Os ministérios da Educação e da Saúde emitiram um documento onde constam novas sugestões para as aulas de educação sexual. No referencial do governo, que tem mais de oitenta páginas e propõe que as escolas incluam nos seus currículos temas como a nutrição, a prática de exercício físico, a saúde mental, o relacionamento interpessoal e os comportamentos aditivos, há um ponto em particular que está a gerar controvérsia — a inclusão da explicação da interrupção voluntária da gravidez.
O último capítulo do documento, que aborda o tema “Afetos e Educação para a Sexualidade”, propõe que se ensine aos alunos dos 5º e 6º anos, ou seja, crianças com idades compreendidas entre os 9 e os 12 anos, o que é uma interrupção voluntária da gravidez e de que forma esta se distingue da interrupção involuntáriada gravidez. Mas um grupo de cidadãos, que se opõe à inclusão do tema do aborto no programa escolar, criou uma uma petição online com o título “Aborto como ‘Educação Sexual’ em Portugal? Diga não!” que, até à publicação desta notícia, contava com 7.380 assinaturas.
“Ninguém vai dizer às crianças que o aborto é a morte de uma criança, vai dizer-se que é uma interrupção voluntária de uma gravidez, termos que uma criança de nove ou dez anos pode não entender”, diz ao Observador Manuel Matias, membro do grupo que iniciou a petição.
Pai de dois filhos e técnico de aconselhamento a jovens com comportamentos desviantes, Manuel Matias vai mais longe e acusa o Estado de “marxismo cultural”. “Não podemos ser ingénuos, temos que ver o que está aqui em causa: o Estado está a tentar retirar os filhos às famílias. O papel do Estado é a educação académica das crianças, não a educação social ou cultural. Querem fazer do indivíduo, e não da família, a unidade base do Estado, o que esvazia o papel da família no processo de educação”, diz Manuel Matias.
Especialistas: sim, mas com cuidado
No entanto, há psicólogos especialistas em problemas da infância e da adolescência que discordam. Para Inês Afonso Marques, coordenadora da Mindkiddo, a equipa infanto-juvenil da Oficina de Psicologia, “nunca é cedo para abordar temas que se inserem na dimensão da educação sexual”, acrescentando que “falar da anatomia do corpo, das diferenças de género, falar de valores e afetos, também é falar de sexualidade”.
Para a psicóloga, “ficar à espera de um ‘momento chave’ para abordar estes assuntos pode mesmo ser perigoso, na medida em que, em resposta a curiosidades naturais de determinadas fases de desenvolvimento, poderão surgir comportamentos desajustados, fazer-se opções desinformadas, aceitarem-se situações inaceitáveis”.
As principais vantagens de incluir este tema no currículo, na opinião que Inês Afonso Marques partilhou com o Observador, prendem-se com a ideia de “tornar natural falar de temas que fazem e farão parte da vida das crianças e jovens” e “permitir que elas estejam a par da realidade e informadas sobre os temas, para que, em momentos chave, se sintam mais confiantes, e sejam mais ponderadas nas suas decisões”.
Daniel Sampaio, catedrático de psiquiatria da Faculdade de Medicina de Lisboa e autor de vários livros, não só, mas também, na área dos problemas da juventude, foca o lado biológico da questão: “As meninas são menstruadas cada vez mais cedo, é importante falar da sexualidade, do que está em causa e das consequências da gravidez adolescente, do que é que se quer prevenir”, diz ao Observador. A forma como se ensina também é importante. “Deve-se trabalhar a partir das dúvidas das crianças e ter algum cuidado com o método expositivo da informação”, acautela o psiquiatra.
Isadora Pereira, pedopsiquiatra do Espaço Neurociências, que não está totalmente de acordo com a proposta do Governo, também aconselha cuidado com a forma como esta informação “sensível” é ensinada às crianças, porque “pode ser um pouco intrusivo”. Na opinião da pedopsiquiatra “é preciso respeitar o nível de desenvolvimento de cada criança, porque nem todas têm a mesma mentalidade” e há o perigo de a informação ser passada “de forma estereotipada”, “sem atenção a essas discrepâncias na sala de aula” e por isso “potencialmente perturbadora”. Isadora Pereira diz que, avaliando pela sua experiência, “aos dez anos as crianças não fazem essas perguntas” e que “a questão do aborto envolve conceitos éticos que as crianças não estão, no geral, preparadas para entender. ‘É um bebé mas não é um bebé’, o que é um embrião, um feto, etc, as crianças não estão preparadas para distinguir isto”.
Inês Afonso Marques, porém, entende que “é importante as crianças entenderem que podem abordar temas ‘sensíveis’ de forma natural e espontânea com pais e educadores, evitando que procurem as suas respostas em fontes de informação menos fidedignas”. O mesmo refere Daniel Sampaio: “Há cada vez mais acesso a informação, na internet, na televisão, etc. É importante que alguém ajude as crianças a entender o que está certo, alguém com formação” até porque, “os filhos não gostam de falar com os pais” e “é uma falácia achar que a família aborda todas estas questões de forma transversal”, concluiu o psiquiatra.
Questionado pela Lusa, o gabinete de comunicação do Ministério da Educação sublinha que o documento tem como objetivo “fornecer orientações para que as equipas nas escolas possam, mediante o seu contexto específico, decidir que trabalho desenvolver” e que “qualquer decisão final só ocorrerá após a análise dos contributos recebidos”, lembrando que a proposta em discussão conta com “contributos de personalidades e entidades de destaque em várias áreas da promoção da saúde”.
As propostas do governo estão disponíveis para consulta pública até dia 19 de dezembro.