Os ministros não fazem pareceres jurídicos. Os membros do Governo, mesmo quando dão opiniões jurídicas, estão a fazer declarações políticas. E quando a ministra da Justiça interpreta na TSF que o mandato da Procuradora-Geral da República (PGR) não é renovável — apesar de ser uma “análise jurídica” –, Francisca van Dunem está a ser tão política que se sujeitou a ser politicamente desautorizada por António Costa no Parlamento, esta terça-feira. Desautorizada, mas não em toda a linha. Costa concorda com a substância do que a sua ministra disse, o que dá ainda mais relevância a tudo o que se passou no debate quinzenal esta tarde. Uma contradição nos termos.

Quando o primeiro-ministro fragiliza a ministra perante os deputados, fica claro que o assunto está na agenda porque van Dunem errou no timing. Quando diz que concorda com a interpretação jurídica da ministra, com o conteúdo, está a fazer política: a PGR está a prazo. Logo, está fragilizada por ficar a saber que no fim do mandato vai sair. Ou então está com as mãos livres para fazer o que entender até ao fim, porque o destino está definido. Nada disto correu bem a nenhum dos protagonistas.

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Tudo isto é política e gestão de danos com efeitos colaterais. António Costa, hábil como se sabe na manobra parlamentar, não costuma dizer palavras destas sem as pesar. O que o primeiro-ministro disse era o que queria dizer. E não precisava ter dito que concordava com a “opinião” da ministra. O que Costa argumentou pode resumir-se a estes seis pontos:

  1. “O calendário impõe que essa decisão tenha de ser tomada em outubro”.
  2. “É errado discutir essa questão neste momento porque a PGR está no exercício das suas funções e tem vários meses pela frente no exercício do seu mandato”.
  3. “Nunca direi nada em público sobre o futuro da Procuradora-Geral da República”.
  4. “A ministra da Justiça deu a sua opinião, que era a sua opinião jurídica. A interpretação da ministra da Justiça parece-me correta”.
  5. “O Governo nunca analisou essa questão”, por ser “prematuro” e por não ter “aprofundado” a matéria”.
  6. “Se o Governo tivesse tomado uma opção política, assumia essa opção política”.

Os argumentos de António Costa são tão politicamente assassinos para a ministra como para a PGR. E são ao mesmo tempo contraditórios nos termos.

Quando o primeiro-ministro diz que Francisca van Dunem está a dar uma opinião “pessoal” ou “jurídica”, desautoriza-a quando refere que o Governo ainda não assumiu essa “opção política”. Tira-lhe autoridade quando diz que é “prematuro”. Dá-lhe uma lição política ao mencionar que nunca falará em público sobre o futuro de Joana Marques Vidal (era o que a ministra devia ter dito à TSF). Puxa-lhe as orelhas ao proclamar que “a primeira pessoa a dizer é ao Presidente da República”. E coloca-a de castigo ao canto da sala ao insistir que “é errado discutir essa questão neste momento”. Se é errado, devia haver consequências políticas. O tema é sério e sensível. Uma ministra da Justiça não devia dizer coisas desta responsabilidade com esta ligeireza.

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Se o primeiro-ministro tencionasse renovar o mandato à PGR, devia demitir já a ministra: por pura irresponsabilidade política, por fragilizar a liderança do Ministério Público que conduziu investigações tão arriscadas e polémicas como as realizadas a um ex-primeiro-ministro e ao ex-maior-banqueiro-do-país, e por ter cometido o erro de se ter esquecido que é ministra e não apenas jurista. Mas António Costa não demite ministros, mesmo quando os problemas são mais graves. Na verdade, nem os outros primeiros-ministros demitiam ministros quando faziam asneira da grossa como esta.

O problema é que as declarações de Costa são contraditórias. Se concorda com a opinião jurídica da ministra, não faz sentido o argumento de que é cedo para discutir o assunto. Se a declaração da ministra está certa, o Governo nada tem que “aprofundar”, porque a decisão estaria assim tomada por defeito: a PGR cessava o mandato, apenas porque a questão da renovação não se colocaria do ponto de vista legal e constitucional, e nem havia discussão sobre o assunto. Se há discussão, é porque a ministra não tem razão.

O outro problema é que António Costa está errado. E parece que a ministra também, o que é um sarilho ainda maior. Hugo Soares, o líder parlamentar do PSD, teve esta terça-feira a melhor prestação parlamentar desde que assumiu os comandos da bancada — uma forma de também se posicionar perante os dois concorrentes a líder do partido, para manter a confiança do lugar. Neste caso, tinha uma arma escondida.

A certa altura, sacou dos arquivos mortos o acordo de revisão constitucional assinado entre PS e PSD, eram líderes António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa. Hugo Soares citou-o no plenário e deixou Costa desconfortável, ao explicitar qual era o espírito da revisão constitucional segundo os legisladores. O texto diz o seguinte: “[PS e PSD] acordam ainda na definição dos mandatos dos altos cargos de juiz do Tribunal Constitucional, 9 anos, não renováveis. Procurador-Geral da República — 6 anos, sem limite de renovação” e Presidente do Tribunal de Contas — 4 anos sem limite de renovação”. Tinha caído por terra o argumento jurídico. Ficava apenas o do erro do timing. E Costa usou a seguir de todos os truques de fuga a perguntas para não voltar a comprometer-se sobre esta matéria.

O Observador, entretanto, falou com uma série de constitucionalistas que têm opiniões que contrariam van Dunem: o mandato é renovável, se não fosse, estaria explícito na Constituição.

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Não é de acreditar que António Costa estivesse mal preparado para o debate. Sabia que esta pergunta havia de aparecer e anteviu-a. O que disse era o que queira dizer. No exercício do costume, contorceu-se. Assinalou a asneira política da ministra e deixou-a fragilizada. Mas defendeu a opinião de van Dunem e colocou Joana Marques Vidal no limbo.

Se a ministra não esteve bem ao deixar a impressão que quer mudar a liderança da PGR, a sua própria casa profissional, Costa não esteve melhor. Deixa a convicção que ele próprio defende a mesma coisa e não serve de muito dizer que sempre respeitou o Ministério Público, mesmo prejudicando a relação com amigos do partido. Uma alusão implícita a José Sócrates.

Seja como for, tudo isto se deve à inabilidade do Governo. O tema não estaria na agenda se a ministra não o tivesse colocado. Não foi uma pesquisa no Google feita pela oposição, como o primeiro-ministro insinuou. O caso não se tornaria ainda mais sério se António Costa não tivesse sido tão António Costa nas respostas.

É claro que o tema de hoje no Parlamento devia ter sido a situação nos hospitais, contra a qual o primeiro-ministro atirou números: os números e uma certa resignação contra a realidade. A Saúde debateu-se, de facto. Mas agora a substituição — ou não — de Joana Marques Vidal entra no debate público pelas piores razões. Depois de nenhum dos candidatos a líder do PSD se ter comprometido com o apoio a uma renovação do mandato, depois de Rui Rio ter recusado elogiar o trabalho do Ministério Público, é o próprio Governo a fragilizar a o organismo que tem em mãos os processos mais complicados de sempre, e que melhor ou pior conduzidos, acabaram com uma ideia feita em Portugal: a proteção dos poderosos. Em suma, uma trapalhada.