A quatro dias do julgamento que está a azedar as relações entre Angola e Portugal, por envolver o antigo vice-presidente angolano, Manuel Vicente, a Procuradora Geral da República lembrou que os “valores constitucionais fundadores dos Estados” e os sistemas de justiça de cada País devem ser respeitados. Joana Marques Vidal referiu a cooperação internacional na investigação criminal e deixou um recado: a ligação “especial” do Ministério Público português aos Ministérios Públicos da CPLP.
Joana Marques Vidal, que recusou o pedido de Angola para que Manuel Vicente fosse ali julgado, nunca se referiu a Angola. Mas reconheceu a “especial ligação” entre os Ministérios Públicos (MP) dos países da CPLP, “pela identidade comum dos princípios enformadores da arquitetura jurídica e judiciária” destes países, e pelos “laços históricos que os unem”.
Naquela que será (presumivelmente) a sua última abertura do ano judicial — Joana Marques Vidal deverá deixar o cargo em outubro — a Procuradora-Geral da República tentava assim, aparentemente, acalmar as ameaças de Angola em retaliar com um cortes nas relações comerciais com Portugal.
Manuel Vicente, que alega nunca ter sido notificado para tal, começa a ser julgado segunda-feira no Campus de Justiça em Lisboa, pelos crimes de corrupção ativa, branqueamento de capitais e falsificação de documento. O Ministério Público acusa-o de ter corrompido o então procurador Orlando Figueira para que arquivasse processos em que estava a ser investigado. Não queria que tais notícias prejudicassem a sua eleição, alega a acusação do MP a que o Observador teve acesso.
Desde então têm sido levantadas questões relativas à imunidade de Manuel Vicente, que à data dos factos que serão julgados, estava à frente da Sonangol e ainda não desempenhava cargos políticos.
Noutro plano, Joana Marques Vidal acabou por elogiar por diversas vezes a resiliência e o “espírito de missão” dos magistrados, que, apesar de serem poucos, têm contribuído para o “retomar do prestígio do Ministério Público”. A Procuradora-Geral saudou, também, o Pacto da Justiça celebrado há cerca de uma semana por vários operadores da área — entre eles advogados, juízes, magistrados do MP e funcionários judiciais — em resposta a um apelo de Marcelo Rebelo de Sousa lançado em setembro de 2016, por altura do novo ano judiciário.
Marcelo apela aos partidos para agirem no Pacto da Justiça
O discurso do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também se focou nesse desafio. O presidente lembrou que “há que aproveitar esses ventos e não perder tempo”, apelando ao poder político para se debruçar no Pacto da Justiça e agir. Marcelo elogiou os avanços conseguidos pelos vários operadores da justiça que esteve na origem do Pacto recentemente celebrado. “Trazem originalidade, trabalho, empenho, abertura ao diálogo e arrojo”, num processo dominado por uma postura assente “no interesse coletivo”, notou o Presidente da República.
Marcelo fez questão de lembrar, aliás, que nem sempre estão em causa “reformas magnas” do sistema; por vezes, notou o Presidente da República, os maiores avanços estão nos “pequenos passos”, nos acordos possíveis. Acima de tudo, defendeu Marcelo Rebelo de Sousa, a abertura para o “diálogo” é essencial para concretizar as reformas de que o país precisa.
Não esperemos pela construção ideal de um sistema completo”, pediu Marcelo Rebelo de Sousa.
A última parte do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa centrou-se, precisamente, num apelo indireto aos dois maiores partidos do regime para que procurem as convergências possíveis nas mais diversas áreas da vida pública e política de Portugal. “O que todos desejamos é que possam decorrer muitos passos positivos para todos os portugueses”, começou por dizer o Presidente da República.
Num discurso relativamente curto, Marcelo Rebelo de Sousa não fez qualquer referência à relação diplomática entre Portugal e Angola, por estes dias dominada pelo “Caso Manuel Vicente”, nem tão pouco do papel de Joana Marques Vidal, que viu a ministra da Justiça sugerir a sua não recondução no cargo — uma decisão que depende exclusivamente do Presidente da República e do primeiro-ministro.
Ministra da Justiça não poupa críticas a Paula Teixeira da Cruz
Francisca Van Dunem, por sua vez, acabou por aproveitar o seu discurso para dirigir muitas críticas às reformas feitas pela sua antecessora, Paula Teixeira da Cruz. Críticas duras e um diagnóstico particularmente negativo: “No final de 2015 o sistema estava exangue”, defendeu a ministra da Justiça.
Para a atual ministra da Justiça, a reforma do mapa judiciário conduzida pelo anterior Governo deixou o sistema “aturdido com uma sucessão de intervenções legislativas que não tinha condições para assimilar”. Mais: estava “debilitado na dimensão do capital humano, drasticamente reduzido com saídas massivas e precoces para a aposentação, em resposta a um ambiente de insegurança e incerteza”.
Van Dunem recordou a esse propósito o encerramento de 20 tribunais, que voltou a reabrir mal tomou posse, e a transformação de 21 outros em Secções de Proximidade e a “implosão do sistema eletrónico de suporte à tramitação processual” — um dos pontos mais polémicos do mandato da anterior ministra da Justiça, referindo-se ao CITIUS.
Num discurso muito crítico em relação às políticas do anterior Governo de Pedro Passos Coelho, Francisca Van Dunem recordou os esforços assumidos pelo atual Executivo, nomeadamente a abertura de concursos para entrada de 252 magistrados judiciais e do Ministério Público para a jurisdição comum e para a jurisdição administrativa, “a entrada de cerca de 400 oficiais de justiça”, bem como a “reabertura dos 20 tribunais encerrados na reforma” e a “modernização” dos sistemas de informação.
Quanto ao Pacto de Justiça recentemente celebrado, Van Dunem limitou-se a dizer que todos os esforços são poucos. “Todos somos poucos para concretizar o desígnio comum de uma justiça acessível, célere segura e compreensível”, notou a ministra, sem se alongar muito em comentários às medidas propostas.
Sobre a relação tensa entre Portugal e Angola, ou sobre a recondução de Joana Marques Vidal, tema que a ministra introduziu no debate político depois de ter tido que, no seu entender, a Procuradora-Geral da República não deveria ser reconduzida, nem uma palavra de Francisca Van Dunem.
Ferro alerta para a importância da “transparência” no Parlamento
Num discurso igualmente politizado, mas não tão crítico, Eduardo Ferro Rodrigues acabou por se dirigir a todos os partidos com assento parlamentar para pedir que não cedam aos “calculismos partidários” e procurem, entre si, as convergências necessárias para que seja possível concretizar as medidas propostas pelos vários operadores judiciais.
“As eleições europeias e legislativas serão apenas em 2019. Os portugueses não compreenderiam que eventuais calculismos partidários prejudicassem a aprovação de mudanças que há muito se impõem”, sublinhou.
Num outro plano, e apesar de nunca ter mencionado as polémicas em torno dos diplomas sobre financiamento partidário e, mais recentemente, sobre a regulamentação do lóbi, o presidente da Assembleia da República pediu transparência aos deputados no processo legislativo.
“A transparência, a publicidade, a divulgação dos processos legislativos não são aliados do populismo; pelo contrário, são um bom antídoto contra o populismo antiparlamentar, pois permitem aos cidadãos escrutinarem os seus representantes e verem com os próprios olhos a democracia a funcionar”, avisou.
As afirmações Eduardo Ferro Rodrigues surgem depois de os partidos com assento parlamentar — à exceção de CDS e PAN — terem sido acusados de falta de transparência ao desenharem e votarem um novo diploma sobre financiamento dos partidos num processo que muitos disseram ter sido conduzido no maior dos secretismos.
“A saúde de uma democracia confunde-se sempre com a saúde do seu Sistema de Justiça. Uma Justiça que funcione de forma célere e eficaz é uma Justiça que garante a confiança dos cidadãos. A boa administração da Justiça é amiga da qualidade da democracia e condição de desenvolvimento económico e social. Uma Justiça independente é sempre condição necessária ao funcionamento de uma democracia pluralista”, disse ainda Eduardo Ferro Rodrigues.