de fuga a esta estranheza, que leva a que o enredo da versão cinematográfica da história seja absurdamente simplificado, tornando-se num melodrama centrado nos caprichos de Cathy, com saltos narrativos de todo incompreensíveis.

[trailer da adaptação de 1939]

Esta tentativa de fuga feita por Wyler é, aliás, particularmente interessante porque parece ser prevista no início do romance por Lockwood, o narrador da história, que, ao descrever Heathcliff, o agora proprietário do Monte dos Vendavais, como alguém avesso a “demonstrações exuberantes de sentimentalismo” e a “manifestações de amabilidade mútua”, se corrige imediatamente dizendo que essa descrição fora apenas uma tentativa de atribuir a este os seus próprios traços. Brontë parece, assim, alertar para o erro que consiste em procurar domesticar Heathcliff, tornando-o alguém que podemos compreender a partir de realidades que nos sejam próximas, tornando-o alguém como nós. Depois da sua morte, a lápide de Heathcliff tem apenas escrito Heathcliff precisamente porque o filho adoptivo de Mr. Earnshaw escapa perpetuamente a todas as tentativas de descrição sucinta.

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Diante de um objecto tão estranho como é este romance parece, assim, haver apenas três respostas possíveis: fugir à estranheza, como Hélia Correia e William Wyler; rebater a estranheza com mais estranheza ainda, como Kate Bush faz no seu extraordinário single de estreia, Wuthering Heights, ou procurar enquadrar esta estranheza, colocando-a num contexto que a torne mais familiar, como faz Camille Paglia, em Romantic Shadows – Emily Brontë, onde a ensaísta procura justificar momentos como aquele em que Lockwood é atormentado por um fantasma de Cathy que se transforma depois num galho de uma árvore, interpretando-o à luz do Inferno de Dante, em que os suicidas (e Cathy, ao procurar a sua própria destruição, pode ser facilmente equiparada a uma suicida) são transformados precisamente em árvores.

An oil painting of Emily Bronte (1818 - 1848), authoress of the novel 'Wuthering Heights,' published in 1847. (Photo by Hulton Archive/Getty Images)

Um retrato de Emily Bronte (1818 – 1848)

Diluída a estranheza do romance pelas reacções que dele se geraram, podemos então tentar agora encará-lo. O Monte dos Vendavais é, na sua essência, um romance de exílio. Heathcliff, o exilado por excelência, surge um dia, acolhido caridosamente pelo patriarca da família, em casa dos Earnshaw e exila Hindley do seu estatuto de filho privilegiado, sendo esse o primeiro passo para o enlouquecimento e suicídio do jovem herdeiro do Monte dos Vendavais. Cathy, num passeio com Heathcliff, é mordida por um cão na propriedade dos Linton e fica alguns dias lá em repouso, sendo esse período de exílio decisivo para que a rapariga selvagem que passava o tempo a fugir de casa com Heathcliff se transforme na “jovem com um ar muito digno, com caracóis castanhos a caírem-lhe de baixo de um capote comprido” que virá a casar com Edgar Linton, sendo esse o primeiro passo para todas as desgraças que perseguirão o jovem herdeiro da mansão Thrushcross. No entanto, no momento em que se decide a casar com Edgar, Cathy explica a Nellie Dean, a governanta de Thrushcross, que essa mesma decisão é um erro, uma vez que “não tenho nada que me casar com Edgar Linton, assim como não tenho nada que ir para o Céu”. Cathy, apesar de reconhecer que a escolha mais sensata é a que tomara, sabe que a escolha sensata é um erro porque o lugar onde deve estar não corresponde nunca ao lugar a que pertence. O lugar de Cathy é junto de Heathcliff no Monte dos Vendavais porque Heathcliff “é mais eu do que eu própria”. Cathy explica que a alma de Heathcliff e a sua são uma só, ao passo que “de Linton é tão diferente como o raio de luar do relâmpago ou o gelo do fogo”.

Podemos assim ter um vislumbre dos motivos para a estranheza deste livro. A peculiaridade de O Monte dos Vendavais está, como veremos de seguida, na completa inversão de máximas cristãs que, consciente ou inconscientemente, nos habituámos a aceitar. Emily Brontë parece neste seu romance colocar-se na posição diametralmente oposta de Santo Agostinho quando este afirma, no primeiro livro das Confissões, que “o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em [Deus]”. Ao contrário do que apregoa o Cristianismo pela boca de Agostinho, as personagens de Brontë não estão em tensão até ao momento em que repousam a cabeça no Senhor. Estão em tensão até ao momento em que fogem do Jardim do Éden e regressam ao mundo, sendo o amor (ou a visão destorcida do amor que percorre o livro) o responsável por arrastar tudo para baixo. E a imagem perfeita desta fuga eterna do lugar onde deveriam estar para o lugar a que verdadeiramente pertencem é-nos dada por Cathy que, mesmo depois de morta, prefere vaguear pelo Monte dos Vendavais à procura de Heathcliff, uma das personagens mais violentas, vingativas e egoístas que a literatura já criou a subir ao Paraíso, juntando-se a Deus, porque é o Monte dos Vendavais e não Deus o seu refúgio e fortaleza.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.