O Presidente da República, para muitos o “professor Marcelo”, não perdeu o jeito na sala de aula. Num dia em que não quis aumentar a crispação com São Bento, Marcelo não abdicou de dar lições ao Governo, mesmo que a aula de cidadania fosse dirigida a crianças do sexto ano. Numa escola na Ribeira Grande, nos Açores — onde está no terceiro de quatro dias de visita à região — Marcelo disse que está mais inclinado para fazer um só mandato, brincou com as notícias que saem do que diz nas entrelinhas e ainda se defendeu dos socialistas que o acusaram de se ter aproveitado das tragédias. E fez isto tudo em respostas a perguntas, simples, de crianças de 12 anos. Contou-lhes que teria de ter cuidado para que não houvesse um título arrancado das entrelinhas que tivesse a seguinte formulação: “É tão difícil ter um bom Governo, como ter bom leite.”

A história do leite foi mais uma rábula humorística das notícias que saem sobre si. Tudo começou com a pergunta inocente de uma criança: “Como se sente por ter sempre tantos jornalistas atrás?” Marcelo aproveitou a deixa. Disse que não tinha só jornalistas atrás, mas “à frente, ao lado, por cima, por baixo”. Explicou que os jornalistas querem saber, por exemplo, se o Presidente “quando passou pelo primeiro-ministro em vez de o abraçar imenso, de repente só deu um aperto de mão”. Nesse caso, brinca Marcelo, fazem logo a interpretação: “Atenção, isto está frio”.

A sala ria. Marcelo seguia o registo humorístico. Contou às crianças que quando visita uma fábrica de queijos — como tinha feito durante a manhã na Unileite — os jornalistas lhe perguntam:

Diga lá presidente: é mais difícil fazer queijos ou dar-se com o primeiro-ministro? É mais difícil fazer leite bom ou ter um governo bom? A ver se o Presidente se descai e diz assim uma coisa com piada: ‘Ah, o leite é mais difícil do que o Governo. Ou são os dois difíceis’. Título: ‘É tão difícil ter um bom Governo, como ter bom leite’.”

É por isso que Marcelo se queixa às crianças de que tem de “estar sempre com atenção”. E lembra um caso do dia anterior, quando visitava a Coriscolância, em Ponta Delgada. Estava então o Presidente “a fazer um comentário bem disposto” a contar a uma criança que praticou “Aikido, [uma arte marcial] que aproveita a força do atacante e canaliza essa força contra ele [o atacante] para o imobilizar“. Nesse momento, acrescenta, olhou para a jornalista que estava perto e pensou: “Ó diabo, isto já vai dar uma notícia.” A rábula terminaria com Marcelo a dizer que é preciso “olho vivo” para os jornalistas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O mesmo se passa em sentido inverso. Marcelo aproveitou a resposta a outra criança para se defender dos ataques de que foi alvo por parte de dirigentes do PS (de que tinha retirado aproveitamento político da tragédia). O Presidente estava a descrever o seu dia-tipo — que começa com “uma banana e um iogurte”, mas que é imprevisível porque faz muitas coisas fora da agenda. E muitas vezes não por sua iniciativa. “Na visita que eu fiz pelos concelhos onde houve a tragédia há uma semana e meia, eram os próprios presidentes de câmara ou presidentes de junta que queriam mostrar mais lugares, mais casas, mais campos, mais escolas que tinham ficado danificadas, ou capelas”, começou por descrever. Além disso, garante o Presidente, havia “populações que estavam à beira da estrada e a pedir para parar. E o Presidente não pode dizer adeus e seguir, porque aquelas populações estão a sofrer uma fase muito difícil da sua vida”. Ou seja: Marcelo não só não se aproveitou da situação, como em alguns casos só respondeu a apelos.

Gafe? Ou os problemas são em São Bento?

Na descrição do seu dia-a-dia, Marcelo até deu uma gafe. O Presidente explicava às crianças que parte do seu dia é a “receber pessoas e reunir para ajudar a resolver problemas. Ou em São Bento ou fora de São Bento”. Ora, o Presidente queria — assumindo que foi mesmo uma gafe — dizer Belém. É que S. Bento é a residência do primeiro-ministro, não do Presidente da República.

Marcelo contou ainda às crianças que sai muitas vezes do palácio, o de Belém, para contactar com os portugueses. Caso contrário, teria de estar sempre a ouvir políticos e “os políticos só dizem aquilo que ele já está à espera que eles digam. Normalmente, não há surpresas. É muito raro um político dizer coisas surpreendentes. Ele defende, naturalmente, a sua opinião normal”.

À saída da aula, Marcelo Rebelo de Sousa não agravou o tom, mas também não pôs água na fervura nas relações com o Governo. Deixou o aviso de que não muda na maneira de exercer os poderes, recusou-se a confirmar que a tensão com S. Bento era um assunto encerrado, embora tenha reforçado o desejo de que o Governo dure até ao fim da legislatura. O Presidente explicou que é “muito determinado naquilo que são as linhas do mandato”, deixando o aviso: “Não vai haver mudanças”.

Marcelo avisa que é “muito determinado” e não vai mudar

O primeiro-ministro António Costa respondeu em Vila Nova de Poiares, na mesma moeda, sem subir o tom, mas sem desmentir o conflito. Disse que tinha “nervos de aço” e que acredita que Belém e S. Bento vão “retomar” as relações. Ora, a palavra “retomar” é o admitir que as relações estavam afetadas. Minutos depois — à saída das queijadas do Morgado, em Vila Franca do Campo — Marcelo voltava a ter os microfones estendidos, mas não dedicou ao tema mais do que uma frase:

O que interessa aos portugueses agora não são palavras, são factos. Não é o diz que disse, não é bate-papo. É tratar das vítimas da tragédia”.

Marcelo quis acabar com o pingue-pongue entre Presidente e primeiro-ministro.

Costa sobre tensão com Belém: “Tenho nervos de aço”

E, voltando à aula com as crianças, Marcelo nunca deixa de falar no “neto favorito”, Francisco. O Presidente lembrou, mais uma vez, que foi Francisco que o aconselhou a candidatar-se, mas no fim disse-lhe: “O avô deve pensar em ser Presidente cinco anos. Cinco anos, nós aguentamos. E eu achei: ‘Este meu neto, tinha muita razão‘”. Marcelo tem sido contraditório quanto a uma recandidatura. Umas vezes sugere que fará só um mandato; outras dois. Esta sexta-feira, foi dia de sugerir que fica só cinco anos.

No final do dia, ainda houve oportunidade para um acerto com o Governo numa área em que é costume estar de acordo com António Costa: política externa. Ambos condenaram a declaração unilateral de independência da Catalunha, com declarações muito parecidas.