O terreno que a Selminho, imobiliária da família de Rui Moreira, comprou em 2001 “não tinha capacidade construtiva” e continua sem a ter agora, afirmou esta segunda-feira o autarca do Porto. E a propriedade do terreno — se é da Selminho ou se é, afinal, da Câmara Municipal do Porto (CMP), nunca tinha sido posta em causa, a não ser agora, durante o seu mandato. “Prejudicando os interesses da minha família”, sublinhou. Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto e sócio da imobiliária, ouviu durante quase três horas as dúvidas da oposição sobre o caso Selminho e deu a sua versão dos acontecimentos. No fim, acusou “os partidos”, sobretudo os de extrema-esquerda, de “campanha suja”.

A sessão extraordinária da Assembleia Municipal foi convocada pelo partido de Rui Moreira — Porto, o Nosso Partido — e também pelo Bloco de Esquerda. Na agenda, um só tema: o processo Selminho. A discussão centrou-se, sobretudo, em dois pontos principais. Por um lado, o acordo extrajudicial que a Câmara do Porto fez em 2014 com a empresa. Por outro, a notícia, avançada há uma semana pelo jornal Público de que, afinal, uma parcela de 1621 metros quadrados que integra a área apresentada pela Selminho para construção é, afinal, do domínio privado do município, mais 40 metros quadrados de domínio público municipal. O que deitaria por terra, em definitivo, as pretensões da Selminho.

Sobre o primeiro ponto, mal assumiu a presidência do município, em outubro de 2013, e por ter interesses diretos na questão, Rui Moreira assinou uma procuração para que advogados da CMP negociassem por si a posição da autarquia. O que saiu das negociações foi que a Selminho aguardaria pela revisão do Plano Diretor Municipal (PDM), que poderia dar capacidade construtiva ao terreno que a imobiliária comprou na calçada da Arrábida. Caso isso acontecesse, o assunto ficaria resolvido. Mas, caso o PDM não se altere, as duas partes terão de ir a um tribunal arbitral para saber se a Câmara tem de pagar uma indemnização à Selminho e, se sim, de quanto.

O advogado da Câmara, Pedro Neves de Sousa — que Rui Moreira diz ser o mesmo que já acompanhava o caso e que afirma não conhecer — poderia ter decidido não seguir pela via do acordo e deixar que o tribunal decidisse logo se a Selminho tinha razão. Aqui, os deputados dividiram-se: José de Castro, do Bloco de Esquerda, por exemplo, citou pareceres que dizem que a área é considerada escarpa e não pode ser edificada. “Porque é que há por parte da presidência, e de outras figuras com poder de decisão, esta escolha de chegar a um acordo quando a outra parte não tinha direito a construir?”, questionou.

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O acordo celebrado quando Rui Moreira assumiu a presidência da autarquia “tem um conteúdo inaceitável porque assume compromissos que condicionam a elaboração e aprovação do PDM”, isto é, “a Câmara compromete-se a satisfazer as reivindicações de um proprietário”, assumindo “prejuízos patrimoniais e de reputação muito sérios para o município”, afirmou.

Selminho. Acordo com família de Rui Moreira teve por base compromisso inexistente

Luís Ribeiro, do PSD, discordou e acredita que, “provavelmente”, se o processo tivesse seguido para julgamento, a Câmara iria perder e seria condenada a pagar uma indemnização. André de Noronha, deputado eleito pelo Porto, o Nosso Partido, saiu em defesa de Rui Moreira. Recusa que, com o acordo, a Câmara se tenha comprometido a pagar qualquer indemnização. “A Selminho não tem nenhum direito, ainda não ganhou nada“, disse, lembrando que a aprovação do novo PDM é feita ali, na Assembleia Municipal.

Honório Novo, da CDU, foi mais longe e pôs em causa a seriedade de Rui Moreira. “A Selminho foi ou não beneficiada pelo facto de o presidente da Câmara ser sócio? A nossa resposta é que sim, sem dúvida (…). E pode continuar a ser beneficiada por um dos seus sócios ser presidente.” Declarações que Moreira considerou”difamatórias”, e que passam a “linha vermelha”.

Afinal de quem é o terreno?

Sentado numa secção reservada ao público e à comunicação social, um dos irmãos de Rui Moreira, e também sócio da Selminho, seguiu atento a discussão que evoluiu para um facto novo: a titularidade do terreno. Em resultado de uma investigação dos serviços municipais, “constatou-se que já em agosto de 2015 a Direção Municipal de Finanças e Património tinha dúvidas quanto à propriedade de uma parcela de terreno”, começou por dizer o deputado André de Noronha. Aquele organismo remete a questão aos serviços jurídicos que, face a dois pareceres opostos, encomenda um parecer externo especializado em janeiro de 2017. O resultado chegou em fevereiro. De acordo com a CDU, na sequência da resposta, a autarquia partiu, em março, para uma “ação de simples apreciação” na Justiça, o que significa que encara a situação com incerteza “real, séria e objetiva” em relação à posse do terreno e quer, assim, esclarecer qual dos registos é o correto.

“A Assembleia Municipal não foi informada”, criticou Honório Novo. Face aos novos dados, propôs, em nome da CDU, “a reconsideração desse processo e a adoção da assunção de que aquele terreno é nosso. E sendo nosso, o acordo de julho de 2014 é nulo, porque faltava um elemento essencial, que é a titularidade do terreno”, afirmou. Ou seja, para a CDU, a autarquia não deve avançar para a Justiça com dúvidas mas sim partindo do princípio de que é dona do terreno. “A outra parte se quiser que prove o contrário.”

Em votação, a proposta da CDU foi rejeitada com 12 votos a favor, 33 contra e uma abstenção. Entre as propostas que o Bloco de Esquerda trazia para votação estavam a constituição de uma Comissão de Inquérito para esclarecer toda a questão. “Merece o nosso desacordo”, respondeu Gustavo Pimenta, do Partido Socialista, que considerou que a Comissão “é supor que esta Assembleia Municipal dispõe de competências técnicas e de tempo para poder desencadear um verdadeiro inquérito. Não temos condições e não estamos disponíveis para o jogo político”, disse o líder da bancada socialista, que antes já tinha defendido a “probidade” de Rui Moreira na condução de todo o caso Selminho. A proposta do BE de criar uma Comissão de Inquérito foi rejeitada com apenas seis votos a favor, 34 contra e seis abstenções.

A posição da Câmara Municipal do Porto mudou ou não mudou com a presidência de Rui Moreira?

O terreno situado na calçada da Arrábida foi comprado em 2001 pela Selminho Imobiliária Lda por cerca de 150 mil euros a um casal que a registara por usucapião pouco tempo antes. No ano seguinte, com a entrada em vigor das medidas preventivas, o terreno deixou ter capacidade construtiva, decisão reforçada no PDM de 2006. “Só que entre 2001 e 2002, a empresa nunca adquiriu os respetivos direitos construtivos”, afirmou Honório Novo. Em final de 2005, durante o mandato de Rui Rio, a Selminho moveu uma ação judicial contra a Câmara.

Rui Moreira lembrou que as pretensões da imobiliária da qual é sócio já tinham sido discutidas em Assembleia Municipal em 2012 e que, à época, com Rui Rio à frente da autarquia, a decisão foi a mesma de hoje: adiar qualquer decisão para a revisão do Plano Diretor Municipal (PDM). Como prova, distribuiu aos jornalistas cópia de um requerimento de outubro de 2011, do processo que opunha a Selminho e a autarquia. No texto, pode ler-se que a autarquia está a alterar o PDM e que, face à “possibilidade de transigir sobre esta parte do objeto de litígio”, pede nova suspensão. Não menciona, contudo, qualquer indemnização caso tal não se verifique.

Quando Rui Moreira assumiu a presidência, a autarquia já tinha esgotado as suspensões. Ou partia para julgamento, ou fazia um acordo. Optou por esta última opção e aguarda agora que o novo PDM seja apresentado em 2018. Este terá de ser aprovado em Assembleia Municipal.

Honório Novo acusou, contudo, o advogado da Câmara de ter modificado “radicalmente a posição da Câmara no processo”, que passa “de rejeição a admissão total”, admitindo uma indemnização caso não se verifique a mudança do PDM. “Os deputados ficam coagidos entre a aceitação ou a indemnização choruda”, criticou. Francisco Carrapatoso, do PSD, concordou. “Há uma inversão efetiva do posicionamento da Câmara de setembro [de 2013] até junho [de 2014] do que tinha sido até aí. A Câmara até aí tinha dito que a Selminho não tinha direitos construtivos.”

“No acordo que foi celebrado, a Câmara não abdica de nenhum direito“, defendeu-se Rui Moreira, que afirmou nunca ter agido em causa própria. “Ainda por cima, todas as decisões tomadas neste mandato, não apenas continuam a estratégia do anterior executivo, como em nada me beneficiaram”, disse, no final da sessão, lembrando que a questão da propriedade do terreno só foi levantada durante o seu mandato.

O caso Selminho é, para Rui Moreira, “campanha suja” de autárquicas. “Sabemos quem a urdiu”, continuou, lembrando que a sua candidatura independente incomodou os partidos. “Compreendo que isso incomode ainda mais uma esquerda sem cultura do mérito e contra a propriedade.”