Estava há três anos em funções, como procurador-geral da República, quando rebentou o processo Casa Pia, em 2003. O terramoto provocado por uma investigação sobre pedofilia a envolver figuras políticas e mediáticas foi tão grande que marcou de forma decisiva o mandato de José Souto de Moura. Tanto que, anos mais tarde, em 2009, já depois de ter abandonado funções e ainda o caso Casa Pia estava a ser julgado, gostava de citar o seu irmão, o arquitecto Eduardo Souto Moura, para gracejar sobre o processo: “Segundo o meu irmão, os únicos condenados serão o Bibi e eu próprio”. Na verdade, houve seis condenados a penas de prisão efetiva. E um procurador-geral reprovado, sobretudo por militantes e dirigentes socialistas que viram alguns dos seus atingidos por investigações judiciais relevantes durante o tempo do mandato de Souto de Moura. Hoje, o antigo procurador-geral volta à ribalta, por ter sido o juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça que autorizou e acompanhou as buscas a Rui Rangel.

Há uma hierarquia a cumprir e as diligências judiciais sobre um juiz desembargador da Relação, como é o caso de Rui Rangel, têm de ser ordenadas por um juiz do Supremo. Neste caso, foi nomeado para as acompanhar José Souto de Moura. Esteve no centro da Operação Lex durante as buscas ao juiz Rui Rangel. Ainda assim, é um centro do turbilhão bem menos esmagador do que o que se habituou a viver nos seis anos de mandato a frente da Procuradoria-Geral da República, entre outubro de 2000 e outubro de 2006. Entrou com o PS no poder, saiu com o PS no poder.

Souto Moura à esquerda, quando era PGR; à direita, o então ministro da Justiça, Alberto Costa

O próprio já admitiu parte da responsabilidade pelo que correu mal no seu mandato: “Trinta por cento deveu-se a limitações da minha pessoa, nomeadamente em lidar com a comunicação social, e 70 por cento esteve relacionado com interesses que estavam a ser atingidos, com pessoas com poder”. Naqueles seis anos à frente do Ministério Público, aconteceu o processo Casa Pia, mas também o caso Portucale — por suspeita de financiamento partidário ilegal do CDS — e ainda o Freeport, que apanhava em cheio o então candidato a primeiro-ministro pelo PS, José Sócrates. O caso rebentou, aliás, em plena campanha das legislativas, já há muitos anos o PS tinha montada a famosa “teoria da cabala” — a suspeita disseminada da existência, no Ministério Público, de uma conspiração contra o PS.

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Souto de Moura foi durante anos o cabeça desse cartaz e alvo de todas as críticas socialistas. A sua gestão do processo Casa Pia — cuja investigação sempre defendeu e impulsionou — fez disparar o desconforto do PS. Logo em 2004, deu uma entrevista ao Expresso onde defendia o inquérito e recusava demitir-se do cargo de procurador-geral caso o processo não tivesse o desfecho esperado. Já nessa altura, o PS colocava em causa a sua capacidade e Souto de Moura jurou que não tinha intenção se prejudicar os socialistas: “Foi o PS que me escolheu para procurador-geral. Portanto, a última pessoa interessada em fragilizar ou prejudicar o PS seria eu”.

[Os talões, o seguro e os emails a pedir dinheiro. Veja no vídeo alguns indícios contra Rui Rangel e as polémicas do juiz]

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Críticas ao “gato constipado”

As críticas começaram logo em 2003, sobretudo depois da detenção e prisão preventiva do então deputado socialista Paulo Pedroso, no âmbito do processo Casa Pia. O líder do PS era Ferro Rodrigues e o líder da bancada parlamentar era António Costa — e ambos se queixaram publicamente de terem sido alvo de escutas telefónicas ilegais. O PGR insurgiu-se perante estas declarações, mostrando “surpresa” pelo conhecimento por parte dos socialistas de “elementos que fazem parte do processo e que são altamente sigilosos”. O fogo cruzado não parou mais, com o PS a atacar Souto de Moura a partir do Parlamento e a Procuradoria-Geral a emitir comunicados a criticar abertamente a tentativa de “politização da Justiça”. E espalhou-se também na opinião pública, ficando famosa uma alcunha criada para Souto de Moura, da autoria do ensaísta Eduardo Prado Coelho, na sua coluna de opinião do Público, onde lhe chamou “gato constipado”.

A sua ação como PGR mereceu até reparo público de um antigo Presidente da República. Em 2006, em plena campanha das presidenciais, o jornal “24 horas” revelou que, no processo Casa Pia, existiam listas de faturação detalhada com registos de chamadas telefónicas de vários titulares de órgãos de soberania, onde se incluía Jorge Sampaio. O socialista era ainda Presidente e chamou Souto de Moura a Belém. Foi aberto um inquérito, mas, no fim desse ano, Sampaio, já depois de deixar a Presidência e mesmo antes de Souto de Moura deixar a Procuradoria, disse estar “espantado” com o tempo que a PGR levara para investigar o caso. “Quando solicitei a intervenção faltava um mês para terminar o meu mandato, e entretanto passaram seis meses sem que tivesse ficado esclarecido”, disse.

Anos mais tarde, no final de 2005, o Expresso noticiou que altos dirigentes do PS e também do CDS tentaram demitir José Souto de Moura mal José Sócrates chegou a primeiro-ministro. O procurador-geral estava a um ano do final do mandato e as escutas feitas no âmbito do caso Portucale mostravam que tinha havido contactos informais, do então primeiro-ministro José Sócrates, a propor Rui Pereira para o lugar de procurador-geral. Sócrates negava: “O Governo não se ocupa de escutas telefónicas, porque essa é matéria das autoridades policiais”. Souto de Moura lamentava, mais uma vez, a violação do segredo de justiça e pedia que o Executivo agisse para acabar com essa prática — curiosamente, de que o PS se tinha queixado tanto durante o processo Casa Pia.

Souto de Moura acabou por não se reconduzido, sem surpresa, e o PS escolheu Fernando Pinto Monteiro para lhe suceder na Procuradoria-Geral. Depois daqueles seis anos, o ex-PGR saiu da ribalta mediática que o próprio admitiu nunca ter conseguido gerir e passou diretamente para o Supremo, onde é agora juiz conselheiro — e onde a ribalta mediática o voltou a encontrar.