Luís Ferreira do Nascimento José Maria, gestor que faz parte da nova administração da Sonangol nomeada pelo presidente angolano João Lourenço, terá alegadamente recebido cerca de 2,5 milhões dos 25 milhões de euros que terão sido desviados de forma ilícita dos cofres de uma subsidiária da petrolífera angolana, a Sonair. No centro do caso está um suspeito esquema de branqueamento de capitais que envolverá diversos ex-responsáveis da Sonangol, como o ex-presidente Francisco José Lemos Maria e Mirco Martins (enteado de Manuel Vicente, ex-vice-presidente de Angola e ex-líder da Sonangol), além de um ex-administrador da TAP Air Portugal e diversos advogados portugueses.
O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) investigou todos os responsáveis angolanos que terão desviado mais de 25 milhões de euros no chamado caso Sonair mas acabou por extrair uma certidão sobre os alegados crimes que terão ocorrido em território angolano e enviou-a por carta rogatória para a Procuradoria-Geral de Angola para a continuidade da perseguição penal, de acordo com o despacho de encerramento de inquérito do caso Sonair a que o Observador teve acesso.
Está em causa um crime de abuso de poder — o único ilícito criminal que pode ser imputado aos oito responsáveis da Sonangol que alegadamente terão recebido os cerca de 25 milhões de euros alegadamente desviados, visto que os crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais estão abrangidos por uma amnistia decretada em 2015 pelo então presidente José Eduardo Santos.
Tal ilícito, contudo, só poderá ser imputado a João Alves Andrade, presidente da Sonair à altura dos factos, e Luís Ferreira do Nascimento José Maria, então administrador da Sonair. Tudo porque foram estes os gestores que assinaram um alegado contrato de prestação de serviços fictício com a TAP Air Portugal que está na origem do esquema de branqueamento de capitais denunciado pela acusação do DCIAP no caso Sonair — acusação que esta foi noticiada em primeira mão pelo Correio da Manhã.
De acordo com o despacho de acusação do DCIAP assinado pelo procurador Carlos Casimiro, Luís Ferreira José Maria terá recebido cerca de 2,5 milhões de euros alegadamente desviados do Grupo Sonangol através de uma sociedade offshore das Ilhas Seychelles chamada Fixed Capital — detida por si e pela sua mulher.
A carta rogatória foi enviada para Luanda em agosto deste ano, como o jornal Público noticiou na altura, mas desconhece-se se o caso já foi arquivado ou se continua em investigação em Angola.
Como tudo começou
O caso conta-se em poucas palavras. A TAP e a empresa Sonair, uma subsidiária da Sonangol que trabalha no mercado de transporte aéreo comercial e faz a ligação Luanda – Lisboa, assinaram um contrato de manutenção no início de dezembro de 2008. Do lado da Sonair, o contrato foi assinado por João Alves Andrade e por Luís Ferreira José Maria, enquanto que do lado da TAP rubricou Jorge Sobral (então administrador executivo). Por esse contrato, a TAP obrigou-se a realizar cerca de 32 serviços de manutenção entre janeiro de 2009 e outubro de 2012 mas nunca tais serviços foram efetuados. O que não impediu que a TAP emitisse as respetivas faturas e que as mesmas fossem pagas pela Sonair.
No meio desta história há também uma sociedade inglesa chamada Worldair Services & Consultants. No mesmo dia em que foi assinado o contrato com a Sonair, a TAP assinou um acordo com a Worldair em que se comprometia a pagar uma percentagem, a título de comissão, por cada fatura efetivamente paga pela Sonangol. A participação da Worldair, representada pelo advogado Miguel Alves Coelho, no negócio era feita a título de consultadoria.
O fato de existir um intermediário pelo meio não causa estranheza — ao contrário da percentagem contratualizada que alcançava os 74% da verba paga à TAP. Isto é, a TAP apenas ficava com cerca de 26% do valor que faturava. Estes fees representam valores “muitíssimo superiores”, refere o Ministério Público, aos preços de mercado: entre os 3% e os 4%.
Com o dinheiro nos seus cofres, a Worldair distribuiria então os mesmos fundos por responsáveis da Sonair e da Sonangol. De um total superior a 25 milhões de euros recebidos por esta alegada intermediária entre a TAP e a petrolífera pública angolana, a empresa representada pelo advogado Miguel Alves Coelho terá distribuído aquela soma por contas bancárias de oito sociedades offshore das Ilhas Seychelles e das Ilhas Virgens Britânicas — todas elas pertencentes a responsáveis da própria Sonangol.
No despacho de encerramento de inquérito, o procurador Carlos Casimiro identifica os nomes dos gestores da Sonangol:
- Francisco José Lemos Maria (ex-presidente da holding da Sonangol e sucessor de Manuel Vicente) que deterá a sociedade offshore Corelli que terá recebido cerca de 3 milhões de euros;
- Luís Ferreira do Nascimento José Maria (ex-administrador da Sonair e novo administrador da Sonangol) que será dono da sociedade offshore Fixed Capital que terá recebido 2,5 mihões de euros;
- Mirco de Jesus Martins (enteado de Manuel Vicente, ex-vice-presidente de Angola e ex-líder da Sonangol) que será o último beneficiário da Halifax Global, SA, localizada no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas que terá recebido cerca de 900 mil euros;
- Zandre Eudenio de Campos Finda (apontado em diversas situações como testa-de-ferro do general Leopoldino Nascimento “Dino”) que deterá a sociedade offshore Kennex Global, SA, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas que terá recebido cerca de 400 mil euros;
- Fernando Bernardo Mateus (ex-administrador da Sonangol) que será dono da Cetus Finantial, SA, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas;
- Mateu Sebastião Francisco Neto (ex-administrador da Sonangol) que será o último beneficiário da Kalumba Limited, das Ilhas Virgens Britânicas;
- Raul Coimbra (ex-diretor de Infraestruturas da Sonangol) que será o dono da Wildsea Holdings Limited com registo nas Ilhas Seychelles e que terá recebido cerca de 15 milhões de euros;
Na prática, esta construção jurídica destinava-se, em todos os casos, a engendrar a justificação destes pagamentos indevidos que são impostos a clientes (…) do grupo Sonangol, ou à própria Sonangol, mas como forma de sacar fundos a esta entidade [a Sonangol], para os atribuir, de forma encoberta e sem manifesto fiscal, a pessoas com cargos de responsabilidade dento do mesmo grupo [Sonangol]”, lê-se no despacho de encerramento de inquérito do caso Sonair.
Imóveis apreendidos
À ordem dos autos do caso Sonair encontram-se apreendidos nove imóveis que terão sido adquiridos em Portugal com os fundos alegadamente desviados do Grupo Sonangol. Todos estes imóveis correm o risco de reverter para o Estado precisamente por alegadamente terem sido adquiridos com fundos que têm uma origem alegadamente ilícita. O mesmo se diga de uma quantia indeterminada que está depositada em mais de 20 contas bancárias suspensas pela Justiça portuguesa.
Por exemplo, um dos imóveis apreendidos situa-se na Urbanização Fontalgarve, em Almancil (no Algarve) e terá sido adquirido pela sociedade Wildsea Portugal Investimentos Imobiliários Unipessoal, que, por sua vez, é detida pela offshore Wildsea Holdings Limited, com registo nas Ilhas Seychelles. Esta última empresa pertencerá a Raul António Coimbra, ex-diretor de Infra-Estuturas da Sonangol. Está em causa uma vivenda com três pisos que tem um valor patrimonial de cerca de 729 mil euros.
De acordo com o despacho de acusação assinado pelo procurador Carlos Casimiro, a Worldair terá pago um total de cerca de 15 milhões de euros às duas sociedades que pertencerão a Raul Coimbra.
Outro caso de imóvel apreendido prende-se com Francisco José Lemos Maria, ex-diretor financeiro da Sonangol que sucedeu a Manuel Vicente em 2012 como presidente da Sonangol — tendo, por sua vez, sido substituído por Isabel dos Santos, filha do ex-presidente José Eduardo dos Santos recentemente destituída.
O alegado esquema de branqueamento de capitais terá levado ao pagamento de cerca de 3 milhões de euros a uma empresa offshore detida por Francisco Maria — que terá utilizado uma parte desses fundos para adquirir um T5 na Quinta do Cabeço, em Moscavide com o valor patrimonial (em 2015) de 305 mil euros. Tal imóvel, adquirido por uma sociedade das Ilhas Seychelles chamada Corelli (detida pelo ex-líder da Sonangol), encontra-se apreendido às ordens dos autos do caso Sonair.
As razões para a não acusação da TAP
Do despacho de acusação deduzido pelo DCIAP resultou a imputação formal da alegada prática dos crimes de corrupção ativa no comércio internacional, de falsificação de documento e de um crime de branqueamento contra o advogado Miguel Coelho. Os também advogados Ana Paula Ferreira e João Gomes Correia foram ainda acusados do crime de branqueamento de capitais, enquanto que Jorge Sobral e Vítor Pinto, ex-administradores executivos da TAP, e José João Santos e Pedro Pedroso (estes dois últimos ex-diretores da TAP) foram acusados.
A TAP, enquanto sociedade coletiva, acabou por não ser acusada pelo DCIAP pelos atos dos seus gestores devido à última alteração do Código Penal que revogou o artigo que permitia “a responsabilização de pessoas coletivas públicas, nomeadamente concessionárias de serviços públicos, como é o caso da TAP”, lê-se no despacho de encerramento de inquérito. Como a “lei atual é mais favorável para a TAP, pois não permite a sua responsabilização criminal”, o procurador Carlos Casimiro foi obrigado a arquivar os factos que diziam respeito à transportadora aérea nacional.
Mas mesmo que a lei não tivesse sido alterada, o arquivamento seria inevitável no que à TAP diz respeito. O DCIAP entendeu que a empresa tinha um conjunto de regras internas que foram violadas pelos gestores e funcionários acusados sem o conhecimento da administração liderada por Fernando Pinto — que denunciou o caso ao DCIAP após a realização de uma auditoria interna.