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AFP/Getty Images

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Agatha Christie: a escritora que sabia matar

Criou Poirot e Miss Marple, vendeu milhões e é a terceira escritora mais traduzida de sempre, só atrás de Shakespeare e da Bíblia. Morreu há 40 anos. Miguel Freitas da Costa lembra a rainha do crime.

Julian Symons, grande conhecedor da literatura policial e também seu distinto praticante, diz no seu Criminal Practices que Agatha Christie “reinou” durante meio século sobre esse vasto domínio, especialmente durante a chamada Idade de Ouro do género. O seu reinado começou nos anos 20 do século passado, com o seu primeiro romance publicado, O misterioso caso de Styles (The mysterious affair at Styles; Styles foi também o nome de uma das casas da autora). Nesse mesmo romance nasceu a sua principal e mais famosa criação, o detetive belga (belga?! – há uma prosaica explicação para esta enigmática escolha) Hercule Poirot.

Morreu, por assim dizer, de cetro na mão, a 12 de Janeiro de 1976, com 85 anos. Escrevera praticamente até morrer: tinha saído poucos meses antes o seu último livro publicado em vida (escrito durante a Segunda Guerra Mundial e guardado trinta anos num cofre); nesse romance, a que deu o apropriado título de Curtain (em Portugal, Cai o Pano – o último caso de Poirot, n.º 348 da coleção Vampiro, tradução de Mascarenhas Barreto, um dos mais prolíficos e mais capazes tradutores de romances policiais, que merece ser destacado num universo onde abundam as traduções atamancadas) – nesse livro quase póstumo fizera também cair o pano sobre a sua criatura mais universalmente conhecida, fechando assim premeditadamente como tinha aberto o círculo da sua longa e profícua carreira literária.

Vendeu mais de mil milhões de exemplares dos seus livros e está traduzida para mais de 100 outras línguas. Só Shakespeare e a Bíblia a bateriam nesse capítulo.

A “rainha do crime” continua a reinar depois de morta. Os seus livros continuam a ser constantemente reeditados. Diz-se que os exemplares vendidos dos seus livros se contam por mais de mil milhões ou mesmo dois mil milhões, conforme as fontes, que foi traduzida para mais de 100 outras línguas. Só Shakespeare e a Bíblia a bateriam nesse capítulo. A sua obra no romance, no conto e no teatro deu origem a incontáveis filmes e séries de televisão. Dame Agatha Christie bem mereceu do Império que a seu devido tempo a homenageou: ganhou direito ao OBE depois do nome que indica a sua consagração como membro da Most Excellent Order of the British Empire (primeiro como CBE, Commander, depois promovida a Dame Commander, DBE). É só por si uma indústria nacional. Em Portugal, estão neste momento disponíveis algumas dezenas de títulos seus. No catálogo da Biblioteca Nacional há mais de 400 referências a edições portuguesas de livros seus ou a seu respeito.

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[Veja nesta fotogaleria algumas capas da Colecção Vampiro]

8 fotos

Agatha Mary Clarissa Miller nasceu a 15 de Setembro de 1890. Foi educada em casa, na sua casa burguesa e campestre. Em 1914 casaria com Archibald Christie, que lhe deu com o nome o seu apelido literário; não foi feliz: no célebre caso da sua desaparição durante vários dias que o médico e seu biógrafo Andrew Norman, e outros, atribuem a um estado que designam clinicamente por “amnésia psicogénica” ou “estado de fuga”, instalou-se num hotel sob o apelido da amante do marido. (Em 1979, o filme “Agatha” – Vanessa Redgrave, Dustin Hoffman, etc., de Michael Apted, que pelo seu “Gorky Park”, diga-se a propósito, ganhou um lugar na história do filme policial – deu uma interpretação ficcionada e supostamente fantasiosa desse episódio.) Divorciar-se-ia do marido infiel em 1928 para casar dois anos depois com o arqueólogo Max Mallowan (que mais tarde faria dela Lady Mallowan).

O jornal Daily Sketch anuncia o regresso em segurança de Agatha Christie depois do seu misterioso desaparecimento

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Crime no Vicariato

Murder at the Vicarage, de 1930 (talvez melhor Crime no Presbitério, como traduzem os franceses, ou “na Reitoria”?) foi o primeiro romance de Agatha Christie protagonizado pelo segundo “detetive” mais querido e mais conhecido do público entre os três ou quatro que ela criou e usou na sua ficção com êxito variável: Miss Marple. Foi provavelmente a pensar nele que o grande poeta W. H. Auden deu ao ensaio sobre o romance policial que publicou em 1946 o título de “The Guilty Vicarage”, “O Presbitério Culposo”. Curiosamente, o ensaio de Auden não fala uma única vez em Agatha Christie (não era preciso?) embora a sua caraterização do tipo de livros que analisa corresponda exatamente ao género cultivado pela criadora de Hercule Poirot. (De resto, Poirot também não é nenhum dos três únicos detetives que ele considera “completamente satisfatórios” e são “Sherlock Holmes de Conan Doyle, o Inspector French de Freeman Wills Croft e o Padre Brown de Chesterton” — é preciso redescobrir os estupendos contos do Padre Brown e, já agora, Os paradoxos de Mr. Pond do mesmo Chesterton.)

“Para mim, como para muitos outros – escreveu Auden – a leitura de romances policiais é um vício como o tabaco ou o álcool.” (“Um volume de um destes autores, um cigarro de 45 ao pacote, a ideia de uma chávena de café … resume-se nisso a minha felicidade” – escrevera muito antes outro poeta, o português Fernando Pessoa). Os romances policiais de que fala Auden são o que os anglo-saxónicos chamam whodunits (quem foi?) e cuja fórmula é assim caraterizada por ele: “Ocorre um homicídio; há muitos suspeitos; todos os suspeitos, fora um, que é o assassino, são eliminados; o assassino é preso ou morre. A fórmula pode ser esquematizada como segue: Estado de harmonia anterior/Falsa Inocência/Crime/Revelação da presença de culpa/Falsas pistas, crime secundário, etc./Falsa localização de culpa/Solução/Localização da verdadeira culpa/Detenção do assassino/Catarse/Estado de harmonia a seguir à detenção/Verdadeira inocência.” Há muito mais coisas no “romance policial” do que aquelas que a filosofia de Auden conhece. Para ele, nunca são “obras de arte”, o que se conhece pela sua imediatez e fugacidade: “Assim que acabo a história esqueço-me logo dela e não tenho qualquer desejo de a ler outra vez.” Literariamente, no melhor dos casos, ‘meras’ demonstrações de prestidigitação verbal ou visual.

[Veja nesta fotogaleria algumas capas estrangeiras]

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Sabemos com Jean-Patrick Manchette, que “o romance policial… pertence àquilo que os sociólogos chamam a cultura de massas… como outro género de textos (e como certos media na sua quase totalidade), é feito imediatamente para o mercado”. “Contos de fadas para quem não tem imaginação”? Não são bucólicas as fantasias que hoje costumam entreter-nos mas o facto é que Dame Agatha continua a ser lida. O mundo dos seus romances é na mesma um mundo de fantasia que nos distrai (não é esse o propósito da literatura “de evasão”?) – não é um mundo antigo, é um mundo intemporal que passa por ser um mundo antigo. A relação com o mundo social ou psicológico está reduzida ao mínimo. A charada é tudo. Mas também é certo, em sua defesa, que “um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais”, como escreveu também Pessoa.

Dez pretinhos

Ten Little Niggers (sem Poirot), de 1939 é, ao que parece, o romance mais vendido de Agatha Christie e um dos romances mais vendidos de sempre (100 milhões de exemplares até 2009, segundo informação de uma fonte publicada, citada no circunstanciado artigo da Wikipedia sobre Agatha Christie). Numa votação que assinalou os 125 anos do nascimento da autora, o ano passado, era de todos os seus muitos livros o preferido em todo o mundo, seguido de Murder on the Orient Express (Um crime no Expresso do Oriente) e The Murder of Roger Ackroyd (O assassinato de Roger Ackroyd), um dos seus tour de force (os dois com Poirot). Em francês, na coleção Le Masque, este último chamou-se Qui a tué Roger Ackroyd?, Quem matou Roger Ackroyd?, que dá uma pista para o segredo desta história, que não vou revelar a quem ainda não a tenha lido. Com esse mesmo título existe um exercício razoavelmente divertido de Pierre Bayard – mais conhecido, se alguém o conhece, como autor de Comment parler des livres que l’on n’a pas lu, como falar dos livros que não lemos – que é “um romance policial sobre um romance policial, com a ajuda da psicanálise” e sobre o “delírio de interpretação”. Serviu também de mote a um famoso ensaio muito enjoado do crítico “progressista” americano Edmund Wilson, intitulado “Who cares who killed Roger Ackroyd?”, incluído na colectânea Classics and Commercials, que contém igualmente, já que falamos nisso, “Why do people read detective novels?” e um outro ensaio que faz pouco de Sherlock Holmes mas ainda assim salva as suas aventuras do desprezo geral a que vota o género. (Nesse artigo da sua “crónica literária dos anos quarenta”, Wilson nota que a indignação manifestada por muitos leitores do seu ataque à literatura policial foi ainda maior do que a provocada de cada vez que se permite críticas à União Soviética! Sinais dos tempos.)

Ten little niggers – já não há edições com este título – é uma história cheia de inverosimilhanças que, pelos vistos, não desanimam a clientela. O título sofreu algumas vicissitudes: na América mudaram-lhe o nome para And then there were none e em toda a parte os “ten little niggers” acabaram por ser “ten little indians” dada a conotação insultuosa adquirida pelo inocente “niggers” original. Como outros livros de Agatha Christie, o título refere-se a uma nursery rhyme inglesa – que acaba justamente “and then there were none“. Em português, existe uma lengalenga equivalente, com várias versões – incluindo uma “xácara” de Mário Cesariny de Vasconcelos – como o “romance das dez meninas casadoiras” ou o “das doze moças donzelas”. Na versão da minha infância começava assim: “Eram dez meninas todas metidas num fole, deu o tranglomanglo nelas, não ficaram senão nove” – e por aí fora até “se acabar a geração”. Em Portugal tem o título um tanto trangalhadanças e quase incompreensível de As dez figuras negras (bem sabemos que os dez do título são todos supostos assassinos, é a única explicação, mas nada tem a ver com o jogo de palavras do título original). Ten little niggers – um título que não se destinava a ofender ninguém – foi adaptado mais do que uma vez ao cinema, sempre sob um dos novos títulos.

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As pequenas células cinzentas

O nome de Agatha Christie está para sempre associado a Hercule Poirot, a sua mais memorável criação e cuja presença, para alguns leitores menos fanáticos como eu, foi condição quase indispensável para ler um livro da autora. E Poirot está para sempre associado à sua proverbial alusão às suas supostamente abundantes petites cellules grises. Recentemente, aliás, saiu em Portugal um livro de “citações de Poirot” assim chamado: Pequenas células cinzentas (Asa, 2015). É um sinal do especial talento de Agatha Christie que, esquecidos, por exemplo, o Lorde Peter Wimsey ou o Albert Campion de, respetivamente, Dorothy Sayers e Margery Allingham, duas distintas praticantes do género contemporâneas de Agatha Christie, Poirot lives!

Poirot é um observador e um raciocinador implacável e excêntrico. Segue a tradição do seu modelo mais próximo e grande paradigma da detective novel, o Sherlock Holmes de Conan Doyle. Tem no Capitão Hastings o seu Dr. Watson (que também era um militar). Vem em linha recta do Monsieur Dupin dos contos de Edgar Allan Poe que toda gente concorda em considerar fundacionais: Os assassinatos da Rua Morgue e A carta roubada. É um modelo sempre repetido, com toda a espécie de variantes, de Philo Vance a Nero Wolfe.

Entre as muitas adaptações cinematográficas (para os cinemas ou para a televisão) da obra de Agatha Christie têm tido papel destacado as aventuras de Poirot. Interpretado por muitos actores ilustres, ninguém discute a supremacia – por muitas distâncias – de David Suchet.

Das oito dezenas de romances de Agatha Christie (que sob o pseudónimo de Marie Westmacott publicou alguns romances cor-de-rosa, o género que nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, onde o nosso romance é uma novel, é que recebe o epíteto de romance) umas três dezenas têm como protagonista o detetive belga. Foram também uns 30 – dizem-me, não os contabilizei – os livros dela que deram origem a filmes, sem contar os contos ou as peças de teatro. Entre as muitas adaptações cinematográficas (para os cinemas ou para a televisão) da obra de Agatha Christie têm tido papel destacado as aventuras de Poirot. Interpretado por muitos actores ilustres, ninguém discute a supremacia – por muitas distâncias – de David Suchet, na bem conhecida série de televisão. Albert Finney ou Peter Ustinov, com o devido respeito, são dois dos flagrantes erros de casting que até Suchet foram a regra na carreira filmada do “melhor detetive do mundo”, que também foi interpretado, os produtores às vezes parecem estar por tudo, por Tony Randall ou Ian Holm (da escolha de Alfred Molina para um “Crime do Expresso no Oriente” realizado para televisão, em 2001, nem se pode decentemente falar).

Crime, disse ela

A definitiva encarnação cinematográfica de Poirot levou quase cem anos a aparecer. Não foi o caso de Miss Marple. No primeiro filme que protagonizou, “Murder, she said” (“O estranho caso da velha curiosa”, 1961) encontrou logo a personificação ideal: Margareth Rutherford. Depois é que vieram as asneiras. Para confundir as coisas a série de televisão que recebeu o título de “Crime, disse ela” (“Murder, She Wrote”) só tem a ver com as aventuras de Miss Marple na alusão do título e em ser protagonizada por uma senhora “detetive”; a intérprete principal da série foi Angela Lansbury, que já interpretara o papel de Miss Marple num filme: “The Mirror Crack’d” (“Espelho quebrado”, 1980) – nunca mais acaba …

As mulheres, deve dizer-se, tiveram um papel determinante no tipo de romance policial que Agatha Christie domina. Aquele que é considerado o primeiro romance policial americano foi escrito em fins do séulo XIX por Anna Katharine Green: The Leavenworth Case (O caso da quinta avenida, n.º 562 da colecção Vampiro, que recupera a tradução do primeiro terço do livro que fora feita por Fernando Pessoa e publicada em folhetins num jornal efémero, O Sol). Na chamada Idade de Ouro da detective novel, entre as duas Guerras Mundiais, mandaram várias mulheres, como as já referidas Dorothy Sayers e Margery Allingham ou Josephine Tey. Mais perto de nós, baste referir Patricia Cornwell, Ruth Rendell (Barbara Vine), as Higgins Clark e tantas outras, até às nórdicas como Maj Sjöwall ou Yrsa Siguroardótir, incluindo, claro está, a P. D. James que teve direito a uma capa da Time em 1986 (há 30 anos, os anos passam a correr): P. D. James, The Mistress of Crime (ninguém se atreve a destronar Agatha Christie).

Mas o pano ainda não caiu. No teatro, Agatha Christie também tem um recorde. Está em cena em Londres desde 1952 (são dezenas de milhares de representações), ininterruptamente, a sua peça “A ratoeira” (“The Mousetrap”, em que se ilustrou e ganhou muito dinheiro um jovem Richard Attenborough); “A ratoeira” foi posta em cena em Portugal em 1960, no Teatro Monumental (com Maria Dulce, Ruy de Carvalho, Paulo Renato, Villaret, etc. O programa e outras informações podem ser consultadas numa página já com alguns anos do blogue Mistério Juvenil). Para acabar por aqui esta história interminável seria imperdoável deixar de lembrar “Witness for the Prosecution”, “Testemunha de acusação” (1957), o excelente divertimento que Billy Wilder adaptou de outra peça dela também de grande êxito, com uma extraordinária interpretação a contrapelo do galã Tyrone Power (o seu melhor papel, que não resultaria sem todos os convencionais papéis da sua anterior carreira e mais não posso dizer), uma das melhores e mais bem calibradas interpretações do grande mas às vezes cabotino Charles Laughton e uma inesquecível participação de Marlene Dietrich.

Miguel Freitas da Costa foi cronista no Expresso, no Público, no Diário Económico e no DN, entre outras publicações. Foi director editorial da Guimarães Editores e secretário-geral da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. É tradutor.

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