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Balsemão, um príncipe do jornalismo. E da política

Francisco Pinto Balsemão lançou esta quinta-feira o livro "Memórias" e este é o seu retrato feito por Maria João Avillez. "Fartei-me de trabalhar, caramba!", disse-lhe ele um dia.

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[Este texto foi publicado originalmente a 6 de março de 2016 e é agora republicado no dia em que Francisco Pinto Balsemão lança as suas memórias.]

A rua Duque de Palmela

Hoje já não sorrimos assim. Mas nesta primavera de 1981, Francisco Balsemão sorria para a jornalista do Expresso, que acabava de receber um prémio internacional, devido a uma reportagem publicada nas suas páginas. E eu olhava para o fundador do jornal e na altura primeiro-ministro, como se aquilo que me ocorria fosse uma coisa a meias. E de certo modo era. O Expresso, ele, eu, alguns colegas mais, tínhamos sido, por esses tempos, uma espécie de entidade quase indesligável, tanto oficiáramos em conjunto: a revolução, os militares, o Conselho da Revolução, Soares, Sá Carneiro, Cunhal, os partidos, o PREC, os quartéis… Essa vida que vivemos entre dois mundos, duas realidades, balançando entre o possível e o impossível.

Toda a grande imprensa internacional rumava ao Expresso. A rua Duque de Palmela era um porto de abrigo para os incrédulos diretores dos media que vinham do estrangeiro e a quem Francisco Balsemão tentava explicar essa quadratura do círculo que era um país ocidental (e da NATO) onde eleições ordeiras com resultados que exprimiam uma saúde democrática, coexistiam, em excesso e desconcerto, com um demencial processo revolucionário.

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Francisco Pinto Balsemão com Maria João Avillez, quando a jornalista recebeu um prémio internacional de reportagem

Sim, toda a imprensa estrangeira ali rumava e aportava. Dos diretores do Le Monde, L’Express e Le Nouvel Observateur, aos gigantes norte-americanos, aos nossos vizinhos espanhóis, aos alemães, ingleses, italianos. (Como foi, por exemplo, o caso de Oriana, não a fada mas a Fallaci, que lá foi expressamente contar ao dr. Balsemão que Cunhal, dez minutos antes, acabara de lhe dizer que nunca haveria em Portugal uma democracia burguesa). Sim, e essa grande plateia internacional da comunicação pasmava ao ouvir aquele diretor suis generis, doublé de proprietário, doublé de político… Ao mesmo tempo que abria a boca de espanto face ao que fora daquele edifício de esquina, com vista para o Marquês de Pombal, ia ocorrendo país fora: golpes, inventonas, prisões, a ocupação do vespertino “A República”, o assalto à Rádio Renascença, o assalto à embaixada de Espanha, greves diárias, um Parlamento sequestrado, a quase asfixia de Lisboa.

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Enquanto isto, no Expresso, nós ouvíamos, reportávamos, contávamos, entrevistávamos, 24 horas non stop. De tal forma que um dia até foi preciso inventar o Expresso Extra que existiu no fogo de 1974/5 e “saía” às quartas-feiras! Uma invenção do dr. Balsemão para escoar a prodigamente vertiginosa informação que a Rua Duque de Palmela atraía como ninguém no país, mas que não durava até ao sábado seguinte!

Mas agora, ao tempo da foto que abre esta história, a política levara-me um excelente diretor que no dia em que ela foi tirada era um primeiro-ministro feliz.

Expresso, que não era “o Scala de Milão”

Aprendi muito com ele. Respirava informação, possuía um agudo sentido da notícia, sabia construí-la, tinha a boa perceção dos tempos e dos ritmos da entrevista, uma curiosidade imparável, cheirava bem o ar, aspirava bem o tempo. Tinha faro, intuição, talento. Tinha paixão. Sempre ofegante, apressado, desorganizado, impontual — nunca o conheci de outra maneira — era por vezes leve, por vezes ligeiro. Mas era um jornalista dos pés à cabeça que adorava o que fazia e foi por isso um ótimo diretor do Expresso.

E era hábil. Ao conviver tão placidamente numa espécie de tácita “aliança” entre um assanhado MRPP maioritário na redação e o então PPD, que ele fundara com Francisco Sá Carneiro em maio de 1974, tinha o Expresso pouco mais de um ano. Os comunistas do PCP eram os odiados “revisionistas”, o PS um partido “fascista”, o PSD não tinha direito de cidade, vomitava-se o CDS. Mas no número 37 da nossa rua, o casamento de conveniência entre o maoismo militante e os patrões do PPD vigorou com felicidade: espantando o mundo produzia-se o melhor jornal desse tempo (e do seguinte).

Uma edição do Expresso de Agosto de 1975

Picasa

Mas o patrão, sem nunca perder as boas maneiras, às vezes zangava-se. Era ouvi-lo, clamando penosamente pelos corredores que “aquilo não era o Scala de Milão”, quando de manhã deparava com salas semivazias e à tarde com estados de alma variados — como porventura ele supusesse que sopranos e tenores permanentemente praticassem… O certo é que tais estados de alma — reais, muitas vezes e permanentes, quase sempre — atrasavam a saída, programada ao longo da semana, das diversas prosas rumo à gráfica Mirandela, que era onde, nesses tempos de glória, se imprimia o jornal. À sexta-feira à noite alguns de nós esperavam no restaurante Pabe, na porta ao lado do Expresso, ou ali perto, em mais modestas moradas, que o jornal se materializasse, como um pão que cozesse no forno e era sempre assim: uma ânsia reeditada, edição, após edição.

“Aqui escreve-se sempre dos dois lados do papel de máquina…”

Não sou da fundação do Expresso, entrei no primeiro dia de setembro de 1974. Entrei, é como quem diz: “Vens fazer o mês de setembro, o mapa de férias foi mal organizado mas depois não te encostas à nossa amizade, não preciso de mais gente”, disse-me o diretor com moderado entusiasmo.

Revista de carros, Lisboa, 28 de Setembro de 1974

Carros a serem revistados em Lisboa no 28 de Setembro de 1974. O seu trabalho no dia da “maioria silenciosa” permitiria a Maria João Avillez continuar a trabalhar no Expresso

Não me encostei, o 28 de setembro é que se encostou a mim. A fatídica data desabou-me sobre a cabeça como um bem vindo prémio e devo ser das raras pessoas no país a ousar tal desabafo. Mas a verdade é que a minha conquista do Expresso se fez à conta das aventuras vividas naquela indecente, armadilhada, longa noite: o dr. Balsemão gostou do que fiz, reconsiderou e incluiu, coitado, mais um (parco) ordenado na sua “pesada” (dizia ele) folha de pagamentos.

“Aqui escreve-se sempre dos dois lados do papel de máquina…”, disse-me um dia, logo no início, no seu amplo gabinete, enquanto me “ditava” uma notícia com o objetivo de testar os meus (sofríveis) conhecimentos na matéria. “É para poupar”. O efeito era horrível, mas que importância tinha? Poupava-se.

Com o país a arder, mandava-me a todo lado: que reportasse o que visse e ouvisse! Dos quartéis que eu frequentava como se fossem pastelarias, às noitadas no Restelo, no prédio alto onde então habitava o Conselho da Revolução; do COPCON, aos comandos militares do país; dos Passos Perdidos da Assembleia da República às sedes dos partidos políticos onde entrevistava, um após outro, Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Mário Soares, Álvaro Cunhal. Ou Zenha, ou Almeida Santos, ou Amaro da Costa, ou Gama e… toda essa gente pronta a construir o edifício da democracia civilista e pluripartidária que tão a custo se tentava erguer.

Quando Balsemão teve de suceder a Sá Carneiro

Depois veio a segunda história: o voto democrático venceu a rua revolucionária, Mário Soares ganhou as primeiras eleições de abril de 1975, haveria um Parlamento, iria haver uma Constituição. No ano seguinte, 1976, nasceria o primeiro governo constitucional. Socialista e presidido pelo mesmo Soares.

Em 1979, Francisco Sá Carneiro escreveria a terceira história. Contra ventos e marés, o líder da primeira Aliança Democrática ganhou, governou, voltou a ganhar. Mas, no momento da foto a que aludi acima, Francisco Sá Carneiro havia morrido e só há pouco tempo é que Francisco Balsemão voltara a sorrir assim: não lhe fora fácil convencer o seu partido de que seria ele o autor do resto da terceira história. A bênção de que necessitava como “sucessor natural” não fora nem rápida, nem unânime.

Mesmo apesar de Eanes ter feito saber ainda antes da sua reeleição para a Presidência da República que o “sucessor” era Balsemão; ou mesmo apesar de os (então) poderosos Alberto João Jardim, líder do Governo Regional da Madeira, e Mota Amaral, presidente do Executivo dos Açores, lhe terem de imediato manifestado o seu apoio, amparados nas principais estruturas do PSD (Trabalhadores Social Democratas, JSD, etc.), o céu da AD estava coberto de nuvens. E de obstáculos: as veleidades do próprio Freitas do Amaral, líder do CDS que o grupo de ex-ministros do PSD, “fidelíssimos” a Sá Carneiro e coligado com a oligarquia centrista, preferiria ver na chefia do futuro governo; ou o influente Eurico de Melo que defendia — e não escondia — para o cargo o ex-titular das Finanças, Aníbal Cavaco Silva, opondo-se assim a qualquer outro nome; havia ainda as “condições” — nunca totalmente esclarecidas — do também ex-ministro Cardoso e Cunha, como moeda de troca do apoio de grupo mais alargado que ele, Cardoso e Cunha, garantia representar.

Balsemão suava.

Um dia, estavam essas intricadas negociações em curso, lembro-me de ter podido avistar-me com ele por breves momentos. Deparei com um político constrangido: as coisas pareciam fugir-lhe da mão, o ar pesava, ocorreu-me que estivesse sitiado pela intriga. Não entrou, longe disso, em confidências, mas fez perguntas: “Que sabes ‘disto’? Que tens ouvido? Com quem tens falado?”.

5 fotos

Depois tudo se encaixou (ou tudo pareceu encaixar-se): nos últimos dias de 1980, um Conselho Nacional ratificava a candidatura do numero 1 do PSD com duas ou três abstenções apenas. A 8 de janeiro de 1981, o VII Governo Constitucional liderado por Francisco Pinto Balsemão toma posse na Ajuda, das mãos do seu futuro inimigo, o Presidente da República, general Ramalho Eanes: era o princípio do fim da AD sonhada e concretizada por Francisco Sá Carneiro mas isso ainda não sabíamos. Desconfiávamos, apenas.

Horas antes, Francisco Balsemão, que passara a chamar-se “Pinto Balsemão”, dera-me uma curta entrevista. Ao Expresso, parecera impossível não “editar” aquele corredor antes da sua mais importante corrida. Voei veloz para a Gomes Teixeira: “Só tenho dez minutos” e “aquilo, não era uma entrevista!”, avisara o ex-jornalista… já vestido de chefe do Governo. Vendo-me tomar notas, não resistiu a si mesmo e perdeu tempo a indicar-me onde pôr virgulas ou fazer parágrafos…

A verdade é que ele tentara desenvencilhar-se de quase todos os ex-governantes do PSD – que melhor que ninguém sabia que conspiravam contra si – começando por “auscultar” gente fora desse círculo. Como João Salgueiro (desafiado para assumir as Finanças) ou Henrique Granadeiro (convidado para a Agricultura e Pescas). 

Mas foi uma entrevista, claro: “Sim, o seu governo fora feito em completa harmonia com Freitas do Amaral e Ribeiro Telles”; “Sim, houvera alguns ’acidentes de percurso’ , normais na formação de qualquer governo” ; “Não, não houvera qualquer tipo de pressão vinda de antigos ministros de Sá Carneiro”; “Sim, fora um processo lento e cauteloso norteado pela preocupação de encontrar pessoas competentes na AD e não pela mera distribuição de pastas pelos partidos!”.

A verdade é que ele tentara desenvencilhar-se de quase todos os ex-governantes do PSD – que melhor que ninguém sabia que conspiravam contra si – começando por “auscultar” gente fora desse círculo. Como João Salgueiro (desafiado para assumir as Finanças) ou Henrique Granadeiro (convidado para a Agricultura e Pescas). Sendo a política a arte do possível, um contrafeito futuro primeiro-ministro herdou afinal parte desse lote de que Cardoso e Cunha ou Álvaro Barreto podem ser exemplos. Na contabilidade final havia dez ministérios para o PSD e cinco para o CDS, entre os quais as Finanças e a Defesa.

E o Palácio das Necessidades fora entregue a um independente, André Goncalves Pereira. (Relembremo-lo porque vale a pena, que tal desafio não surgira pela primeira vez na vida do professor e célebre advogado lisboeta: Marcelo Caetano, após a saída de Franco Nogueira do seu Governo, convidara Gonçalves Pereira, tinha ele então 32 anos, para esta mesmíssima pasta. Anos depois, Sá Carneiro sondara-o para outras duas.)

Se não foi só por amizade que desta feita, em janeiro de 1981, André Gonçalves Pereira aceitou o repto de “um amigo íntimo”, a verdade é que a amizade não pode ter deixado de pesar e muito. (A curiosidade faria o resto.)

Completado o governo, a posse ocorreu a 9 de janeiro de 1981. Mas o chefe do Governo tomara boa nota de cada amargura sofrida. Uma talvez insuspeita “capacidade de fogo” e o seu ancestral e renitente “nunca esquecer” fazem, por exemplo, com que ainda hoje haja pessoas “vetadas” nos circuitos que comanda: no mundo professional, ou no seu círculo pessoal.

Fosse como fosse, nesse longínquo janeiro de 1981, Pinto Balsemão podia continuar a escrever a terceira história. E voltar a sorrir.

Sim, houve um cerco, dentro e fora do Governo. Abrilhantado pela soma de duras críticas públicas atiradas com frequência e estridência e remetidas por uma dupla de peso (Cavaco Silva e Eurico de Melo); o CDS revelou-se mais padrasto que parceiro; e a estrada governamental viria ser a muitas vezes dinamitada pelas humilhações do Presidente Eanes.

Um governo cercado

A História terá certamente melhor justeza e maior competência que eu para avaliar a substância de uma ação executiva algo sobressaltada e cujo leme Francisco Balsemão abandonou, como dizer?, irrazoavelmente em 1983, após não ter ganho umas eleições autárquicas.

A sua liderança foi o que pôde ser, numa governação que, além de sempre cercada, lutava diariamente para lograr a delicada transição para uma democracia plena, enquanto nunca descurava a frente europeia.

Sim, houve um cerco, dentro e fora do Governo. Abrilhantado pela soma de duras críticas públicas atiradas com frequência e estridência e remetidas por uma dupla de peso (Cavaco Silva e Eurico de Melo), acusando o então chefe do Governo de ”incapacidade de liderança do governo, da AD, do próprio PSD”; o CDS revelou-se mais padrasto que parceiro; a estrada governamental viria ser a muitas vezes dinamitada pelas humilhações do Presidente Eanes, que a partir de certa altura passou a receber em audiência o seu primeiro-ministro de gravador ligado, porque “desconfiava” dele.

E, last but not least, a tutela militar que ainda existia (e uma comunicação social pouco meiga) fechavam o cerco.

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Uma relação sempre tensa com o Presidente Ramalho Eanes

Não consta igualmente que a “sociedade civil” tenha reagido com a vivacidade esperada à chamada do então chefe do Governo. Fora uma expressão que o país de abril ouviria pela primeira vez e a cuja “libertação” Balsemão apelou — e bem, era um liberal — na sua tomada de posse. Posteriormente, fê-lo em diversas outras ocasiões. Estava a ser fiel à sua matriz de sempre e, como tal, ambicionara retirar o país das garras do Estado, almejara outra conceção da sociedade, sonhara com um Portugal mais amadurecido na sua capacidade de resposta. Muitos anos depois, ainda confessava alguma “desilusão” face à sua inicial expetativa sobre o resultado dos seus apelos a uma sociedade civil mais interventiva… (e provavelmente também mais forte).

Havia também quem estranhasse que a experiência acumulada como ministro de Estado e número dois de Sá Carneiro, o gosto pela política, o jeito para “diálogo”, uma genuína e permanente procura de consensos, a propensão natural para o compromisso, as boas maneiras, não tivessem logrado um voo mais largo do governo; ou que o talento, a energia, a intuição, a capacidade de trabalho do jornalista/empresário, tivessem tido eco mais pálido no político.

Perguntar-se-á: o saldo deveria ter sido maior?

E quando se começar a desenrolar o anel de adversidades que rodeou estas duas governações da Aliança Democrática e as circunstâncias em que elas ocorreram, concluir-se-á que se colheram mais nozes que vozes, ou será o contrário?

Pesará, por exemplo, mais o êxito da revisão constitucional e uma boa velocidade a caminho da Europa ou o agravamento do estado de saúde das Finanças que viria a desaguar, meses depois, na segunda vinda do FMI a Portugal?

Entre os olhares apressados de ontem e o rigor que pautará amanhã o veredicto da História, o “hoje” ainda não é claro.

Político ou… jornalista?

Seja como for, o que me interessa, o que para mim corresponde ao cerne da questão, é tentar definir a natureza do personagem, ainda hoje envolta pelo véu da dúvida que divide as plateias: Pinto Balsemão politico ou… Francisco Balsemão jornalista? Devemos distinguir entre cada uma das duas faces desta moeda? Louvando mais a “coroa” onde está impresso o patrão da media, do que a “cara” que contém inscrita o governante? Apreciando melhor o motor da ambição do homem da imprensa, do que o engenho ou as façanhas do político?

Eis uma boa questão.

O sucessfull jornalista, o poderoso empresário, o persistente homem de negócios, o gentleman civilizado e cosmopolita que o país conhece substituíram o político, consolando-o assim da nostalgia pelo que podia ter sido e não foi? Ou a vocação jornalística levou sempre a melhor sobre a política porque era essa a idiossincrasia de Balsemão? Essa a sua vontade vocacional mais antiga?

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Balsemão na redação do Expresso com Marcelo Rebelo de Sousa e Augusto de Carvalho (foto Expresso)

Julgo que era. Jornalista dos pés à cabeça, repito. Tinha em comum com Jean Jacques Servan Schreiber o terem querido ambos fazer um jornal liberal em França como em Portugal, onde não havia liberais, e fizeram-no, um e outro. Mas, ao contrário de Servan Schreiber, que fundou o L’Express para com ele ir abrindo os caminhos da política que contava vir a pisar (e não pisou), Balsemão inventou o Expresso muito por paixão pelo jornalismo — e, por vezes, parecia que ela lhe bastaria — apesar da política, que já experimentara anos antes, o vir a levar mais tarde ao topo do Estado.

Voltando ao jornalista, julgo que se o país sempre o encaixou com naturalidade e verosimilhança nessa sua vocação, olhando-o prioritariamente como um grande patrão da imprensa, terei que lembrar que o mesmo não terá ocorrido com o olhar de Francisco Sá Carneiro e importa aqui sublinhá-lo: quando ambos integram a Ala Liberal; quando os dois, sentados lado a lado na Assembleia Nacional redigem diversas propostas de lei a favor dos direitos fundamentais; quando discutem intervenções e iniciativas comuns; quando trocam desabafos desalentados sobre o regime de Caetano; quando concertadamente decidem abandonar o hemiciclo de S. Bento, é evidentemente com o político que Sá Carneiro “está”. O jornalista tinha nome, tarimba, era talentoso, mas ele, Sá Carneiro, sabia que iria precisar de políticos. E foi com um político que na pessoa de Francisco Balsemão ele contou para a aventura de um futuro político comum.

Voltando a Balsemão: política ou jornalismo? Um dia, respondeu-me assim: “A minha carreira profissional foi sempre muito mais jornalística que política”. Foi no início dos anos 90 do século passado e fiquei elucidada.

Só uma única vez vi Francisco Sá Carneiro “triste” com o seu amigo: como é que o proprietário do Expresso consentia na “pouca vergonha” em que se encontrava naquela altura? Tudo “tinha limites”… Subentendido: trabalhar mediaticamente a política daquela forma enviesada mancharia de “indiferença” quem era suposto estar em posição de não consentir – nem apreciar – tal estado de coisas. Falava-me com um misto de espanto e pena. E tanto assim era que ele, Sá Carneiro, decidira patrocinar um novo jornal (avisando-me de resto que eu iria ser contactada para a empreitada e cheguei a sê-lo por um dos seus secretários de Estado com quem, apercebi-me depois, muito o então chefe do governo já discutira e detalhara tal projeto).

Em suma: para grandes males, grandes remédios.

Este extraordinário diálogo ocorreu em Viseu, num domingo de novembro, (dia 23, mais exatamente) de 1980, em plena campanha eleitoral para as presidenciais. A Aliança Democrática apoiava o general Soares Carneiro e Sá Carneiro, aos fins de semana, “descia” ao terreno da campanha eleitoral que eu cobria para o Expresso, justamente. Falávamos nessa noite numa sala do Hotel Grão Vasco e fiquei siderada: um novo jornal? Como, com quem, quando? Mas era verdade. Ou melhor, não fora o destino ter-se tão devastadoramente encarniçado contra Francisco Sá Carneiro, e teria porventura sido verdade.

Voltando a Balsemão: política ou jornalismo? Um dia, respondeu-me assim: “A minha carreira profissional foi sempre muito mais jornalística que política”.

Foi no início dos anos 90 do século passado e fiquei elucidada.

O gosto pela política externa

Abra-se, porém, agora um parêntesis pois entre a Duque de Palmela e o Palácio de S. Bento houve sempre algo que muito o interpelava, dura até hoje e pude testemunhar de perto: a política externa. E aí, não só sobrava talento como alguma coisa de parecido senão com vocação, pelo menos, com “convocação”. Os assuntos externos e os seus desafios e os seus complexos territórios; a diplomacia e os seus segredos; as nuances e subtilezas da sua condução, teriam tido aqui um protagonista à part entière. Foi certamente por saber isso que Francisco Sá Carneiro lhe entregou essa “pasta” no governo-sombra que constituiu, no final da década de 70, do século passado.

“São matérias que sempre me interessaram e julgo conhecer alguma coisa neste domínio”, disse-me um dia, numa entrevista. “É um desafio intelectual de que gosto e onde me sinto à vontade”. Não se sabe se Ramalho Eanes gostava tanto como ele mas sabe-se o essencial: o cerne da tensão e do conflito que veio a opor o então Presidente Eanes e o então primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão, radicavam justamente nas contrárias visões que ambos tinham sobre a condução de alguns dos nossos dossiês externos. Uma área onde quase tudo veio a opô-los e que azedou talvez irreversivelmente a relação institucional entre ambos.

(Valerá, aliás, a pena enunciar brevemente algumas dessas mesmas áreas, portadoras de conflito. É que pela sua variedade e natureza exibem à vista desarmada como tantas delas seriam “utilizadas como pretexto de conflito mais porventura do que real matéria de desacordo: invasão do Afeganistão; demissão e nomeação de embaixadores; “caso Pintasilgo”, Congresso das Comunidades; visitas a Portugal de Senghor, Karl Carstens e Jimmy Carter; visita de Eanes à Itália e à Noruega; caso dos pescadores aprisionados pela Frente Polisário).

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Acompanhado pela mulher

Francisco Balsemão guardou, porém, intactos um gosto, uma apetência e uma curiosidade que o têm levado, vida fora, a participar, intervir e muitas vezes liderar alguns dos mais prestigiados fóruns internacionais que se ocupam em pensar ou analisar estas matérias. Tem desde cedo lugar cativo nessas diversas instâncias europeias e norte-americanas, onde se sentam os grandes deste mundo que ele trata por tu. E onde é apreciado, respeitado e ouvido. Um senador com influência. Muitas das suas deslocações externas são, ainda hoje, continuamente motivadas pelos compromissos que o seu nome, fora de portas, o faz cumprir.

Dois marcos: a revisão constitucional de 1982 e as negociações com a CEE

Dez anos após a saga governativa, novo encontro diante de um microfone.

Eu pedira-lhe que olhasse para trás e se revisse como chefe do Governo. Lesto e leve como sempre, sem que nada nunca parecesse pesar-lhe, olhou de facto para trás, reviu-se no seu gabinete do primeiro-ministro, e com desarmante franqueza, gostou do que viu e de se ver: “A história faz-se com distância, leva tempo”.

E ei-lo, a recapitular-se: quando deixou o Governo “o país tinha indubitavelmente ultrapassado o point of no return na questão da CEE”; “só a partir de 1982, (com a “sua” revisão constitucional que pusera termo à vigência do Conselho da Revolução) é que Portugal se tornara uma democracia plena, de padrão ocidental”.

E, quanto a ele, “saíra quando quisera e não quando quiseram que ele saísse!”.

A diferença é que saíra de vez: exit política. Tudo acabaria ali (mas certamente não como ele teria gostado).

Tinha porém razão no que, extra muros ou inter muros, elegera a seu favor, como ex-libris do seu Governo: a caminhada da nossa integração europeia e a revisão constitucional. A partir de meados de 1982, e dada “a boa aceleração negocial” e o facto dos variados dossiês portugueses estarem em vias de serem fechados tecnicamente, ficou claro para o seu Governo que seria possível concluir o processo de adesão até ao início de 83. (O Presidente Mitterrand, numa visita a Portugal, efetuada por essa altura, chegou a aludir a “une Europe a onze”).

A revisão constitucional promovida em 1982 pelo Governo e acertada entre o PSD, o PS e o CDS era a chave que abria mais uma porta de acesso a uma democracia civilista e civilizada, de matriz ocidental. Uma vida “normal”, numa palavra. Reconhecê-lo hoje será talvez mais fácil do que tê-lo feito ontem.

A ideia — e a meta — agradavam naturalmente ao então primeiro-ministro Pinto Balsemão que percorria capital atrás de capital, avistando-se num corrupio com os Helmut Schmidt, Mitterrand e Giscard deste mundo… Até se tornar evidente — conforme de resto recordaria o próprio Balsemão em conferência produzida no inverno de 2014, no Ministério dos Negócios Estrangeiros — que as posições da Alemanha e França, desculpando-se com pretexto da Espanha não poder ser deixada de fora, foram permanentemente inviabilizando a pretensão portuguesa. Uma inconclusiva valsa dançada pela Alemanha e pela França, “culpando-se mutuamente” pelo adiamento do ensejo português. Apesar de a meta da adesão ter sido afinal só cortada em junho de 85, o que interessa é que quem governava o país “se dizia pronto”, quase dois anos antes.

O segundo facto foi uma revisão constitucional promovida em 1982 pelo Governo e acertada entre o PSD, o PS e o CDS. Era a chave que abria mais uma porta de acesso a uma democracia civilista e civilizada, de matriz ocidental. Uma vida “normal”, numa palavra. Reconhecê-lo hoje será talvez mais fácil do que tê-lo feito ontem. Mérito do maestro que soube pôr instrumentos e músicos em boa harmonia e grande mérito de Mário Soares: “Os debates vivos onde, como líder da oposição, critiquei e interpelei o então primeiro-ministro não nos impediu, em 1982, que nos tivéssemos posto de acordo na necessidade de uma revisão constitucional profunda. Essas negociações entre PS e PSD levaram a alterações na Constituição que tornaram Portugal numa democracia plenamente civilista e ocidental. Foi um período difícil de pressões e violentos ataques, vindos até do interior dos nossos partidos. Quero por isso prestar homenagem à sua (de Francisco Balsemão), determinação”. (Escrito de Soares em Fevereiro de 1991 no jornal Público.)

E no entanto… convém que a memória seja séria, para além de viva: é também verdade que essa harmonia que tornou possível a articulação política entre PSD, CDS, PS não terá sido exclusivamente provocada pela bondade da AD ou os dotes dos maestros Balsemão, Soares, Freitas do Amaral. Era já o ar do tempo, eram já as sementes da nova era política que se anunciava, era sobretudo já uma viva animosidade comum contra Eanes…

Tudo isto tinha um nome: chamou-se Bloco Central e nasceria politicamente meses depois. Mas isso, quem sabe, o primeiro-ministro Pinto Balsemão possivelmente ainda não lera nas estrelas.

O Estoril, o Diário Popular e a Ala Liberal”

Tudo destinava Francisco Manuel Castro Pereira Pinto Balsemão, nascido em Lisboa a 1 de setembro de 1937 a uma vida diferente: o berço, a família, o meio, as posses familiares. Filho único e tardio, foi criança protegida e adolescente mimado. Era o “Francisquinho”. Mais crescido, jogava ténis com o futuro Rei de Espanha (Juan Carlos), tinha dinheiro de bolso, guiava um carro desportivo, namorava suecas loiras, frequentava as boites do Estoril e de Cascais e sobressaltava as namoradas que não gostavam de indesejadas competições com estrangeiras do norte da Europa.

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No final de uma partida de ténis, no Estoril. Balsemão é o primeiro da direita, na fila da frente; o último à esquerda de entre os que estão de pé é Juan Carlos, futuro Rei de Espanha.

Depois, com rara mestria – ou deverias dizer com prodigiosa mestria? — libertou-se, conservando o que havia a conservar e dispensando o resto. E quando o diziam entretido com aqueles meios e andanças, iniciou – a sério — no Diário Popular, propriedade de um seu tio que tinha fortuna e comprara o jornal, uma carreira jornalística que de imediato o interpela tanto quanto o absorve. Dinamiza a redação, convoca novos colaboradores, tonifica o seu Suplemento Literário. Faz do jornal um fórum procurado por gente interessante onde se cruzam e discutem artistas, intelectuais, escritores, pintores: estava-se no final da década de 60 e o Bairro Alto animava-se com o “Popular”. As funções jornalísticas obrigam-no a um contacto “diário, estreito, desagradável, com a censura”. O que lhe abre os olhos e o “predispõe” a lutar pelas coisas.

Tinha 32 anos e decidira-se pela política, ocupando-se dela. A sério, uma vez mais. E a recém-formada Ala Liberal é a melhor ponte para esse mundo novo: um movimento político nascido em 1968 que pretendia uma moderada transição do regime autoritário para a democracia liberal praticada na Europa ocidental. Integrada por gente já algo politizada como José Pedro Pinto Leite, Miller Guerra, Mota Amaral, Sá Carneiro, Balsemão, entre outros, tinham todos em comum uma enorme vontade política de liberalizar o regime. Não era dizer pouco.

A Ala Liberal acabou mal (aos poucos a desilusão ia provocando o abandono dos deputados e a sua saída da Assembleia Nacional) mas deixou-lhe uma certeza: nada ficaria por ali. E uma lição: a política dava trabalho.

Consentida por Marcelo Caetano que via nela a melhor credibilização da sua “abertura” e uma boa moldura para a então chamada “primavera marcelista”, a Ala Liberal viria a concorrer às eleições de 1969, nas listas da União Nacional. Fora pois com entusiasmo e empenho que Francisco Balsemão se sentara no Parlamento, junto de gente que como ele escolhera lutar por duas ou três coisas que lhes eram caras. Não conhecia Francisco Sá Carneiro. Mas como tinham o mesmo nome, “o mesmo sentido de humor” e se sentavam lado a lado, nasceu uma cumplicidade que cedo desaguou em sólida amizade. As posições vigorosas que enquanto jornalista Balsemão assumira contra a censura no Diário Popular tornam-no notado no Parlamento e fora dele. Marcelo Caetano, de quem fora aluno no curso de Direito, apreciava-o. Tinham uma “boa relação”, conversavam, Balsemão manifestava-lhe “preocupações”, era amigo dos filhos, frequentava por vezes a Rua Rodrigues Lobo onde habitava o chefe do Governo. Em suma, era bem visto e bem-vindo na casa.

A Ala Liberal acabou mal (aos poucos a desilusão ia provocando o abandono dos deputados e a sua saída da Assembleia Nacional) mas deixou-lhe uma certeza: nada ficaria por ali. E uma lição: a política dava trabalho.

Tempos depois, um segundo revés: a venda, pelo seu tio, da maioria do capital do Diário Popular a um banco. “O Francisquinho pôs luto”, assim lembrava numa carta um dos mais inesquecíveis colaboradores do jornal e amigo fraterno de Francisco Balsemão, o (formidável) escritor Ruben A., participando também ele deste “desgosto”. Esse mesmíssimo Ruben A. que um ano depois iria inventar o nome de Partido Popular Democrático, para o novo partido fundado por Francisco Sá Carneiro, Francisco Balsemão e Joaquim Magalhães Mota.

Ao lado de Sá Carneiro, em 1974, nos primeiros tempos do PPD

A nova formação partidária nasceu a 6 de maio de 1974, chamava-se “PêPêDê”, era um partido que se queria reformista e de centro esquerda e marcou o país até hoje. Não só pelas fortes lideranças de Sá Carneiro e Cavaco — e a conquista de diversas maiorias absolutas — mas por ser feito de uma indefinível mistura entre todos os extratos da população do Portugal que havia “antes” de abril de 1974, e do “país” que veio a surgir depois. O que talvez seja afinal o seu segredo e simultaneamente o seu exclusivo: uma espécie de Benfica, e tão transversal como ele, na sociedade portuguesa.

Um liberal que tornou Portugal mais livre

Voltando ao nosso homem: o “luto” pela perda do Diário Popular não o submerge: reagindo à morte da Ala Liberal e à venda do vespertino, inventa o Expresso.

Rodeia-se de gente, reflete, escolhe, decide, reúne incansavelmente, manda gente para Inglaterra “aprender”. Causando impacto e estrondo no meio português de então, vai somando poder e ganhando influência. Duas décadas depois repete o gesto, produzindo uma estação de televisão, batizada SIC e não deixando nada como estava antes: nas mentalidades, na política, nos costumes, no país. E, bem entendido, no panorama audiovisual português.

Era de facto um liberal - num Portugal onde eles eram escassíssimos – que lutara pela imprensa livre, sonhara com a “libertação” da sociedade civil, fizera um jornal liberal e concretizara uma estação de televisão privada.

Era de facto um liberal — num Portugal onde eles eram escassíssimos – que lutara pela imprensa livre, sonhara com a “libertação” da sociedade civil, fizera um jornal liberal e concretizara uma estação de televisão privada. Assinando desta forma um feito raro ao produzir meios de comunicação que haveriam de marcar determinantemente duas gerações muito distintas, filhas de dois países radicalmente diferentes: o Portugal de 1973, acinzentado e sem velocidade, a meio caminho entre os restos da ditadura e a democracia com que titubiantemente sonhava; e a pátria desenvolta, aberta, cosmopolita e europeizada (e já endividada) da década de 90, do século passado.

Poucos se poderão em Portugal gabar do mesmo.

“Fartei-me de trabalhar, caramba!”

A concretização da SIC em 1992, para além de o ter levado a aprofundar os complexos segredos das novas tecnologias da informação e a aprimorar-se em caminhos nunca dantes navegados como era para si a televisão, foi sobretudo um ato de profissionalismo ao mais alto nível: muito tempo de maturação, boas equipas, saber, trabalho, critério, suor, meios, acerto na escolha dos sócios, visão na parceria com a RTL e a Globo. Mas se não se disser agora que uma das coisas que mais o caracteriza — e sobretudo o identifica – é o saber criar “espaços de liberdade” e que foi com essa “arte” que inventou o Expresso e com ela que três décadas depois fez a SIC, (como entretanto também já fizera quando presidiu ao Instituto Sá Carneiro) não se compreenderá tudo sobre este personagem. Importância fulcral da liberdade e (sempre!) rigor nas contas.

“A SIC não pode ser para perder dinheiro, tem de se iniciar modestamente… O Expresso começou em meio andar da Duque de Palmela, hoje ocupa quatro andares…”, disse-me uma vez, na véspera do nascimento da “sua” televisão.

A verdade é que a credibilidade do seu grupo empresarial é diretamente proporcional ao seu prestígio no país. E fora de portas – insisto — ainda mais.

O gosto pela vida, o espírito de festa, o sucesso, nunca lhe impediram que multiplicasse por mil o dom do trabalho. Nem a sua desorganizada gestão do tempo ou a sua impontualidade o tornaram infiel face aos compromissos assumidos e foram centenas e de natureza diversa.

Não sendo indiferente às honras deste mundo — tem recebido distinções e condecorações – pouco lhe subiu porém à cabeça: não se exibe, nunca foi pretensioso: confessou-me um dia numa entrevista que tinha “só um blaser e um único fato” (e um deles “já velho”, não me lembro qual). Não ostenta marcas, lida com simplicidade com o dinheiro. E, sobretudo, trabalha no duro. Uma vez, há muito tempo, era um escaldante dia de agosto, fui dar com ele, sob um sol avassalador, sentado a uma mesa debaixo de uma árvore, na casa que alugava na Quinta do Lago, no Algarve. Apesar de se encontrar de férias, trabalhava, desde cedo, afogado em papéis. Com gosto. O gosto pela vida, o espírito de festa, o sucesso, nunca lhe impediram que multiplicasse por mil o dom do trabalho. Nem a sua desorganizada gestão do tempo ou a sua impontualidade o tornaram infiel face aos compromissos assumidos e foram centenas e de natureza diversa. (Era raríssimo faltar a uma aula nas universidades onde leccionou durante anos mas, quando tal ocorria, apresentava-se aos alunos aos sábados de manhã, para substituir a ausência forçada).

“Fartei-me de trabalhar, caramba!”, ouvi-lhe eu, num jantar em casa de amigos comuns, no dia em que o Expresso celebrou os seus 35 anos. Fora convidado pelo jornal como guest star para inspirar e fazer essa edição de aniversário. Tinham sido cinco dias intensos de labor para produzir um “resultado” com a sua assinatura e inspirado por si.

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Mais uma responsabilidade: ser presidente do Conselho Geral da Plataforma de Meios Privados

Levara a semana na redação: inventando novas secções, entrevistando gente, apurando notícias, redigindo editoriais, ouvindo pessoas, fazendo perguntas, perdendo tempo ao telefone. Guardara afinal intacto o segredo da arquitetura do produto final.

Mas este cavalheiro que vivia com saudades das redações era, nessa noite, o mais feliz dos convivas e um jornalista felicíssimo.

O prestígio e a influência alimentaram rumores de ambições presidenciais. Belém passou-lhe pela cabeça. Não avançou preferindo apoiar Mário Soares, de quem sempre gostou e mais tarde — a contra gosto — Cavaco Silva, a quem nunca perdoou alguns gestos do passado (e de quem foi conselheiro de Estado.) Mas preferindo, isso sim, consagrar-se ao seu grupo de comunicação. E à vida, para a qual nunca teve o tempo que gostaria.

Tempos atrás, decorria o ano de 2014, ouvi Pedro Passos Coelho referir-me o “gosto” que teria numa candidatura presidencial de Francisco Balsemão. Em 2015 voltei a ouvir o mesmo ao então primeiro-ministro. Tinha razão. Teria sido — com Jaime Gama, e escrevi-o mais de uma vez – a mais sólida, séria e prestigiada “dupla” que a direita e a esquerda poderiam ter oferecido ao país, em janeiro de 2015.

Deus às vezes dorme.

Quanto ao mais, a vida segue. E o trabalho também, claro. Além disso, Francisco Balsemão continua a jogar golfe, a tocar bateria (às vezes piano), a dançar, a “divertir-se”. Viaja incansavelmente, mima os netos, aprende coisas, descobre outras, retém todas. É isso, a vida continua. E sobretudo, ele também.

O artigo original foi ligeiramente editado para reflectir alterações temporais e de contexto.

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