“Se virmos um rapaz com um vestido, dizemos: ‘é gay’. Pode ser, mas também pode ser uma rapariga, ou pode ser um rapaz heterossexual que gosta de vestir vestidos. Não sabemos. Mas a presunção é sempre: ‘é gay'”. Esta é a história de crianças convictas e de pais confusos. Estas são as histórias de Diane Ehrensaft — investigadora, psicóloga clínica e autora do livro “Gender Born Gender Made – Raising Non-Conforming Children”. Diane é uma das maiores especialistas mundiais em crianças transgénero e a experiência sente-se na tranquilidade com que responde a cada pergunta do Observador.
Algumas das histórias começam quando as crianças dão sinais de que não gostam do género e do pronome que lhes é atribuído. Mesmo que ainda não falem. Um dos pacientes de Diane tinha seis anos, usava calções e insistia em rasgá-los para que se parecessem com um vestido. Aos 14 meses, uma das meninas que chegou ao consultório puxava incessantemente os cabelos, arrancava-os e mandava-os para o chão, irritada. Anos mais tarde perceberam que a menina é um menino. Podia ser uma fase, mas era mais que isso.
Mas porque é que uma criança é transgénero?
O que Diane sabe é que não são as ecografias que ditam o género do bebé. É bem mais complexo do que isso. “O que nós (comunidade científica) sabemos é que há cada vez mais provas de que o género não é determinado pelos órgãos genitais, ou seja, pelo que está entre as pernas, mas sim pelo cérebro e pela mente, ou seja, pelo que está entre os ouvidos”. Na maioria das pessoas há uma concordância entre os dois. Em outras, essa ligação não faz sentido.
Transgénero é o termo comum, mas disforia de género é o termo técnico usado para definir a incompatibilidade entre o género com que nascemos e o género com que nos identificamos, que consta no DSM — Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, o manual da Sociedade Americana de Psiquiatria. Só na quinta edição, publicada em 2013, é que o termo passou de”desordem” a “disforia” — uma mudança que chegou tarde e que continua a não fazer sentido, considera Diane. “Até ‘disforia de género‘ é um problema, porque continua no manual de desordens mentais, como se fosse um problema psiquiátrico. Se a patologia está mais na cultura do que na criança, porque é que estamos a diagnosticar a criança com disforia de género? Há muita controvérsia na minha área sobre se devemos deixar de fazer um diagnóstico ou se o devemos manter, porque é uma forma de estas pessoas terem acesso aos serviços de saúde que precisam”, aponta.
A especialista distingue três áreas que influenciam o processo de construção da identidade de género:
- Biologia: os cromossomas, os recetores hormonais e os sinais neurológicos do cérebro.
- Educação: os pais ou os educadores que temos ao longo do crescimento, os professores, as figuras mais próximas com quem convivemos, a instituição religiosa em que crescemos.
- Cultura: os valores culturais, as leis e práticas da sociedade em que estamos. As noções de género são diferentes de cultura para cultura. Diane dá um exemplo: na Escócia os homens vestem saias e é suposto que o façam. “Esta é a parte cultural do género, daquilo que é aceitável e recomendável ou não”, explica.
Esta teia de género, ou gender web, contraria o conceito de género binário homem/mulher. E esta teia pode estar sempre a mudar durante toda a nossa vida. “Quando temos 3 anos pode ser de uma forma e aos 15 anos pode ser diferente”, refere Diane. “A teoria antiga dizia que aos seis anos tudo estava definido. Sabias de que género eras e sabias como era a tua sexualidade. Se mais tarde começasses a fugir daquilo, eras encaminhada para o médico para fazer terapia de ‘recuperação’ ou ‘conversão'”.
“Em 1968, se nascias rapaz, crescias rapaz. Se nascias rapariga, crescias rapariga. De vez em quando surgia uma notícia de um transsexual no jornal, mas ensinaram-nos que isso era uma doença e estava profundamente errado”.
O público hoje já não estranha o tema. Mas nem sempre foi assim. Diane fez a a tese de doutoramento em Gender Socialization and Young Children no final da década de 60. “Naquela altura o assunto não era crianças transgénero. Estava muito longe disso. Era tão simples como: as raparigas podem ser médicas? Os rapazes podem vestir cor de rosa?”, confessa em entrevista através do Skype. Hoje é diretora de Saúde Mental do Centro de Género de Crianças e Adolescentes em São Francisco (EUA). Tem um consultório privado em Oakland, Califórnia (EUA), onde recebe crianças, adolescentes, adultos e famílias.
Quando falamos de crianças pequenas, como perceber a fronteira entre ser uma fase de exploração ou ser-se transgénero?
“É preciso que os pais estejam muito atentos a frases como: ‘mãe, quando é que me vai crescer uma pilinha como aos meninos?’ ou ‘quando eu crescer e for um menino…’ Porque as crianças pensam: ‘tal como as maminhas crescem nas meninas, os pénis também podem crescer’. O que temos de ver é se isto acontece de vez em quando ou se estas frases são repetidas constantemente, e perceber também se a criança se sente frustrada por não a ouvirem.
Em algumas crianças os sinais aparecem muito cedo, mas pode acontecer em qualquer altura. Às vezes sente-se pela primeira vez na puberdade. Provavelmente os próprios jovens não tinham noção mas, quando o corpo começa a mudar, veem as transformações próprias daquele corpo e pensam ‘isto é horrível, não gosto disto, não quero este corpo‘ — é preciso perceber se são reservas e resistências naturais da adolescência ou se o que dizem é ‘não quero um corpo que tenha este género'”, exemplifica a especialista. O manual americano acrescenta um período de tempo — é preciso que haja diferenças marcadas entre o género com que o indivíduo nasceu e o género que expressa durante, pelo menos, seis meses.
Há pais que levam os filhos a um terapeuta para serem “curados”. Alguns desses psicólogos, médicos ou pedopsiquiatras sugerem uma terapia de choque para castigar a criança. Os casos de meninos que se sentem meninas são os mais radicais. “Muitos desses terapeutas dizem aos pais: tire-lhe essas Barbies. Mande-as para o lixo e compre camiões”. Se ele gostar de dançar no quarto ou na sala a imaginar que é uma princesa, ignore-o. Nos momentos em que ele está a brincar às princesas, finja que ele não está ali. Não lhe dê atenção. Ponha-o de castigo. Mas se ele fizer alguma coisa ‘à rapaz’, dê-lhe mimos. Compense-o e felicite-o”.
O que são maus exemplos de atitudes de pais?
“Um pai ou uma mãe que diz: ‘se queres estar sempre a vestir as roupas do teu irmão, por mim tudo bem, mas só se for dentro de casa. Noutro sítio qualquer não, porque não quero passar vergonhas’. O que estão a dizer é: o que eu sinto como pai/ mãe é mais importante daquilo que tu és como meu filho. Fazes-me passar vergonhas, fazes-me ter vergonha de ti. Assim, a criança vai sentir-se rejeitada.
Um pai ou uma mãe que diz: ‘podes vestir-te assim e fazer essas coisas aqui em casa, mas não digas nada aos teus avós. Isto fica entre nós, é um segredo nosso. Eles não podem saber nunca. Não quero que digam que sou má mãe nem que te digam coisas más, por isso vamos manter isto em segredo’. Isso passa-lhe a mensagem de que o que ele é não é bom”.
“Imaginemos um rapaz que tem 15 anos e diz que quer vestir uma saia no sábado à noite. E o pai diz: ‘quando tiveres 18 anos podes fazer o que quiseres, mas em minha casa os rapazes não vestem saias’. Isto é mau porque esse adolescente está em risco de sofrer vários problemas psicológicos, como ansiedade e depressão. Há muitos miúdos a magoarem-se a eles próprios e alguns chegam mesmo a cometer suicídio”, exemplifica a autora do guia para pais e famílias de crianças transgénero.
A dedicação dos pais aos filhos tem de passar por uma atenção milimétrica aos gestos e, sobretudo, às palavras. “Muitas vezes os pais acham que estão a apoiar os filhos e as atitudes que têm espelham o contrário”, aponta a especialista. “Imaginemos um rapaz que diz à mãe: mamã, eu sou uma menina e quero uma Barbie. E a mãe responde, num tom completamente descontraído: claro, os meninos também podem brincar com Barbies. Vamos comprar-te uma Barbie. A mãe fica muito orgulhosa de si mesma porque mostrou apoiar o filho”.
Mas o que é que está mal aqui? “Com esta resposta, a criança fica muito frustrada e diz: mãe, tu não estás a ouvir-me. Eu não disse que sou um rapaz que quer uma Barbie, eu sei que os rapazes podem brincar com Barbies. Eu disse que sou uma rapariga e quero uma Barbie. Naquele momento, a criança não está a ser ouvida e está a dizer algo extremamente importante”, explica a especialista.
Que pais recebe na clínica?
“Recebo pais de todos os tipos. Uma grande parte vem porque quer apoiar os filhos, mas acontece vir o pai e a mãe e não estarem de acordo um com o outro. Por exemplo, há pais separados que chegam à consulta e dizem-me: ‘quero que diga à minha ex-mulher que o que ela está a fazer é uma loucura. É tudo culpa dela’. São pais que não aceitam e culpam o outro.
Mas agora há muitos que chegam assustados por causa das estatísticas publicadas depois da morte de Leelah Alcorn (jovem transgénero dos EUA que se suicidou em dezembro e deixou uma carta na internet): 41% das pessoas transgénero pensam ou chegam mesmo a cometer suicídio. É um número gigante. Os pais podem dizer: ‘eu quero parar isto. Não quero que o meu filho seja transgénero’. Ou dizer: ‘não quero que o meu filho faça parte desta estatística’. Mesmo esses admitem ‘isto é muito difícil para mim’.
Ainda esta semana uma mãe disse-me: ‘vou ser honesta consigo. O meu maior desejo é que a minha filha não seja transgénero’. Os pais têm esperança que o filho/a seja só gay e não transgénero. Muitos pensam ‘vai ser difícil para nós se o nosso filho se transformar em nossa filha’. Há muitos que ficam tristes por ‘perderem o filho que tinham’, outros têm muito receio da reação das pessoas”.
O número de pessoas transgénero está a aumentar?
“Acho que não. Acho que elas estiveram sempre lá. A maioria dos transgénero que se assumem em adultos dizem-me, na maioria das vezes: ‘desde pequeno que eu sabia que algo estava errado em mim, mas não podia contar a ninguém. Por isso decidi guardar para mim’. O que também me dizem é: ‘quem me dera ter nascido no século XXI. A minha vida teria sido tão mais fácil e tão mais feliz'”.
As famílias chegam de todo o país e de vários pontos do mundo. Todas na esperança de encontrar alguma luz no meio da confusão que, muitas vezes, se torna mais simples de solucionar do que se parecia. “Recebi uma vez uns pais muito religiosos, na casa dos 70 anos, brancos, que tinham um filho negro de 8 anos que naquela altura que se virou para eles e disse: eu sou uma menina. Naquele momento eu tinha todos os estereótipos no meu gabinete. Eles aceitaram, seguiram a vontade da criança e, no outono seguinte, ela já foi para a escola vestida de menina e com nome de menina. Os meninos no recreio viraram-se para os pais dela e disseram: “mas eu pensava que o Soho era um menino”. Eles responderam: “sabem que mais? nós também achávamos o mesmo, mas estávamos enganados. É uma menina”. E os miúdos, depois de um segundo de silêncio, disseram “Ok”, e continuaram a vida deles”.
Sobre se há diferenças entre meninas e meninos transgénero, Diane Ehrensaft responde “sim”. Não neles, mas nos pais. “Quando as crianças são mais pequenas, nós damos mais permissão e abertura a que uma menina se comporte como um menino”, analisa. “Há várias estatísticas sobre as primeiras manifestações das crianças e alguns indicam diferenças, mas acho que a única diferença está nas alturas em que os pais ficam alarmados e levam os filhos ao médico. Os pais ficam mais alarmados quando vêem os seus meninos a serem femininos do que as suas meninas a serem masculinas”.
“Ela só quer ser chamada de ‘John'”, revelava o pai, Brad Pitt, em 2008. “Por isso temos de chamá-la John. ‘Shi, queres…’. ‘John. O meu nome é John.’ Então eu digo: ‘John, queres sumo de laranja?’ A mãe, Angelina Jolie, acrescentava em 2010: “Ela quer ser um menino. Tivemos de lhe cortar o cabelo. Ela gosta de usar todas as coisas de rapazes. Acha que é um dos irmãos”, contava à Vanity Fair. Foi em dezembro do ano passado que a criança de agora oito anos foi notícia em várias publicações. O assunto? O estilo masculino que apresentou na estreia do filme “Unbroken”, realizado pela mãe.
Angelina e Brad podiam ser paciente de Diane Ehrensaft. Os pais de John Jolie-Pitt tomaram a atitude que é, muitas vezes, a mais difícil: dar liberdade à criança. Independentemente do que ela seja. “É preciso dar às crianças ‘criatividade de género’, ou seja, deixá-las explorar, deixá-las ser criativas nesse sentido, sem medo. Ela vai ser sempre a autora da sua identidade de género. Os pais não podem fazer nada”, destaca.
Um caminho longo até à felicidade
Muitas vezes, Diane Ehrensaft não chega a ver a criança. As consultas são passadas só a conversar com os pais — alguns chegam da Austrália. Numa fase mais avançada, depois de uma primeira consulta privada, avança-se para os “bloqueadores da puberdade” — medicamentos para travar o desenvolvimento hormonal.
“As meninas transgénero que ganham uma maçã de Adão ou os rapazes transgénero que ganham mamas sentem-se como se nós acordássemos de manhã com um nariz de elefante: isto não me pertence, mas o que é isto?”, aponta a psicóloga.
Estes medicamentos, de que o Lupron é exemplo, ajudam a que esses sinais fortes da masculinização ou feminização do corpo não se instalem. Estagnam a produção hormonal daquele corpo, pelo menos até o jovem ter a certeza do que sente e quer. Se se perceber que o jovem não é transgénero, é possível retornar a produção hormonal, sem grandes riscos, deixando de tomar os medicamentos indicados. Para quem está certo de que quer um corpo diferente, pode depois iniciar as cirurgias de transição aos 18 anos.
No Centro de Género de Crianças e Adolescentes em São Francisco (EUA), onde Diane é diretora de Saúde Mental, há endocrinologistas, um pediatra, psicólogos, um advogado, um assistente social e um especialista em educação. O advogado intervém, por exemplo, nos casos em que os pais estão separados e há uma batalha pela custódia. É preciso saber o que têm e podem fazer. A família pode não precisar de todos os membros da equipa, mas tem acesso a todos.
“Primeiro veio a permissão para sair do armário sobre a orientação sexual e agora começa a haver permissão para também sair do armário no que respeita ao género”, aponta a autora. O que falta, diz, é “esclarecer as pessoas que não entendem”. Mas a mensagem é: “estamos a trabalhar para isso”.