O número 106 da Rua Damasceno Monteiro tranca-se com uma imponente porta de vidro, debruada a ferro verde. Toda a manhã de sexta-feira esteve aberta, com polícia por perto e os bombeiros também, para que as famílias pudessem ir retirando das suas casas, em segurança, alguns bens mais importantes. Do número 102 ao 110 ninguém mora. Dos números do meio, onde o muro caiu, e dos números das pontas, por precaução, as autoridades decidiram realojar os 78 moradores que habitavam estes apartamentos.

Havia um muro na parte de trás destes prédios que protegia as traseiras das casas de serem invadidas por uma enorme quantidade de terra. Uma parte ruiu na madrugada de segunda-feira e foi precisamente isso que sucedeu — os terraços ficaram soterrados e o entulho chegou mesmo a entrar nos andares mais próximo dos solo. Há um enorme desnível na parte de trás da rua e por isso mesmo foi construido um muro, no fim da II Guerra Mundial, que nunca esteve identificado para qualquer manutenção, segundo informação prestada aos jornalistas por Helena Bicho, Diretora de Projetos e Obras da Câmara Municipal de Lisboa.

Um jovem apressado sai do número 106 cheio casacos em direção à mãe, que o espera do outro lado da rua. Pedem à Proteção Civil que faça alguma coisa em relação às câmaras de televisão em frente ao prédio, que foi um dos mais danificados pela derrocada. Estão exaustos e preocupados. A mãe do jovem deposita os casacos nas escadas de um prédio do outro lado da rua, e ele desaparece pelo 106 de novo para ir buscar mais coisas. A família não quer falar, diz apenas que ali dentro, em perigo, estão as memórias de toda uma vida. Foi ai que cresceram, ali foram felizes e não querem ir tentar sê-lo para nenhum outro lado.

O senhor Luís Pereira vive no 110, o seu prédio não ficou danificado mas, por precaução, também foi instalado num hotel com a mulher. “Até dia 13 pelo menos estamos lá, disse a autarquia, depois não sei mas ninguém gosta de estar longe da sua casa, não temos as nossas coisas, não temos nada”, diz ao Observador enquanto inspeciona do passeio os primeiros trabalhos. Foi ali instalada uma grua enorme e vermelha, longa o suficiente para conseguir levar homens e materiais ao fosso que fica entre o muro e a parte de trás dos prédios. Da sede da UGT, de onde fotografámos o muro, fica clara a extensão do deslizamento.

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As obras começaram esta sexta-feira por volta das 10 da manhã e deverão continuar durante o fim de semana se as condições climatéricas assim o permitirem, confirmou aos jornalistas o vereador da Proteção Civil da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Manuel Castro, em declarações feitas ao final da manhã. Assim que bateu a hora dos jornais da tarde, começou a cair uma chuva grossa e gelada, e levantou-se um vento forte que fez tombar, ao fundo da rua, uma das divisões de metal que a polícia colocou para impedir a passagem de automóveis. Era destes impedimentos que falava. A rua vai ficar fechada durante todo o tempo em que os trabalhos estiverem a decorrer — um mínimo de quatro meses, disse a engenheira Helena Bicho.

Francisco Monteiro é dono da gráfica A Santos e Silva, número 112 da Rua Damasceno Monteiro. “O nosso prédio não foi afetado mas no 106 o entulho entrou mesmo por dentro das casas, nos primeiros andares dos prédios, nas cozinhas, nos quartos-de-banho. Uma senhora do primeiro andar estava a dormir, num quarto que fica cá mais perto da rua, e acordou com o estrondo brutal da terra a entrar pela casa, mostrou-me, ia-lhe dando um ataque, ela ainda por cima vive sozinha”, conta o tipógrafo ao Observador.

A porta do 108 já não está lá. Era uma garagem ao nível do solo que um senhor idoso tinha transformado em habitação. Quando o muro ruiu, a pressão do ar que entrou pela “casa”, fez a porta estoirar e o senhor foi empurrado até à rua. “A sorte é que a porta já não estava lá e acho que foram só arranhões que ele sofreu, foi assistido aqui no local”, conta ainda Francisco Monteiro.

Não há muita gente aqui para falar daquilo que o Presidente da CML, Fernando Medida, apelidou de “tragédia”. Alguns estão a trabalhar, outros estão em casa de família, alguns moradores de outros números desta rua vem ver o aparato de máquinas, e das câmaras de televisão. As obras é que já começaram porque o mais importante, como frisou ao longo do dia o vereador, “é garantir que as pessoas voltam a casa o mais rápido possível”.

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Queixas não são de agora

“Os moradores já tinham feito fotografias e apresentaram queixas à câmara que o muro estava em mau estado. Isto talvez já de há uns 15 anos para cá. Das opiniões que ouvi acho que aquilo ficou pior depois de construirem ali o empreendimento da Vila Graça. Quem vê lá de cima nota que os prédios estão construidos mesmo à margem, com aquela brutalidade de peso mais as piscinas que lá tem, a rega durante o verão, a chuva no inverno, infiltração de águas…”, disse ainda Francisco Monteiro.

Vários moradores confirmaram isto mesmo à agência Lusa, e depois ao Observador, um outro que fez questão de ler um poema que fez à sua casa. Rui Tovar, de 81 anos, vivia no 1º esquerdo do 106 e, no metro, escreveu “Saudade”:

De manso de mansinho
começa a chegar a saudade
da minha casinha fechada
por causa do tal muro
que de velho foi caindo aos poucos
há muitos anos e agora
atingiu a esperada agonia
sendo uma morte ruidosa
sem ninguém matar felizmente
mas criando grandes estragos
que levarão tempo a compor
tenhamos esperança e fé
nos desígnios do senhor.

Encontramos Rui Tovar na reunião com os moradores que a Câmara tem promovido todos os dias para explicar como vão correndo os trabalhos. “Eles foram avisados, fui um dos que avisei”, diz o ex-militar que esteve na Índia quando lá chegou a revolução. As pessoas do grupo consentem com a cabeça. “No sítio onde abriu a racha no muro havia uma mancha que não devia ser propriamente iogurte de chocolate. Ainda pensei em ir lá buscar uma amostra para levar ao Delegado de Saúde, e fui lá falar com ele mas nunca se fez nada”, conta, a rir.

Confrontado com as queixas pré-existentes dos moradores, o vereador Carlos Castro admitiu que também já ouviu, desde que aqui está, algumas dessas informações mas sublinhou que “o único dado agora é que o muro ruiu” e por isso “a câmara assumiu a intervenção rapidamente porque as pessoas precisam de ajuda”. O responsável disse ainda que “se nos envolvermos em questões de âmbito burocrático e legal” perdemos o foco naquilo que é essencial, “que as pessoas estejam em segurança e que voltem a casa em segurança”.

No mesmo bloco onde escreveu o poema, Rui Tovar traz uma lista de coisas que precisa de ir resgatar ao apartamento. De entre as mais importantes “a máquina para aparar a pêra” e “os livros de poesia”. Preocupa-se com o estado dos seus livros, refere-o mais que uma vez, e com o seu atelier de carpintaria que ficou com “uma racha de meio metro” ao alto. O quarto de banho e o escritório também sofreram um abalo na estrutura mas “eles agora curam tudo com uma injeções de betão e silicone”. Vivia sozinho mas não estava sozinho, tinha os santinhos e a alma da sua mulher. Tem um filho também, que é “um anjo”, com quem janta frequentemente, e tinha o teatro do Chapitô mas agora já não lhe fica em caminho. “Estava aqui mais ou menos perto agora estou no Íbis, como é que eu venho do Íbis para aqui? De bicicleta? A bicicleta estava no terraço”, diz novamente soltando uma gargalhada.

Responsabilidades serão apuradas

O muro é propriedade privada mas a câmara já assumiu o seu controlo administrativo, como aliás fez também com os prédios de onde as pessoas tiveram que sair para poder avançar com os trabalhos de limpeza e reconstrução. “A decisão que tomamos foi assumir, ao abrigo do estado de necessidade, a realização da obra e deixar a discussão das responsabilidades — se era público, se era privado ou de quem era — para o seu momento próprio. Cada coisa a seu tempo”, afirmou o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina (PS). De acordo com o autarca, “na situação de tragédia”, a primeira prioridade é “proteger as pessoas”, a segunda é “recuperar a segurança do espaço físico afetado” e a terceira é “apurar integralmente as responsabilidades” da ocorrência.

Natalina Moura, presidente das Junta de Freguesia de São Vicente, disse ao Observador que a Junta não tinha “conhecimento nenhum destas situações” e que já quando era presidente da Assembleia Municipal “nunca [lhes] chegou nenhuma informação sobre aquela situação”. A responsável disse ainda que “gostava de ter sabido” e que “teria reportado de imediato a situação aos Bombeiros e à Proteção Civil”.

Estruturas de suporte precisam de manutenção regular, defende especialista

Rafaela Cardoso, professora do Departamento de Engenharia Civil do Instituto Superior Técnico, destaca que a construção de uma estrutura de contenção como este muro “requer sempre cuidados”, particularmente “em meios urbanos densamente ocupados”. Preferindo não se referir em particular a esta situação, por desconhecer os detalhes técnicos da estrutura que desabou esta semana na Graça, a especialista reforça a ideia de que estes muros devem ser objeto de “algum tipo de manutenção” periódica e de inspeções regulares.

Ao Observador, Rafaela Cardoso explica que há, por norma, dois tipos de estruturas de contenção diferentes: os muros, “estruturas de suporte rígidas” que funcionam “com base no peso delas, porque são muito espessas e largas”, e as paredes, que são “estruturas de suporte flexíveis” que “têm que incluir sistemas de travamento com um ou mais níveis, tipo vigas, ou ancoragens, ou pregagens, que são elementos estruturais, geralmente de betão ou de aço, que seguram a parede contra o terreno”.

Se forem planeados tendo em conta todos os fatores envolventes, como “o levantamento das estruturas e infraestruturas ou a recolha de dados sobre as características dos terrenos”, e forem construídos à medida que se faz “a monitorização das estruturas vizinhas identificadas na fase do projeto para verificar se há deslocamentos excessivos”, os problemas com estas estruturas deverão ser evitáveis, esclarece a investigadora.

Há, contudo, um conjunto de motivos que podem levar ao desabamento de uma estrutura como esta. “Um aumento da sobrecarga no terreno acima do muro ou a escavação no terreno abaixo do muro”, destaca Rafaela Cardoso, pode ser uma das causas, dependendo “da distância do muro a que estas alterações são feitas. Também o “entupimento do sistema de drenagem, que leva à acumulação de água atrás do muro e consequente aumento do peso do solo”, poderá levar a um desabamento como o que aconteceu na rua Damasceno Monteiro.

“O mau estado do muro, por exemplo a degradação física devido a agentes meteorológicos, biológicos ou humanos”, a “rotura de ancoragens ou de pregagens” no caso das paredes ancoradas ou pregadas, ou ainda a atividade sísmica e outro tipo de impactos podem também contribuir para uma crescente degradação da resistência da estrutura, esclarece Rafaela Cardoso. Para já, segundo a Proteção Civil de Lisboa, ainda não foram determinadas as causas que levaram ao desabamento deste muro na Graça.

O que se sabe, até agora, é que aquele muro é muito anterior à construção do condomínio de luxo no cimo do desnível, remontando pelo menos à década de 40. Novamente sem se referir em concreto à situação ocorrida em Lisboa, a investigadora Rafaela Cardoso sublinha que há cuidados especiais a ter quando se constrói um edifício na proximidade de uma destas estruturas. “Se, por algum motivo, esses edifícios introduzem sobrecargas acima da estrutura de suporte ou podem obrigar a escavações abaixo dela, então tem que se voltar a fazer a verificação da estrutura de suporte que já existe, considerando este novo cenário”, garante a especialista.

Rafaela Cardoso destaca que “se houver problemas perante o novo cenário”, ou seja, se forem identificadas sobrecargas, “tem que haver também uma intervenção na estrutura de suporte para a reforçar”. Além disso, acrescenta a investigadora, “mesmo que não haja consequências para a estrutura de suporte, é boa prática realizar a sua manutenção durante a construção dos edifícios”.