O juiz conselheiro António Latas já tinha pré-avisado de que se preparava para partir os autos da Operação Lex em dois processos — e concretizou. Com o argumento de que Rui Rangel e Fátima Galante perderam a qualidade de desembargadores, Latas emitiu um despacho de 35 páginas sobre a conexão de processos, ao qual ao Observador teve acesso, e decidiu que apenas os crimes imputados pelo Ministério Público ao desembargador Vaz das Neves e a outros co-autores serão julgados pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ).

Operação Lex. Supremo pronuncia Luís Filipe Vieira por recebimento indevido de vantagem e juízes da Relação por corrupção

A decisão é polémica, vai dar lugar a vários recursos que deverão ter efeito suspensivo e respetiva guerra judicial e promete emperrar os autos da Operação Lex por algum tempo. E tudo acontece depois do STJ ter decidido a pronúncia para julgamento dos mesmos arguidos numa decisão tomada em dezembro de 2022.

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Para já, o despacho saneador com data de 10 de março do conselheiro António Latas, que é o juiz relator do julgamento, aponta para as seguintes consequências:

  • Apenas os crimes de corrupção passiva e abuso de poder imputados ao desembargador Vaz das Neves serão julgados no STJ.
  • Outros arguidos acusados no regime de co-autoria dos mesmos crimes em conjunto com Vaz das Neves também serão julgados no STJ. Ou seja, Rui Rangel, Otávio Correia (ex-funcionário da Relação de Lisboa) e o empresário José Santos Martins serão apenas julgados em relação a esses crimes no STJ.
  • Os restantes crimes relacionados indiretamente com Vaz das Neves, nomeadamente os crimes de corrupção ativa imputados a José Veiga, também serão julgados no STJ.
  • Os restantes 15 arguidos, nomeadamente Luís Filipe Vieira, Fátima Galante (ex-mulher de Rui Rangel) e outros (ver lista no final do artigo), assim como os respetivos crimes, serão julgados em primeira instância. O que significa que, por exemplo, o crime de recebimento indevido de vantagem imputado a Luís Filipe Viera e a Rui Rangel serão julgado na primeira instância.
  • O mesmo se diga de todos os restantes crimes imputados a Rui Rangel, a Otávio Correia, José Santos Martins e José Veiga.

Na prática, o juiz conselheiro António Latas decidiu que os autos do processo Lex terão dois julgamentos.

‘Fotos’ de cerca de 350 mil euros de Veiga, contas de amigos e SMS. Como Rangel e Vaz das Neves terão sido corrompidos

Os argumentos do conselheiro Latas

O raciocínio do juiz conselheiro António Latas, que é o juiz relator dos autos e que faz parte do coletivo que iria julgar todos os arguidos pronunciados para julgamento em dezembro de 2022, consiste na seguinte ideia: quer Rui Rangel, quer Fátima Galante — os dois arguidos centrais da Operação Lex — perderam a qualidade que tinham de juízes desembargadores.

Logo, isso afeta a competência do STJ para julgar todos os arguidos.

“Na verdade, a acusação parece ter sido indiferente à grande alteração que a perda de qualidade de juiz pelo arguido Rui Rangel, e a consequente perda de foro próprio, implicava na competência originária do STJ”, começa por afirmar António Latas no seu despacho.

Ou seja, tendo em conta que Rui Rangel é o principal arguido da Operação Lex “quando ainda era juiz desembargador na Relação de Lisboa e tal condição funcional “veio a alterar-se com a pena disciplinar de demissão que lhe foi aplicada com efeitos a 6 de dezembro de 2019”; e tendo em conta que também foi decidida a “aposentação compulsiva de Fátima Galante com efeitos a 14 de dezembro de 2019”, isso tem consequências estruturais no processo.

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Entende o conselheiro António Latas que, a partir do momento em que aqueles dois arguidos deixaram de ser, para todos os efeitos, “a qualidade de juízes desembargadores”, então com essa perda afeta diretamente o “foro próprio” do STJ.

Porquê? Porque, a partir de então, o Supremo deixou ter “competência própria para a instrução e julgamento dos crimes imputados ao arguido Rui Rangel e à arguida Fátima Galante”, logo “esses crimes deixaram de poder operar como crimes determinantes da competência do STJ por conexão”, lê-se no despacho.

Ou seja, passaram a ser os “os crimes imputados a Vaz da Neves a assumir integral e unicamente tal qualidade” de conexão, sendo que a competência do Supremo tem de ser ‘construída’ em redor de todos os crimes e factos que estão relacionados diretamente e indiretamente Luís Vaz das Neves no seu centro.

As mensagens de Vieira a “apertar” com Rui Rangel para resolver um processo e as exigências do juiz para ajudar

Arguidos e crimes e onde serão julgados

  1. Julgamento no Supremo Tribunal de Justiça:

Luís Vaz das Neves, juiz desembargador jubilado

  • Um crime de corrupção passiva em regime de co-autoria com Rui Rangel, Otávio Correia e José Santos Martins
  • Dois crimes de abuso de poder em regime de co-autoria com Rui Rangel

Rui Rangel, juiz desembargador demitido 

  • Um crime de corrupção passiva em regime de co-autoria com Vaz das Neves, Otávio Correia e José Santos Martins
  • Dois crimes de abuso de poder em regime de co-autoria com Vaz das Neves

Otávio Correia (ex-funcionário da Relação de Lisboa) e José Santos Martins (empresário e alegado testa-de-ferro de Rui Rangel)

  • Um crime de corrupção passiva em regime de co-autoria com Vaz das Neves e Rui Rangel

José Veiga (empresário)

  • Um crime de corrupção ativa de Vaz das Neves

2. Julgamento no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa:

Rui Rangel, juiz desembargador demitido 

  • Um crime de corrupção passiva para ato ilícito
  • Um crime de recebimento indevido de vantagem
  • Um crime de abuso de poder
  • Um crime de usurpação de funções
  • Um crime de abuso de poder
  • Três crimes de falsificação de documento
  • Seis crimes de Fraude Fiscal
  • Um crime de branqueamento

Fátima Galante, juíza desembargadora aposentada compulsivamente

  • Um crime de corrupção passiva por ato ilícito
  • Um crime de abuso de poder
  • Seis crimes de fraude fiscal
  • Um crime de branqueamento

José Bernardo Santos Martins, advogado e alegado testa-de-ferro de Rui Rangel

  • Um crime de corrupção para ato ilícito
  • Um crime de abuso de poder
  • Três crimes de falsificação de documento
  • Seis crimes de fraude fiscal
  • Um crime de branqueamento

Octávio Correia, oficial de justiça 

  • um crime de abuso de poder
  • um crime de fraude fiscal

Luís Filipe Vieira, empresário

  • Um crime de recebimento indevido de vantagem

Fernando Tavares, economista e dirigente do Benfica

  • Um crime de recebimento indevido de vantagem

Jorge Barroso, advogado e assessor de Vieira

  •  Um crime de recebimento indevido de vantagem

Bernardo Santos Martins, assistente de administração hotelaria

  • Seis crimes de fraude fiscal
  • Um crime de branqueamento

Nuno Costa Ferreira, comerciante

  • Dois crimes de fraude fiscal

Albertino Figueira, reformado

  • Seis crimes de fraude fiscal

Rita Figueira, sem profissão conhecida

  • Seis crimes de fraude fiscal

Bruna Garcia do Amaral, advogada

  • Um crime de abuso de poder
  • Quatro crimes de fraude fiscal

Elsa Correia, técnica de comércio 

  • Um crime de fraude fiscal

Oscar Hernandez Lopes, economista e advogado

  • Três crimes de falsificação de documento