Os 50 cidadãos pagos para fazerem perguntas ao Governo chegaram à reitoria da Universidade de Aveiro por uma porta lateral sem se cruzarem com os jornalistas (o contacto com a comunicação social só aconteceria no fim da sessão, durante cerca de 10 minutos). Mal tiveram tempo para almoçar. No dia que o Governo comemora dois anos, o coordenador do estudo e da sessão de perguntas, o politólogo Carlos Jalali, só teve tempo de comer “meia fatia de pizza” e perdeu quase todo o tempo das suas intervenções a justificar a independência científica do estudo e da sessão. Para isso utilizou o argumento mais óbvio: “A maior parte dos membros do painel votaram PàF [PSD e CDS] nas últimas legislativas [de 2015]”, disse Jalali ao Observador. No fim da sessão, acabaria por mostrar ao Observador, no seu iPad pessoal, em quem votaram os membros do painel: 33% na PàF, 31% no PS. Ora, os socialistas não deixaram de ser o partido mais representado, já que os 33% da PàF dividem-se por PSD e CDS. Então, a esquerda seria, assim, a mais representada no painel, tal como acontece no Parlamento.
Cidadãos que vão fazer perguntas a Costa pagos em vales de compras
A sessão, envolta em polémica, durou cerca de duas horas. Promessa: para o ano, quando se comemorarem três anos de Governo, a cerimónia deverá repetir-se. É Costa quem o garante. Facto: não houve perguntas difíceis, embora uma ou outra fosse mais desconfortável. No fim da sessão, nos dez minutos que estiveram ao alcance dos jornalistas, os participantes estavam indignados com o facto de a comunicação social ter noticiado o caso e garantiam que ninguém lhes condicionou as questões. Mas o problema que se colocava era outro: mesmo sem uma encomenda, uma pessoa paga para avaliar uma entidade ou questioná-la é mais benevolente? Para isso, Carlos Jalali — que disse na sessão que “a ciência não é perfeita” — admite que essa “é uma avaliação que os investigadores vão ter de fazer” durante o estudo.
No pouco tempo que sobrou, Carlos Vilia — um estudante de doutoramento da Universidade de Évora — explicou ao Observador que participou pela primeira vez num estudo deste género e que foi “contactado por uma empresa de recrutamento de participantes em estudos“. Veio de Ferreira do Alentejo e, por isso, considera normal receber um “contributo financeiro para participar no estudo” e diz ser “vergonhoso” que a comunicação social questione a “idoneidade do painel”.
Sobre a forma como foi pago não quis abrir o jogo: “Isso é a Aximage que tem de falar”. Mas aqui surgem sinais de versões contraditórias: Carlos não quis dizer se recebeu 200 euros (como avançou o Sol), mas confirmou que recebeu a compensação em numerário. Isto depois de Jorge de Sá, responsável da Aximage, ter dito no sábado ao Observador que o pagamento era feito em “vales de compras”.
Carlos Vilia disse ainda, em defesa do grupo, que “quando a Coca-Cola paga a painéis para perguntar se as pessoas gostam com mais ou menos açúcar, ninguém reclama”. Na sessão, acabou por não fazer nenhuma pergunta, mas não se importa: “Logo de manhã soubemos que éramos 50 e que só 20 é que iam fazer perguntas.” No entanto, todos terão concordado com as escolhas finais.
Já Júlio, profissional da área de seguros, explica ao Observador que veio de Guimarães e soube do estudo não por uma empresa, mas por “um amigo” que o convidou. Pouco falador, defende que este painel é “genuíno”. Minutos depois, enquanto Júlio respondia a custo, chegaria um dos responsáveis pelo estudo a avisar: “Vamos embora, temos de ir trabalhar”. Afinal, os participantes foram pagos para participar num estudo que continuaria pela tarde dentro e não para falar à comunicação social.
Uma tarde sem perguntas difíceis
O modelo escolhido seria, em nível de dificuldade, um passeio para o primeiro-ministro e para os seus ministros. As perguntas foram decididas em concordância com os membros do painel, sob coordenação do politólogo e coordenador do estudo Carlos Jalali, durante a manhã. Logo, à partida, todo o risco de uma afronta espontânea, ou uma reclamação mais acesa de um cidadão, não existia. De facto, não surgiram perguntas difíceis, nem momentos de tensão. O mais pressionado foi mesmo o ministro das Finanças, mas pelo próprio primeiro-ministro, que, com graçolas, ia enviando indiretas a Mário Centeno sobre as restrições orçamentais.
O espinho era mesmo o pagamento aos cidadãos. António Costa começou por justificar que a “informação é vital para todos” e que um dos desafios do Governo — e que até consta do programa do executivo socialista — é precisamente “aproximar os cidadãos da democracia“. Foi para isso, aliás, que gastou 45 mil euros em 2017 e 11 mil euros em 2016 com grupos focais.
Costa explicou ainda que quer ter um “diálogo tão próximo como possível” e que foi, precisamente, para garantir a imparcialidade desse escrutínio que o Governo recorre a universidades: há um ano, foi com a Universidade de Lisboa, que subcontratou a GFK; este ano, com a Universidade de Aveiro, que recorreu à Aximage. Ora, o portal Base.gov não diz exatamente isso: no ajuste direto de 2016 a contratada foi a Universidade de Lisboa, no de 2017 o ajuste foi feito diretamente à Aximage. É tão natural, que o primeiro-ministro antecipa que vai repetir o mesmo modelo em novembro de 2018, nos três anos de Governo: “Para o ano há-de ser outra universidade.”
Mas vamos então às perguntas. A mais complicada foi aquela em que Rafael Viegas, 36 anos, de Lisboa, fez uma crítica velada ao Governo, acusando o executivo socialista de só agir no combate aos incêndios após as tragédias, mesmo que a pergunta fosse sobre o investimento nas forças de segurança.
Foi preciso o país ser atingido pelos incêndios para haver um reforço dos meios de combate aos incêndios. A minha questão é: se é preciso haver um problema sério na segurança pública para haver um reforço de investimento nas forças de Segurança?”
Fosse ou não um ataque ao Governo, Costa começou à defesa: “Nós não reforçámos os meios em sequência da tragédia. Os meios que existiam foram os que foram utilizados. Foi uma situação diferente: o que houve foi, em função das condições metereológicas, houve uma extensão dos contratos de forma a ter os meios mais tempo”. Quantos às forças de segurança, Costa explicou que “tem havido um reforço”, lembrando também que, para questões como a prevenção do terrorismo, foram dados mais meios aos serviços de informações, nomeadamente no acesso aos metadados das comunicações.
António Costa ia dando a palavra aos ministros conforme a área que estava em causa. O ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, foi dos mais solicitados. Ou não fosse a Saúde (a par do emprego, da educação, do crescimento económico e da transparência, alguns dos temas que mais preocupavam o painel. O primeiro participante, João Esteves, perguntou ao Governo o que estava a fazer para impedir situações como o surto de legionela no Hospital S. Francisco Xavier, que provocou a morte a quatro pessoas e para que não se repetisse.
Adalberto Campos Fernandes, respondeu que este se trata de um “problema de manutenção, de vigilância, num controlo que deve ser apertado”. Nas instalações do Serviço Nacional de Saúde “esse trabalho está a ser feito [agora] com maior acuidade”, garantindo o governante que “a Direção Geral de Saúde apertou a malha”. E acrescentou: “Esta é uma situação que não queremos que se repita.”
“Sou nova para me reformar e velha para trabalhar”
Teresa Silva, desempregada do Porto, foi uma das pessoas que entraram num pequeno diálogo com o primeiro-ministro.
– Teresa Silva: “O que o Governo pensa fazer com pessoas que são novas para ir para a reforma, mas são velhas para trabalhar, como é o meu caso?”.
– António Costa: “Não, não é [velha]”.
– Teresa Silva: “É verdade, é verdade [o que digo]. Quando vou a entrevistas é uma dificuldade…”
António Costa não teimou. Optou por responder que o essencial é investir no “sistema de formação para preparar as pessoas para o mercado de trabalho”, dizendo que há áreas em que “os empresários já se queixam de falta de pessoas para poderem recrutar”. É, por isso que, defende o primeiro-ministro, deve existir uma “reconversão de pessoas em idade adulta para novas competências nas áreas digitais.” Para Costa, a solução está assim em “requalificar” e incentivar os mais velhos a formarem-se noutras áreas.
Já Vieira da Silva, que Costa convidou a intervir, optou por dar a Teresa Silva uma “boa notícia”, observando, claro, que “ainda não lhe tocou”: “É na faixa dos trabalhadores acima dos 45 anos em que o ritmo de crescimento de emprego é maior”. Para o ministro do Trabalho isto é a prova que as empresas começam a perceber que precisam de pessoas com mais experiência.
Teresa Silva não ficou convencida com a conversa dos governantes voltou a pegar no microfone: “Em relação a reinvestir na educação: eu conheço uma pessoa que tem dois cursos e foi a uma entrevista para estagiária e perguntaram-lhe se podia estar de pé oito horas por dia. Ela tem 50 anos. E, portanto, ela continuou desempregada.” Já não houve resposta. O tempo não era muito.
Costa insiste em compromissos na Saúde, Educação e grandes obras públicas
Amélia, de Lisboa, perguntou ao primeiro-ministro o que podia ser feito para que houvesse continuidade nas políticas quando muda o Governo:
O Estado é imprevisível. Hoje temos políticas públicas de saúde, de educação, enfim um conjunto de políticas públicas. Estamos habituados a que muda o Governo e tudo é revogado. O que está a ser feito para que haja alguma estabilidade?”
António Costa começou por dizer que ainda bem que “os Governos mudam”, lembrando que “mudam porque as pessoas querem que o Governo mude (…) numa “dimensão de mudança das políticas, que resulta da dinâmica própria da democracia”. Porém, concorda que “há questões estruturantes para o país relativamente às quais tem de haver continuidade das políticas.” E exemplificou: “Não podemos dizer que é fundamental investir na Educação e na Ciência e daqui a cinco anos dizermos que não é fundamental. Não podemos dizer que relativamente ao SNS é fundamental investir nos cuidados primários e continuados e depois dizer que o que interessa é investir nos cuidados hospitalares.” O mesmo acontece com as “grandes obras públicas” onde, no entender de Costa, o Governo não pode “decidir uma coisa e depois ter Governo a seguir a defender a outra coisa”
O novo sonho de Armindo (concretizado por Centeno?)
Armindo Gonçalves é de Vila Nova de Gaia e professor há 20 anos e “tinha um sonho: entrar para os quadros antes de se aposentar”. Ora, há quatro anos cumpriu esse sonho e passou a ter outro: “subir o escalão e aumentar o salário”. Daí que tenha feito a pergunta: “Em 2018, posso ver o meu vencimento aumentado, já que é igual há 20 anos?”
Costa remeteu o caso para o descongelamento das carreiras, lembrando que a prioridade do atual Governo quando chegou ao poder foi “repor os vencimentos” e que, a partir de janeiro de 2018, o tempo de serviço vai continuar a contar”. Não disse tudo. Por isso, Mário Centeno pediu a palavra. “Só para acrescentar uma nota”. No Orçamento para 2018, cerca de “sete mil professores contratados nos últimos anos foram colocados no primeiro escalão”, como é o caso de Armindo, “vão ser reposicionados” nesse escalão. Costa não deu a resposta que Armindo queria ouvir. Para isso estava lá Centeno.
Normalmente, no Conselho de Ministros, costuma ser ao contrário, como provam as indiretas que os ministros (e o primeiro-ministro), na brincadeira, foram enviando. Foi o caso de Adalberto Campos Fernandes que, por ser o último a falar quis “fazer um apelo” à população: que sejam “eficientes no estilo de vida”. E explicou: “Podemos de viver bem, podemos comer bem. Podemos saborear a dieta mediterrânea, que é uma vantagem do nosso país, mas não temos, necessariamente, nem que ser obesos nem que ser imóveis.” Ora, para ajudar nessa tarefa, o ministro conta com o ”apoio do senhor primeiro-ministro”, mas rapidamente acrescentou que conta igualmente com o “suporte financeiro do senhor ministro das Finanças”.
A sala sorriu. Costa aproveitou também ele para visar Centeno: “Senhor ministro das Finanças, olhe que investir hoje na saúde, é poupar amanhã no sistema de Saúde.”
Ao longo da sessão, os ministros foram aproveitando para falar um pouco das medidas do Governo mais convenientes de acordo com o assunto em questão. Quando Bruno Meira fez uma questão sobre o facto de um “recibo verde” pagar quase 40% dos seus rendimentos em impostos, Centeno lembrou que vai haver, a partir deste Orçamento do Estado um “mínimo de rendimento até ao qual não há tributação para a categoria B [trabalhadores independentes]”, quando antes só existia para a categoria A. Além disso, os chamados recibos verdes, vão ter, de acordo com o ministro, uma imunidade a “penhoras no seu rendimento”. A uma alentejana de Mourão, Vieira da Silva lembrou que o Complemento Solidário para Idosos, que dava um complemento à pensão dos idosos, vai ser aplicado também nas pensões de invalidez.
Ao fim de duas horas, os participantes seguiram para outra sala para continuar o estudo. O Governo voltou para casa. O Executivo conseguiu “vender” várias das suas políticas, num espetáculo mediático com destaque pelas piores razões — embora as televisões não o transmitissem todo em direto, exceto a RTP3 que emitiu mais excertos. A oposição pediu que fosse cancelado, mas Costa quer mais. Em 2018, no mesmo mês, no mesmo dia, o mesmo modelo. Noutra universidade.