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Omer Messinger/Getty Images

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Angela Merkel. Não subestimem "Frau Alemanha"

Merkel tornou-se Chanceler quando ninguém achava que tinha perfil. Em 12 anos, acabou com a energia nuclear e deixou entrar 1 milhão de refugiados. O último mandato vai ditar o seu lugar na História.

Reportagem na Alemanha

Em 2000, quando Angela Merkel assumiu a liderança do seu partido, a CDU, Bill Clinton ainda era o presidente norte-americano. Em Portugal, estava António Guterres aos comandos do Governo. George W. Bush, Tony Blair e Jacques Chirac eram os seus homólogos internacionais quando se tornou Chanceler, em 2005. Merkel viu o enterro político deles todos e ainda os de Cameron, Sarkozy e Berlusconi, o fim da era Obama e as mortes de Nelson Mandela, Fidel Castro e Hugo Chávez. Dezassete anos de política na mais alta esfera, 12 como líder de um país que viveu com ela os seus anos dourados. E, no entanto, tudo começou de forma acidental.

“O maior segredo de Merkel foi ter sido sempre subestimada”, diz Wulf Schmiese, de 50 anos, ex-editor de política dos jornais Frankfurter Allgemeine Zeitung e Die Welt e actual director do telejornal da ZDF. “No início, ela era a menina da Alemanha de Leste que os homens fortes da CDU, como Peter Müller ou Roland Koch, sucessores naturais do legado de Helmut Kohl, queriam manter por um ou dois anos, para depois atacarem o poder. Nunca pensaram que ela algum dia podia vir a ser Chanceler. Não tinha imagem, era fraca nos discursos e, apesar de a considerarem inteligente, pensavam que ia ser uma presa fácil de abater”.

“Sou um pouco liberal, um pouco social-democrata, um pouco conservadora”
Angela Merkel, em 2009

Mas Merkel deu logo aí sinais de um exímio sentido tático. Abdicou da candidatura a Chanceler em 2002 para ganhar visibilidade como líder da bancada da oposição. Desembaraçou-se da oposição interna e concorreu para a chefia de governo contra Gerhard Schröeder, em 2005, com uma agenda neoliberal. Venceu por um ponto. “Num debate após essas eleições, Schröeder, fora de controlo, rejeitou uma coligação e dirigiu-lhe palavras agressivas. Ela manteve-se calma e calada. Com essa atitude, fez com que aquele núcleo duro da CDU que a queria eliminar se juntasse para a defender. Com racionalidade e engenho, conseguiu conquistar as bases e as cabeças do partido. E assim que começou a governar deixou cair a agenda neoliberal, coligou-se com os socialistas e passou a adotar posições mais à esquerda do seu espectro político”, explica Schmiese.

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Ninguém percebeu que estava a nascer um estranho animal político. Angela Merkel, a esfinge saxónica, inescrutável nas suas crenças e vida pessoal, não estava subjugada a uma ideologia. “Sou um pouco liberal, um pouco social-democrata, um pouco conservadora”, disse, em 2009. Para Konstantin Richter, que no seu livro “A Chanceler” imagina a sua vida privada, a quebra de confiança na ideologia deveu-se à sua própria experiência a leste do Muro de Berlim: “Ela testemunhou o colapso da ideologia e crentes a tornarem-se opositores de um dia para o outro”. Assim, segundo Jeremy Cliffe, o repórter da The Economist em Berlim, as suas decisões mais importantes nos últimos 12 anos tiveram por base a ética, não uma cartilha; Fukushima rebentou? Então vamos encerrar as nossas fábricas nucleares. A Grécia está a dever-nos dinheiro? Têm de pagar, mas de forma a que não saiam do euro. Casamento gay? Que se faça a votação, mesmo sendo contra e sabendo que vou perder. Refugiados a caminho? Melhor deixá-los entrar. E a sua fé luterana no âmago de tudo isto, “uma bússola interior”, como chegou a definir.

Angela Merkel em campanha

Thomas Lohnes/Getty Images

As respostas nunca estão num programa, mas são dadas no momento. Não através de um instinto tresloucado, estilo Trump, mas com a descontração de quem não tem de obedecer a um projeto e pode pensar por si própria. “Merkel não tem preconceitos. É cientista e, como tal, prefere ler, investigar e agir de acordo com as reações ao problema. Sempre com tranquilidade. Mesmo nos momentos de maior tensão, ela comporta-se como se estivesse à secretária a responder calmamente a e-mails”, diz Johannes Hillje, consultor político de Berlim. “E é este o sentimento que ela quer transmitir aos alemães: sigam o meu carácter e não procurem em mim uma doutrina, não vão atrás de promessas inconsequentes, escolham a estabilidade, o pragmatismo e o compromisso.”

Num mundo dominado por homens, Merkel rejeita apertos de mão e acordos de cavalheiros. “Nunca faz promessas e abomina os pactos de camaradagem normalmente celebrados entre homens”, diz Wulf Schmiese. “Isso leva a que muitos políticos se comportem da maneira que ela pretende, de forma a conseguirem obter o que desejam. Mas, muitas vezes, ela não o concede. Acusam-na então de não ser confiável, mas a verdade é que nunca lhes prometeu nada.”

“O maior segredo de Merkel foi ter sido sempre subestimada”
Wulf Schmiese, editor da ZDF

Um dos maiores méritos da Chanceler é não ter cedido às pressões de género; apesar dos comentários misóginos sobre a sua falta de sensualidade, nunca pretendeu ter uma imagem mais próxima daquela que a sociedade tem por feminina, nem adotou uma atitude mais dura para a verem como uma líder alfa. Twitter, selfies e instagram não fazem parte do seu vocabulário. No fim do dia, regressa ao seu modesto apartamento em Berlim, ouve Wagner e cozinha sopa de tomate. Nos tempos livres, gosta de plantar batatas. Merkel é ínsipida, demasiado densa para um só clique, a anti-heroina do novo mundo. Sobre ela, muito se escreve e pouco se lê. Nada se sabe. Enquanto Putin é filmado nas férias a montar a cavalo em tronco nu, e Trump surge no Twitter na sua penthouse de Miami, Merkel prefere o recato dos Alpes onde faz caminhadas em fato de treino.

O verão quente de 2015

Era precisamente aí que estava no verão de 2015, a data que a geopolítica escolheu para lhe colocar o maior desafio enquanto governante. Há já alguns meses que milhares de refugiados até então bloqueados na Turquia vinham a entrar na Europa, depois de uma arriscada viagem de barco até às ilhas gregas, caminhando depois rumo a norte através da Rota dos Balcãs. Até agosto, Merkel não parecia muito interessada no assunto: tinha sempre rejeitado visitar os campos de refugiados e num programa de televisão chocara o país com a falta de empatia com que tratara uma menor palestiniana que, à sua frente, chorava para não ser deportada.

Mas, depois, deu-se um furacão de acontecimentos: polícia a espancar refugiados na fronteira húngara, acidente mortal numa autoestrada austríaca, nacionalistas a receberem os árabes com cocktails-molotov em Dresden. Merkel interrompeu as férias e deslocou-se a Dresden no meio de um motim de ultranacionalistas. Foi recebida com ódio, o que lhe feriu a sensibilidade enquanto originária de um país cercado por um muro intransponível. Ao mesmo tempo, viu em Munique uma multidão de alemães a receberem as colunas de refugiados com sacos de alimentos e ursinhos de peluche: Welcome Refugees.

Tinha tido sempre má imprensa, vinha de um período em que no sul da Europa a tinham comparado a Hitler e agora a analogia era com Madre Teresa de Calcutá – a Chanceler dos refugiados.

A Chanceler olhou para as cartas e analisou o jogo: a abertura de portas jogava com as suas vertentes sociais e éticas e, além disso, a opinião pública de esquerda, a quem sempre piscou o olhou, parecia favorável à decisão. Telefonou a Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro, e disse-lhe para os deixar passar. Pela primeira vez na sua carreira, reagiu completamente por instinto, viu uma onda crescer e saltou para cima dela. “Mas Merkel, como a maioria de nós, não entendeu que os alemães na estação de Munique estavam meramente a reagir a um acontecimento e não por empatia. E há uma grande diferença, porque quando há empatia não se está à espera de algo em troca”, analisa Schmiese. “Não foi o que aconteceu. Aquelas pessoas estavam ali para mostrar que os alemães têm bom coração. Mas quando viram que os refugiados não se integravam imediatamente, que criticavam o país, que um deles até violou alguém, então ficaram desiludidos e viraram-lhes as costas. A eles e a Merkel”. Mas a Chanceler não mudou de caminho. A decisão, inicialmente pensada para quatro ou cinco dias, prolongou-se até à entrada de mais de 1 milhão de refugiados na Alemanha. O mundo aplaudia. Pela primeira vez, ela era uma figura popular e querida. Tinha tido sempre má imprensa, vinha de um período em que no sul da Europa a tinham comparado a Hitler e agora a analogia era com Madre Teresa de Calcutá – a Chanceler dos refugiados. “E ela gostou muito de ser tratada assim”, diz o especialista político da ZDF.

Só depois das notícias, que hoje se sabe terem sido empoladas, dos ataques sexuais na noite de Ano Novo em Colónia, na entrada de 2016, é que Merkel travou a entrada de requerentes de asilo: celebrou um acordo com o presidente turco Recep Erdogan para travar o fluxo migratório em troca de milhões e de facilidades na obtenção de vistos para turcos, ao mesmo tempo que reativou a Convenção de Dublin, de modo a segurar os refugiados nos países de entrada na Europa, deixando a Itália numa posição difícil. “É atualmente a Chanceler com as políticas mais anti-refugiados da história do país”, diz Schmiese. “Mas conseguiu manter a reputação de caridosa e solidária. Nesse aspeto, foi um grande xeque-mate político.”

Travar os nacionalistas

Porém, o xadrez político é jogado em vários tabuleiros. Internamente, Merkel sabia que um volkspartei (partido do povo, alargado) como a CDU tinha de cobrir as suas três frentes: a social, assente em valores cristãos, a liberal, do mercado aberto, e a conservadora, onde cabem os valores patrióticos. Os seus antecessores, de Adenauer a Kohl, apesar de serem social-democratas no seu âmago, tinham sempre conseguido manter debaixo do manto do partido os nacionalistas, fazendo-lhes concessões, expressando solidariedade para com os veteranos de guerra ou usando expressões como “pátria” ou “valores alemães”. “Mas Merkel nunca lhes deu uma gota de água”, diz Schmiese. “Sempre os viu como ultrapassados, perdidos e insignificantes”.

Quando explodiu a crise do euro e um grupo de professores e economistas do partido lhe pediu para discutir um futuro sem moeda única, ela respondeu: “Não há alternativa ao euro”. Esses dissidentes da CDU criaram o AfD. Mais tarde, foram eles próprios afastados pelos nacionalistas, que promoveram o combate a uma pretensa islamização da Alemanha a obsessão. “Ao desprezar a necessidade de integrar estes extremistas nos ideais conservadores da CDU, Merkel criou um vácuo em que a extrema-direita conseguiu penetrar e prosperar”, opina Schmiese. São eles que hoje a assobiam e apupam em todos os comícios em que ela discursa e que aparecem nas sondagens como possibilidade para liderar a oposição.

O momento estranho em que o cartaz encrava entre os nacionalistas do AfD e a CDU

Sean Gallup/Getty Images

Estes factos podem, em última instância, ter lançado as sementes para o fim do regime bipartidário, sólido e consensual que orientou a Alemanha desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O outro volkspartei, o SPD, já o tinha deixado de ser quando rejeitou assimilar o partido de esquerda da Alemanha de Leste, abrindo caminho para o aparecimento da extrema-esquerda. Agora Merkel abriu espaço para o ressurgimento da retórica racista.

Esta fratura baralhou opiniões e intenções de voto. Merkel conquistou a confiança de esquerdistas que jamais tinham votado na CDU e perdeu o apoio de eleitores que nunca tinham saído do regaço conservador. As suas vozes foram audíveis durante a campanha. “Nos últimos 12 anos, frequentei gratuitamente a universidade, arranjei emprego imediatamente, sou bem pago, vi o nuclear acabar, a implementação do salário mínimo e o meu país a dar uma excelente imagem no acolhimento de refugiados. Sou de esquerda, mas o que posso pedir mais a Merkel? Ela não obedece a ideologias e eu sinto que não devo fazer o mesmo. Desta vez, vou votar nela”, diz Gunnar, um engenheiro civil de Hamburgo, de 30 anos. Na barricada oposta, Ingo, camionista aposentado, de Hassloch: “Ela conseguiu destruir a Alemanha ao deixar entrar tantos refugiados. O dinheiro é todo investido nisso enquanto nós empobrecemos, temos menos apoios e menos empregos bem remunerados. A CDU deixou de ter moral para governar o país”.

Pleno emprego em 2025?

Internamente, a integração simultânea dos refugiados na sociedade e da extrema-direita na retórica moderada vai ser um dos seus maiores desafios, naquele que é anunciado como o seu último mandato de quatro anos enquanto chanceler. Mas não o único. Após formar coligação – com o SPD, com os Verdes, com os liberais do FDP, ou com os dois últimos – Merkel vai ter de responder a um crescente apelo para se desprender da fixação com o equilíbrio das contas e investir parte do brutal excedente financeiro de 26 mil milhões de euros no sistema social e em infraestruturas.

Com ela, a Alemanha deixou de ser o “homem doente da Europa” e tornou-se num portento económico: os ordenados médios aumentaram, as exportações dispararam e o desemprego baixou de 11,2% para 4%, com expectativas de empregabilidade total até 2025. No entanto, o fosso entre ricos e pobres agravou-se, os 40% dos alemães com salários mais baixos ganham menos em termos relativos do que há 20 anos, há mais gente a depender do banco alimentar, o investimento está em queda desde 2012 com algumas queixas de espera nos hospitais, de falta de escolas e de estradas por reparar.

Sean Gallup/Getty Images

Posto isto, a The Economist acusa Merkel de não ter feito o suficiente para preparar a Alemanha, que é um dos países mais envelhecidos do mundo, para o futuro. E no epicentro da questão está a indústria automóvel, coluna vertebral da economia, debilitada pelos escândalos nas emissões fraudulentas dos motores a diesel. Ciente da importância do setor, Merkel multiplicou os esforços para evitar punições rígidas para as marcas, pondo em evidência as estreitas ligações entre o Estado e os representantes máximos da indústria. No entanto, mesmo que consiga proteger de danos maiores a VW, a Mercedes ou a BMW, logótipos de excelência do Made in Germany, a Chanceler vai ter de incentivá-las a acelerarem esforços no desenvolvimento de modelos elétricos que, a par da internet das coisas, são campos em que o país se viu ultrapassado.

“A China já tem o monopólio das baterias elétricas e a Tesla nos EUA está anos à frente no fabrico de modelos competitivos”, analisa Frederic Speidel, investigador do IG Metall, maior sindicato da indústria automóvel. “Os próximos 10 anos são decisivos para a Alemanha apanhar o comboio e se posicionar na linha da frente dos carros de nova geração. Se falhar, é o fim.”

A estabilidade da economia alemã funciona como um químico que impede o crescimento de uma fricção social cujas sementes já foram disseminadas pelo país: “Não quero imaginar como seria este país com 20% de desempregados”, afirma Schmiese.

Sim a Macron, distância de Trump

Além-fronteiras, é de esperar que Merkel continue a ser um pêndulo na mediação de conflitos internacionais e nos diálogos com vista à implementação de medidas para travar as alterações climáticas. Foi desde o início uma área em que se sentiu bem: com o seu domínio exemplar do russo e do inglês, prontamente conseguiu que machos como Putin, Bush ou Trump não a vissem como uma dona de casa mas como uma mulher inteligente. Na Europa, encontrou em Macron o parceiro francês para uma Europa que conduzia sozinha há quase uma década, apoiando-o na tentativa de implementar um ministro das Finanças comunitário e de outras reformas. Ao mesmo tempo, vai ter de conviver com o ódio destilado de leste, onde os líderes da Hungria, da Polónia e da República Checa a têm como alvo preferencial.

De complexa resolução é também o conflito diplomático com a Turquia, onde Erdogan ordenou mesmo a detenção de cidadãos alemães sob suspeita de cooperação num golpe de estado, sem que Merkel mostrasse empenho suficiente na sua libertação. Com a aceitação do compromisso de gastar 2% do PIB com a NATO, condição do executivo Trump, Merkel afirmou a sua disponibilidade para fazer da Alemanha um tampão a qualquer ímpeto expansionista de Putin, ao mesmo tempo que continua a defender as sanções aplicadas no seguimento da anexação da Crimeia.

Angela Merkel e Donald Trump na Cimeira do G7 na Sicília @Miguel Medina/AFP/Getty Images

Demasiado dependente dos EUA em termos de defesa, com bases militares americanas implementadas no país desde 1945, a Chanceler evita excessivas críticas a Donald Trump, mas não esconde uma absoluta oposição em relação às suas políticas e à sua conduta. Merkel e Trump são azeite e água, e isso vai notar-se sempre que for preciso juntarem-se.

Há muito que o Ocidente pede à chefe do governo alemão para receber a bandeira do mundo livre, para que a transporte e a agite. Para que guie os discípulos da democracia. Mas Merkel nunca o fez. Nem ela tem perfil para tal, nem a história recente deixa que a Alemanha assuma as rédeas do mundo. Merkel não é – nem será – uma mulher que suscita paixões. Nunca terá atrás dela hordas de seguidores com bandeiras alemãs e europeias a cuspir palavras de glória e de raiva. Ela existe para gerir, não para empolgar.

Mas pode não ter outra escolha. Com populistas a tomar de assalto o poder, guerras a rosnar, notícias falsas a sequestrar os média e a política de Facebook, basta-lhe permanecer calada e imóvel para desempenhar esse papel. Ela representa os que querem ficar no mesmo sítio. A revolução da normalidade. Há quem não acredite e continue a subestimar a Frau Alemanha. Ela não se importa. Até prefere assim.

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