Foi por unanimidade: o prémio Direitos Humanos 2016 da Assembleia da República foi atribuído a António Guterres. Uma comissão de deputados, com membros das seis bancadas parlamentares, votaram em bloco a atribuição deste prémio, que tem o valor de 25 mil euros. Se é consensual o papel desenvolvido pelo já eleito secretário-geral da ONU na área dos direitos humanos, a forma como o prémio foi atribuído — desde 1999, tem vindo a ser entregue a entidades coletivas — indignou uma dirigente de uma organização não governamental que se candidatou e denunciou o caso ao Observador.
O prémio, que vai ser entregue a António Guterres na sexta-feira, 23, no Parlamento, foi atribuído através de uma fuga aos regulamentos. “São questões de vírgulas”, diz ao Observador o presidente da comissão que decidiu o prémio, Pedro Bacelar Vasconcelos. Mas não são.
Os regulamentos são claros. O prémio Direitos Humanos só pode ser atribuído em duas situações:
- Alto mérito da atividade de organizações não governamentais; ou
- Original literário, científico, designadamente histórico ou jurídico, jornalístico ou audiovisual, qualquer que seja o respetivo suporte, divulgado em Portugal no período a que respeita;
que contribua designadamente para:
a) a divulgação ou o respeito dos direitos humanos;
b) a denúncia da sua violação no país ou no exterior.
Ora, António Guterres não se enquadra no primeiro pressuposto, porque o Alto Comissariado para os Refugiados nas Nações Unidas (o ACNUR) é uma agência especializada da ONU, que é uma organização governamental.
Na justificação da atribuição do prémio, numa nota do presidente da Assembleia da República, é explicado que o prémio é atribuído “a António Guterres, pelo trabalho desenvolvido na defesa dos direitos humanos, nomeadamente no desempenho das funções de Alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), entre 2005 e 2015“. Ora, o mesmo não se enquadra no regulamento.
Esta atribuição do prémio ao novo secretário-geral das Nações Unidas foi decidida por unanimidade, por um júri composto pelos deputados da comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias Pedro Bacelar de Vasconcelos (PS), que preside, José Matos Correia (PSD), Filipe Neto Brandão (PS), Sandra Cunha (BE), Telmo Correia (CDS-PP), António Filipe (PCP) e José Luís Ferreira (PEV).
O presidente da Assembleia da República, ao aceitar a decisão da comissão, destacou na altura que “o desempenho de António Guterres como ACNUR é merecedor dos mais rasgados elogios. Congratulo-me pois pela decisão hoje tomada pela Assembleia da República. António Guterres é o homem certo, no tempo certo, no lugar certo”.
Quanto ao segundo pressuposto para receber o prémio, o “original literário ou científico”, também não é aplicável, pois António Guterres não tem qualquer publicação na área dos Direitos Humanos, nem foi essa a justificação para a entrega do prémio.
O artigo 5.º volta a tratar de quem é elegível para o prémio. Diz que “o prémio é atribuído a cidadãos portugueses ou estrangeiros e a organizações não governamentais”, mas “sobre os trabalhos e atividades a que se refere o artigo 2.º, independentemente de apresentação de candidatura”. Ora, o artigo 2.º é o tal onde a atribuição a Guterres também não encaixa, pois o antigo primeiro-ministro não publicou qualquer trabalho entre dezembro de 2015 e outubro de 2016.
Os deputados podiam, à luz do artigo 13.º do regulamento, alterá-lo e fazer um fato à medida de Guterres — mas não o fizeram. O regulamento manteve-se inalterado e, sendo assim, tiveram de ir para além do regulamento.
Contactado pelo Observador, o presidente da comissão que decidiu o prémio, Pedro Bacelar Vasconcelos, mostrou-se indignado por o prémio estar a ser questionado. Começou por dizer que o “prémio foi atribuído pela exemplaridade da defesa dos Direitos Humanos, através da instituição a que ele esteve ligado mais recentemente.”
Questionado sobre o facto de o ACNUR não ser uma ONG e de poder haver associações que concorreram lesadas, Pedro Bacelar Vasconcelos ainda se indignou mais: “Se há qualquer idiota que não concorda com a atribuição do prémio, que recorra. Isto não foi decidido por uma qualquer comissão, foi decidido por deputados da comissão de Assuntos Constitucionais“.
No entanto — embora ninguém tenha feito chegar qualquer reclamação formal ao Parlamento– ao contrário do que diz o presidente da comissão, não é possível recorrer da decisão dos deputados. O ponto 4 do artigo 8.º não o permite.
Uma dirigente de uma organização não governamental que se candidatou está indignada com a atribuição do prémio, mas não se quer identificar para não envolver a organização (mas o Observador atestou a pertença à mesma): “Fizemos todo o trabalho, cumprimos prazos, organizámos a candidatura e quando vimos que o prémio foi entregue a António Guterres foi uma desilusão, porque percebemos que o processo não é tão transparente como devia.”
A mesma dirigente diz que até esta terça-feira ainda não tinha “sido notificada oficialmente” de que o prémio já tinha sido atribuído. Ao telefonar para a Assembleia é que se apercebeu que o prémio já tinha sido entregue a António Guterres, sentindo-se frustrada por todo o trabalho com a candidatura (cumprindo o prazo de entrega a 31 de julho e todos os requisitos exigidos). “Não é pelo dinheiro, nem pelo projeto que levámos a concurso, para o qual temos financiamento assegurado, é pelo princípio. Nós, além de concorrermos, divulgámos a outras associações o prémio, que também se podem sentir enganadas“, lamenta. A mesma fonte acredita ainda que Guterres não tem conhecimento da forma como o processo foi desenvolvido, mas fará questão de o dizer na cerimónia de entrega, caso a sua associação seja convidada.
O Observador contactou fonte próxima de António Guterres, que diz desconhecer qualquer problema em torno do prémio e remete explicações para a Assembleia da República. Sobre a forma como o prémio de 25 mil euros será aplicado, a mesma fonte diz que “será mais tarde divulgado”.
No entanto, Pedro Bacelar Vasconcelos mostra-se indignado por estarem a ser levantados problemas à atribuição do prémio, limitando o assunto a uma “questão de vírgulas”. O presidente da comissão remeteu depois mais esclarecimentos para os serviços de apoio à comissão. “Penso que noutros anos já ganharam outras pessoas os prémios. Eu não tenho comigo essa informação. Peçam aos serviços da comissão. Não vou alimentar isto”. O Observador constatou que, entre 1999 e 2015, todos os anos o prémio foi entregue a uma organização e nunca a uma individualidade.
O Observador contactou também os deputados José Matos Correia, António Filipe e José Luís Ferreira, respetivamente representantes do PSD, do PCP e do PEV na comissão que decidiu o prémio (os restantes deputados não responderam os contactos até ao momento de publicação deste artigo). O deputado social-democrata foi telegráfico e institucional quando questionado sobre o assunto: “Se já falou com o presidente do júri, não tenho mais nada a acrescentar.” O deputado do PEV, José Luís Ferreira disse ao Observador que “o voto d’Os Verdes foi um voto consciente no sentido de que não estaríamos a violar o regulamento. Foi consensual. Se há uma associação que contesta, teremos de analisar a situação.”
Já o deputado comunista explicou que votou “em António Guterres por todo o trabalho de defesa de Direitos Humanos que desempenhou como ACNUR” e acredita não ter havido “nenhuma violação dos regulamentos” e lembrou que “foi votado por unanimidade”. Após ser confrontado com o conteúdo dos regulamentos, António Filipe disse que votou “com a convicção de que não estava a violar nenhum regulamento” e lembrou que “já outras figuras receberam o prémio, creio até que Matan Ruak no passado”. O presidente timorense, recebeu, no entanto a medalha de direitos humanos — não o prémio.
Vencedores do prémio Direitos Humanos AR
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2015 – Plataforma Global de Assistência Académica de Emergência a Estudantes Sírios
2014 – Instituto de Apoio à Criança
2013 – Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade Social
2012 – Cáritas Portuguesa
2011 – CNIS (Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade)
2010 – Rede Europeia Anti-Pobreza – Portugal
2009 – Associação Portuguesa de Deficientes
2008 – Bombeiros Voluntários Portugueses
2007 – Associação Moinho da Juventude
2006 – Amnistia Internacional (secção Portugal)
2005 – Banco Alimentar contra a Fome (Federação)
2004 – AMI – Assistência Médica Internacional
2003 – O Ninho
2002 – APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima)
2001 – Associação Sol
2000 – Conselho Português para os Refugiados
1999 – Comissão para os Direitos do Povo Maubere
A medalha de direitos humanos costuma ser atribuída em conjunto com o prémio, de acordo com os regulamentos, a “uma ou várias personalidades, nacionais ou estrangeiras, que se tenham distinguido na defesa dos Direitos Humanos, na sua divulgação ou na prevenção e denúncia das suas violações onde quer que ocorram.” Aqui, o perfil de António Guterres encaixaria perfeitamente. Por exemplo, em 2008, Mário Soares recebeu a medalha de Direitos Humanos do Parlamento (Sá Carneiro recebeu no mesmo ano, a título póstumo). Porém, o prémio e os respetivos 25 mil euros foram para os Bombeiros Voluntários.
Este ano, não houve qualquer atribuição de medalhas, por decisão do presidente da Assembleia da República, a quem compete indicar os nomes das personalidades que devem receber esta distinção.
O Observador não conseguiu apurar o número de candidaturas existentes ao prémio de Direitos Humanos da Assembleia da República, mas estas estiveram abertas até 31 de julho de 2016. No entanto, não é necessário haver candidatura para haver prémio. Basta apenas corresponder ao que está estabelecido no artigo 2.º. O que não aconteceu.
Apesar disso, o prémio será entregue ao secretário-geral designado das Nações Unidas, António Guterres pelo presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, estando já confirmada a presença do Presidente da República e do primeiro-ministro. O evento está marcado para esta sexta-feira às 12h00, na Sala do Senado, e contará com discursos de António Guterres, de Pedro Bacelar Vasconcelos e de Ferro Rodrigues.