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Pouco passa das 10h00 de uma segunda-feira de fim de julho. Na zona das Olaias, em Lisboa, na garagem de um prédio de habitação social cujo portão foi arrancado ninguém sabe dizer por quem nem quando, rodeados de lixo, garrafas vazias, caricas, seringas usadas, embalagens de preservativos intactas e sacos plásticos verdes, “Kit Prevenção SIDA”, dois homens e duas mulheres vão conversando enquanto preparam as primeiras doses do dia.
Sentados em sofás dispostos em L, que arrastaram do lixo para ali, têm mais conforto do que os outros toxicodependentes que consomem em barracas feitas de pneus, madeira e pedaços de lona ali mesmo atrás, nos baldios do Vale de Chelas, com vista para o cemitério do Alto de São João; pelo menos a droga não voa com o vento. Mas também sabem que não hão-de poder resguardar-se ali durante muito tempo: “Esta semana vêm aí arranjar isto e vamos ter de sair”, dizem, enquanto lamentam a inexistência das salas de consumo assistido de droga que, apesar de previstas na lei portuguesa desde 2001, não saíram ainda do papel.
No sofá mais próximo da porta, os homens — um português, na casa dos 40 anos, e um alemão, consideravelmente mais novo –, esticam as pratas onde vão depositar a heroína que dentro de instantes estarão a fumar, com recurso a tubos artesanais, também prateados: “Desculpem estarmos a fazer isto à vossa frente”, diz o português, de modos e discurso educados.
Encolhida no outro sofá, uma das mulheres prepara, em cima de um livro de capa dura e com uma pequena espátula, as pedras de crack que vai fumar, num cachimbo improvisado, com uma seringa partida a servir de boquilha. É um processo rápido, basta o tempo da explicação — “Isto é base, é cocaína cozida. A crua, que é a cocaína em pó, serve para cheirar ou chutar, esta serve para fumar” — e o cachimbo está pronto a acender. Vai fumando, como a outra mulher, dois anos mais nova, mas diz que também se injeta, cocaína e heroína, o que houver. Tem 42 anos e seis filhos, quase todos já crescidos, os menores “estão sinalizados pela Segurança Social”. De rajada, conta que consome desde a adolescência, que já traficou, diz que chegou a estar detida durante três anos no Equador, numa prisão sobrelotada e violenta onde dormia com um olho aberto e de onde só saiu graças a um indulto papal. Tenta a sorte: “Se vocês pagassem fazíamos aí uma entrevista como deve ser, podiam filmar e tudo, desde que não aparecesse a minha cara. Já vieram aí jornalistas que pagaram…”. Depois, como não há dinheiro, concentra-se no cachimbo.
“Estas são só as pessoas mais degradadas”, explica à saída da garagem o psiquiatra Luís Patrício, especialista em patologias aditivas, fundador e diretor do Centro das Taipas até 2008, cicerone do Observador por uma manhã, passada entre Olaias, Lumiar e ex-Casal Ventoso.
O que significa que há outras: em pleno 2017, a cocaína é uma droga verdadeiramente democrática. Há os que encomendam pelo telefone e consomem em casa, em festas regadas a champanhe; os que usam nas discotecas; e estes, que se escondem nos bairros mais degradados, explica. Todos juntos fizeram disparar as estatísticas dos últimos anos, diz o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, que põe a cocaína no segundo lugar do pódio das drogas mais experimentadas em Portugal (a canábis continua em primeiro), e dizem também os especialistas ouvidos pelo Observador.
A droga que mais vicia
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A cocaína é a substância que provoca a maior percentagem de dependentes num curto período de uso
- É um alcalóide estimulante, vendido em pó, branco e de sabor amargo. Pode ser inalada, fumada ou injetada;
- Faz desaparecer a dor, o cansaço, a fome e o sono; provoca sensações de euforia e bem-estar; diminui as inibições e aumenta a auto-confiança e o desejo sexual; provoca aceleração do ritmo cardíaco, da temperatura corporal e da sudação e o aumento da tensão arterial;
- Com doses elevadas, depois da sensação inicial de bem-estar, provoca ansiedade, agressividade, agitação, irritabilidade, apatia, cansaço, insónias, tremores, convulsões e alucinações (as mais comuns são as táteis, como a sensação de ter insetos sob a pele);
- O consumo a longo prazo pode provocar um sem número de complicações psiquiátricas, como crises de ansiedade e de pânico, apatia sexual ou impotência, diminuição da memória e da capacidade de concentração, bulimia e anorexia nervosa; e de problemas físicos, como arritmias, enfartes cerebrais e problemas respiratórios.
SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências)
“Há coisas difíceis de explicar, em Espanha, de um ano para o outro, o consumo de heroína quase desapareceu e a cocaína explodiu. Em Portugal, a heroína tem vindo a cair lentamente e a cocaína a subir da mesma forma”, confirma João Goulão, diretor-geral do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências).
“Estamos a notar um ligeiro aumento no consumo de cocaína e de ecstasy. São questões de moda, fenómenos flutuantes, ligados às festas e à noite”, corrobora João Curto, presidente da Associação Portuguesa de Adictologia e diretor da Unidade de Desabituação de Coimbra.
Não é a primeira vez que acontece ao longo dos cerca de 100 anos da droga em Portugal.
1859 – 1917. Remédio para as dores, histeria, sífilis e até azia
Antes de 1859 era o nada — pelo menos em pó, que milhares de anos antes disso os incas privilegiados primeiro e os trabalhadores escravizados pelos colonos espanhóis depois já mascavam folhas de coca para suportarem os rarefeitos níveis de oxigénio e trabalharem com mais vigor nas montanhas mais altas dos Andes. De qualquer modo, e como os sul-americanos, com o presidente boliviano Evo Morales à cabeça, defendem há décadas, não é a mesma coisa: “Coca no es cocaína“.
Só nesse ano, depois de um tripulante da fragata austríaca Novara, que tinha acabado de empreender aquela que ficou conhecida como a “última grande expedição científica global do século XIX”, lhe ter oferecido algumas folhas da planta, é que o alemão Friedrich Wöhler deu início ao processo de descoberta daquela que se viria a tornar uma das drogas mais consumidas do mundo.
Professor de Química na Universidade de Göttingen, na Alemanha, Wöhler passou as folhas de coca a Albert Niemann, seu aluno, e ele não desiludiu: nesse mesmo ano conseguiu isolar a molécula da cocaína e ofereceu ao mundo uma nova droga milagrosa que atuava como poderoso estimulante cerebral e rapidamente passou a ser utilizada pela comunidade médica, que a prescrevia para tudo, das dores à diarreia passando pela histeria, hipocondria, estupor, sífilis e azia.
“Havia em todas as farmácias — era obrigatório — um armário fechado à chave onde se guardavam os estupefacientes”, explica Paula Basso, conservadora do Museu da Farmácia, onde há frascos antigos de extrato de heroína em exposição, mas não de cocaína. Apesar disso, tudo leva a crer que em Portugal, como no resto da Europa, no final do século XIX e até ao período pós Primeira Guerra Mundial, no tempo em que a farmácia era uma arte e havia até medalhas de ouro e prata para os melhores preparados, também se tenham feito medicamentos com cocaína. Se bem que nem de longe tantos como os que se fizeram com heroína, morfina e ópio: “Rapidamente se terá percebido que a cocaína não fazia assim tão bem e que viciava”, tenta justificar a especialista.
A três décadas do início da Guerra, em 1884, então com 28 anos, um Sigmund Freud pré-psicanálise tornou-se um dos principais entusiastas do remédio, que testou inúmeras vezes em si próprio (diluído em água, que a inalação como método de toma só viria a surgir anos mais tarde), e usou para tratar as mais variadas patologias, desde a adição à morfina ou ao álcool até à depressão ou impotência sexual.
Antes, em 1863, o ítalo-francês Angelo Mariani já tinha lançado no mercado farmacêutico um medicamento que misturava tinto de Bordéus com folhas de coca do Peru trituradas, 6 miligramas por cada 30 mililitros de vinho. Bom para os nervos, para a depressão, para as insónias, e para a exaustão cerebral, o Vinho Tónico Mariani foi apresentado como um elixir capaz de fortalecer e renovar “todo o sistema e as forças vitais”. Posologia recomendada: três copos por dia, antes ou depois das refeições — metade se os pacientes em questão fossem crianças”.
Em parte terá sido por isso que em 1927 nem a brilhante campanha publicitária pensada por Fernando Pessoa deu salvo-conduto à Coca-Cola, banida imediatamente de Portugal e votada a um embargo de meio século: causava habituação, alegaram as autoridades em período de Ditadura Militar, proto-Estado Novo, aqui não haveria de entranhar.
Mas não terá sido a única razão: 1927 é justamente o ano em que os clubs de Lisboa recebem ordens para fechar de vez e apagar luzes que só depois de 1974 se voltarão a acender. A cocaína inalada, não bebida, não só existia no país há pelo menos uma década como tinha sido até um dos motores secundários da loucura da década prestes a chegar ao fim. Aceitar a entrada da Coca-Cola poderia deitar tudo a perder.
1917 – 1927. Charlotte, a primeira traficante
Terá sido por volta de 1917 ou 1918, no Palace, um dos mais de vinte nightclubs abertos na capital portuguesa nos últimos anos da Primeira Guerra Mundial, que tudo começou, pela mão de uma misteriosa Charlotte, francesa de modos excêntricos, ex-artista de circo e amante de um croupier, que os boatos diziam fugida da guerra mas que, garantiu o jornalista e escritor Reinaldo Ferreira, o Repórter X, em “Memórias de um Morfinómano”, só se terá mudado para Lisboa, para aproveitar uma oportunidade de negócio.
Sabendo que a cidade estava “livre ainda do pesadelo dos estupefacientes”, Charlotte terá resolvido tratar do assunto. À noite, no Palace, não jogava nem dançava mas rapidamente se tornou uma das figuras mais populares entre boémios e papillons, as mulheres que lhes faziam companhia e os incentivavam a gastar mais e mais para que o club nunca saísse a perder — que é como quem diz prostitutas, explica ao Observador Cecília Vaz, autora da tese “Clubes nocturnos modernos em Lisboa: sociabilidade, diversão e transgressão (1917-1927)”.
“Os clubs estão muito associados ao jogo e à prostituição, alguns tinham até quartos onde era possível passar a noite. Claro que já há mulheres emancipadas, a República também ajudou nisso e a Veva de Lima é um exemplo, mas moralmente não era ainda assim tão aceite que frequentassem esses espaços. As amantes é que se levavam aos clubs à noite; não as esposas. Quem lá ia ou estava por conta ou queria arranjar alguém para ficar por conta”, diz a especialista.
Sem referir nunca a palavra “cocaína”, a tal Charlotte terá tratado de cair no goto das papillons oferecendo-lhes umas pastilhas brancas que se dissolviam na boca e eram bem melhores do que as de hortelã-pimenta que compravam na mercearia, descreveu Reinaldo Ferreira. Durante semanas, terá sido assim; pastilhas de borla para toda a gente que as quisesse provar ou repetir, tanto no club à noite como às 5h00 da tarde nas casas de chá mais finas da época, a Marques, a Benard e a Bijou: “Essas pastilhas comprimiam um germe de exaltação, de vivacidade psíquica, de inebriamento — que se emprenhava de alegria e de volúpia ‘à la minute’…”.
Só quando finalmente ficaram dependentes é que a francesa — “Esquelética, um decote ossudo, umas mãos de dedos agudos como pregos; branca, duma brancura que assanhava os nervos; os cabelos a rarearem-lhe já e astuciosamente defendidos pela moda ‘à romana’ — avó da… à garçonne’… E toda ela entrajava em negro, como uma pincelada de tinta-da-china” — terá passado a cobrar.
“Ao vê-los escravizados pela tentação (…) oferecia-lhes, em grande segredo, num segredo que os tornava cúmplices e discretos — um pó mui branco, mui caro, que ela encarecia mais ainda — com mil embustes e esgares de sacrifício — e que era cocaína pura”, descreveu o jornalista. De acordo com o seu relato, a misteriosa Charlotte, mais tarde conhecida por “Dista” (na altura, as prostitutas de menor categoria eram as fadistas, a francesa recebeu este epíteto abreviado por alegadamente se ter “abandalhado” depois de um desgosto de amor), acabou por morrer de forma repentina no verão de 1926. “Sem nunca ter experimentado os efeitos da cocaína.”
Charlotte pode ou não ter sido a primeira — “O Repórter X é um bocado fantasioso”, alerta Cecília Vaz, aconselhando cuidado na leitura das palavras de Reinaldo Ferreira, o jornalista viciado em morfina (e não cocaína), que inventou entrevistas a Mata-Hari e a Arthur Conan Doyle, fez publicar uma série de reportagens sobre a Rússia sem sequer sair de Paris, e “teve a sorte” de conseguir recolher as dramáticas últimas palavras do presidente Sidónio Pais, assassinado a tiro no dia 14 de dezembro de 1918, no Rossio: “Morro bem, salvem a pátria!”.
Independentemente disso e de a francesa que “semeou de cocainómanos Portugal inteiro” ser ou não uma personagem real, os seus feitos foram replicados nos jornais e revistas da época que, durante todos os anos 20, não deram tréguas ao assunto cocaína. De tal forma que, para não estarem constantemente a insistir na mesma palavra, inventaram variantes e a droga da moda passou a ser também a “coca”, a “côcô”, a “fada branca”, a “neve”, ou simplesmente “a droga”.
“A cocaína era um assunto sensacionalista, que aparece muito ligado ao aceleramento das cidades, ao novo ritmo de vida. De repente, sair à noite passou a ser sinal, não de status, mas de civilização, de cosmopolitismo. Ainda assim, apesar de existirem substâncias que são mais ou menos toleradas, a cocaína nunca apareceu assim. Tanto na literatura como na imprensa, a cocaína surge sempre como devastadora. Com o jogo acontecia o mesmo, são coisas que destroem as classes populares e as famílias, que endividam e viciam, levam à degeneração dos valores. Tudo isto é muito contra os valores burgueses, de seriedade, contenção, ponderação, família, sobriedade no vestir e nas maneiras”, observa a especialista em História Moderna e Contemporânea.
Todo o ambiente inerente aos clubs — o fumo, a bebida, os ritmos do jazz, as novas danças frenéticas da moda, o foxtrot, o charlton e o maxixe, os horários tardios, o jogo ilegal, a irreverência e a subversão — passou a estar associado também ao consumo da cocaína. E ao uso de outras substâncias ilícitas, como éter, morfina ou ópio, pode ler-se no terceiro volume de “História da Vida Privada em Portugal”, dirigida por José Mattoso.
No fundo, explica Júlia Leitão de Barros, autora de “Os Night Clubs de Lisboa nos anos 20”, viveu-se em Portugal uma réplica tardia do pós-guerra francês, por sua vez em larga escala inspirado pelos hábitos culturais trazidos para a Europa por milhares de soldados norte-americanos (sobre o consumo de cocaína nas trincheiras há também vários trabalhos publicados). “Naquela altura a maioria dos portugueses que viajavam não iam além de França, Paris era o nosso modelo cultural. Sob essa influência, adoptaram-se normas de convívio radicalmente diferentes, que passavam por novos espaços de sociabilidade, entre os quais os nightclubs. Passou a beber-se o champanhe e os cocktails franceses e apareceu também a droga.”
O próprio look das mulheres que frequentavam estes espaços, ponto de confluência de atores, músicos, jornalistas, políticos, escritores e ilustradores, burgueses em fase boémia e novos-ricos emergentes da Grande Guerra, era consonante com os efeitos prolongados da droga: “As papillon, com aquela imagem muito estilizada dos anos 20, muito brancas e muito magras, no fundo pareciam-se com consumidoras de cocaína e poderiam de facto consumir”, diz Cecília Vaz.
“O clube à noite é a síntese da vida moderna: a confusão, o delírio e às três da madrugada… a cocaína!”, foi como o Diário de Lisboa descreveu na época o Maxim’s, o primeiro, o mais luxuoso e o mais bem frequentado club da cidade, no Palácio Foz, nos Restauradores.
Num outro artigo intitulado apenas “Cocaína”, publicado em novembro de 1926 na revista ABC, o autor dá conta do advento da droga no país e alerta as autoridades: “A Portugal já chegou a droga, usada na maioria dos casos nos clubs de jogo, lupanares mal disfarçados com jantares a preços módicos. Entre nós, hesitante ainda, o tráfico da cocaína está nas mãos de meia dúzia de rufiões, porteiros de clubs ou escrocs cadastrados, e bom será que a polícia abra os olhos a tempo, antes que o negócio atraia capitais e se forme, como lá fora, uma poderosa organização capaz de derrotar todas as vigilâncias”.
Já em “Malefícios da Fada Branca, A Cocaína e as suas Mentiras”, texto divulgado pela mesma revista mas em maio de 1927, são descritos os efeitos daquela que acabou ficar conhecida como maldita cocaína: “O álcool, em comparação com a cocaína, é como um falsificador, em relação a um parricida. (…) É de todos conhecido que após um período de relativo bem estar, surgem a bestialização e o abastardamento mais completo, alucinações bizarras, aberrações sexuais e morais que levam os intoxicados à prática dos mais espantosos crimes”.
Para comprarem a droga sem a qual já não podiam passar e que alcançaria preços proibitivos, uns roubariam, outros enganariam, muitas prostituíam-se, escreve Manuel Moura Teixeira em “Mundanismo, Transgressão e Boémia em Lisboa dos anos 20 — O Clube Noturno como Paradigma”: “Sendo a maioria dos consumidores do sexo feminino, o incremento da prostituição de luxo na década de 20 surge associado ao consumo de cocaína”.
Na altura, só em Lisboa, haveria mais de 20 mil prostitutas. De repente, um país que, como chegou a apontar o Repórter X, tinha no cúmulo da boémia desbragada o abuso de licores, passou de repente a ter antros de diversão, decorados com vanguardistas iluminações elétricas, onde era possível cear pela noite dentro, jogar a dinheiro, dançar e ainda assistir a apresentações, quanto mais exóticas melhor. “Podia variar entre um ventríloquo, uma fadista ou uma senhora a fazer um strip”, conta CecíliaVaz.
Pelo meio, as mulheres que frequentavam os clubs, e que tinham passado a andar com caixinhas prateadas nos fios, faziam desvios estratégicos aos toucadores, para aspirarem o pó que tinham lá dentro. “Havia uma certa glamourização da coisa, mas o consumo não era feito às claras, não havia grandes orgias de cocaína nem nada disso. Até porque, por outro lado, a droga não era tão bem vista assim”, acrescenta a especialista.
Mais até do que isso: era ilegal. Em 1924 foi publicado em Diário da República o decreto que proibia a entrada no país de cocaína e derivados exceto para “fins médicos ou scientíficos legítimos” e que limitava a venda nas farmácias a pacientes com receita médica. Quem transgredisse arriscava multas entre os 6 e os 900 escudos e podia mesmo ser julgado e preso em caso de reincidência.
Na prática, percebe-se pela leitura dos jornais, nunca funcionou. Não só muitas vezes até eram os próprios empregados de farmácia a traficar a droga, como noutros casos as transações se faziam nas barbas das autoridades, sem que nada acontecesse. “Ainda há dias, numa casa bem frequentada por agentes da polícia e por oficiais do exército, nós vimos exercer-se esse comércio”, escreveu o jornal A Batalha, em Outubro de 1926.
De acordo com “Os Night Clubs de Lisboa nos anos 20”, terá sido exatamente nesse mês que a polícia afixou à porta dos clubs da baixa os nomes dos consumidores supostamente viciados, para que não lhes fosse permitida a entrada — mas também isso não teve qualquer efeito.
No fundo, até no início da década de 30 os clubs de Lisboa serem todos encerrados, um por um, nada travou o consumo de cocaína. Depois disso, acredita Júlia Leitão de Barros, também não. “Em 1930, com a Ditadura Militar, a censura e Igreja Católica, o ambiente político em Portugal é altamente repressivo e punitivo em relação a tudo o que punha em causa os valores tradicionais. Os clubs, vistos como antros de vício e depravação, não podiam continuar a resistir. A cocaína foi um assunto que ficou enterrado, escondido. Mas que não deixou de existir.”
1980 – 1999. “Olha a branquinha da boa!”
A descolonização fez com que os 70 fossem os anos da canábis, trazida para o país por retornados habituados a fumar “suruma” em Moçambique e “liamba” em Angola, recordava em 2014 um artigo da Sábado. Mas não só, acrescenta-se no livro “LX 70, Lisboa, do sonho à realidade”: também havia drunfos, speeds e LSD. E alguma cocaína e heroína, pouca ainda. “Depois do 25 de abril passou a haver droga aos pontapés. Descia-se o Chiado e via-se pessoas agarradas aos postes a tripar”, contou o jornalista e escritor José Couto Nogueira, que à data era fotógrafo.
Só na década seguinte é que se deu o boom da “branca” e do “cavalo”, usados por muitos consumidores em alternância, uma droga para subir, outra para baixar. Em julho de 1989, diz o artigo da Sábado — que também cita uma ex-consumidora, que garante que por essa altura um só traficante com poiso certo no Casal Ventoso vendia em média 2.100 pacotes de cocaína por manhã, entre as 8h00 e as 10h00 — o consumo da droga tinha aumentado 100% em relação a apenas dois anos antes. No caso da heroína, o número era ainda maior: 200% de crescimento.
“A meio da década de 80 começam a aparecer doentes que referem estar a consumir cocaína. Gradualmente torna-se bastante comum o consumo de heroína e de cocaína. Na maioria são consumidores que injectam cocaína associada a heroína — o speedball –, mas aumenta também o uso de cocaína snifada. No início dos anos 90, recordo-me de um doente na periferia norte de Lisboa contar que fumava uma pedra que desconhecia e que agarrava muito. Tratava-se de cocaína cozida, ou free base, cujo consumo se banalizou depois no século XXI, porque baixou o preço e aumentou imenso a oferta em locais e agentes de distribuição”, explica o psiquiatra Luís Patrício.
“A heroína era altamente massificada, era uma questão de mercado, que fazia com que esta droga em concreto fosse mais acessível, barata até, se considerada com a cocaína. Foi a fase do Casal Ventoso, em que se ouviam os foguetes e se dizia: ‘Está a chegar!’. Enquanto as outras drogas eram democráticas e transversais à sociedade, porque não havia uma família, fosse de que estrato social fosse, que não tivesse alguém que as consumisse, a cocaína era a droga dos ricos, mais cara, mais sofisticada”, explica Júlia Leitão de Barros. “Bastava ir ao Casal Ventoso para ver, a cocaína era para os yuppies, os bem-sucedidos, que trabalhavam na bolsa ou estavam ligados às artes e iam com grandes carrões comprá-la.”
Na altura ainda não se conheciam bem os efeitos nocivos nem as consequências do vício. Até a SIDA era ainda uma doença por nomear, uma “pneumonia” altamente perigosa que acabara de fazer as primeiras vítimas mortais do outro lado do Atlântico e começava a ser descrita como a doença dos 4H (por aparentemente acometer homossexuais, hemofílicos, heroinómanos e haitianos).
Resultado: a devastação deste consumo de iniciado meio às escuras teve ecos até ao final da década seguinte e ultrapassou em muito os limites físicos do bairro, Rua Maria Pia em cima, Avenida de Ceuta em baixo, a que milhares de consumidores acorriam todos os dias, para comprar, fumar, cheirar ou injetar.
“Existiram outros bairros bem conhecidos, recordo que os doentes diziam que iam à Venda Nova, a Camarate. Foi muito conhecido, perto do aeroporto, o Bairro do Relógio, mais longe recordo as Marianas, em Carcavelos, e o Fim do Mundo, em Cascais. Mais para o centro de Lisboa recordo outros bairros citados pelos doentes: o Casal do Pinto, a Curraleira e, ainda mais central, a zona de São Bento, onde os doentes encontravam cocaína. Houve quem por lá ficasse fechado em algum lugar, dias seguidos a consumir cocaína. Para algumas pessoas essa frequência, a falta de cuidados e de estratégias e utensílios de prevenção esteve na origem da contaminação por doenças infeciosas, muito piorada com a chegada do VIH, situação que para algumas pessoas foi catastrófica”, explica Luís Patrício.
Sobre aquele que ficou conhecido como “hipermercado da droga de Lisboa”, Gimba, músico fundador dos míticos Afonsinhos do Condado, escreveu em 2009 que o mais correto teria sido chamar-lhe “feira”, onde nem pregões faltavam: “‘É p’ró Espanhol!’; ’É p’ró Godzilla!’; ‘O cavalo daqui é melhor que o da rampa!’; ‘Olha a branquinha da boa!’; ‘Pessoal para o King Kong, é por aqui!’; ‘P’ró Rasta! Há alguém p’ró Rasta?’”.
Garantindo ter-se deslocado à Meia Laranja numa única ocasião, para comprar a cocaína de que precisava para aguentar muitas “horas extra de trabalho”, o músico, hoje com 57 anos, descreveu no seu blog o raide de 57 minutos que lá fez, já a contar com duas viagens de táxi para cada lado. Não precisa em que ano ou década aconteceu, só frisa que foi ainda no “tempo do escudo”, quando havia traficantes a faturar 60 contos por minuto, 3.600 por hora.
“Existiam duas filas principais e bem definidas. Uma delas era constituída apenas por junkies mirrados, na maioria homens, iguais aquele que me substituiu no táxi, com a pele escurecida pela castanha, de cigarro nos dedos, e olhar perdido. Era sem dúvida gente da heroína! Lógico. A outra fila era de uma aparência bem mais composta – fina até, nalguns casos – sexualmente mais heterogénea, com um ar um pouco menos vicioso e uma média de peso superior à primeira. É esta a minha fila! É a fila da “coisa”! E lá ao fundo está “a coisa”. Muita “coisa”!”
Foi preciso chegar à década seguinte para que, já em 1996, Ana Rita Paes Braga, menina de boas famílias educada nos melhores colégios de Cascais (de onde chegou a ser expulsa duas vezes), decidisse dar um murro no estômago do país e gritar a quem a quisesse ouvir que a droga podia calhar a todos — e tinha efeitos devastadores.
Então com 25 anos, limpa há três, seropositiva e com uma overdose de cocaína no currículo, deu entrevistas a jornais, televisões, revistas e rádios — de cara destapada e sem nome fictício. Até quatro anos mais tarde a SIC acompanhar, da forma mais crua possível e em horário nobre, a luta de Pedro contra a heroína, a história de Ana Rita foi o maior e melhor cartaz anti-droga que o país pôde ter.
Começou a tapar o nariz para não sentir o amargor da cerveja aos 13, bebia por “querer ser amada, estar só, sentir a falta do pai”, divorciado da mãe, contou na altura à revista Grande Reportagem. Aos 16 anos, apesar de ter pavor de agulhas, deixou que a injetassem pela primeira vez e logo com heroína — foi uma questão de mercado, explicou: nos sítios onde costumava comprar haxixe, passou a existir apenas “cavalo”, era isso ou nada.
Entre os 19 e os 22 anos morou no Casal Ventoso, foi detida em rusgas, prostituiu-se e roubou para pagar o vício, que chegou a custar-lhe 50 contos por dia. Começou por tirar dinheiro da carteira da mãe, passou para as “tias e tios”, os pais dos amigos, os amigos da família, acabou a assaltar pessoas de seringa em punho: “Era só para assustar, não queria usar violência, não ia mesmo espetar-lhes a seringa. Mas as pessoas não sabiam, não é?”.
Até decidir parar, meses depois de ter sido chamada pela Polícia Judiciária para prestar declarações sobre uma morte que lhe podia ter calhado — “Conheci uma pessoa, uma miúda que picava ao meu lado e apareceu morta na Costa. Estripada” –, e outros tantos após acordar no chuveiro de casa de um amigo depois de uma dose que podia ter sido a última, Ana Rita experimentou tudo o que havia para experimentar.
“A cocaína é que era a minha droga. E no fim só metia speedball, que é um chuto de coca com cavalo. Com a pica toda, o speed e aquilo tudo de conquistar o mundo, de ser capaz de tudo, da coca, que é um flash incrível, e a calma e o calor da heroína para aguentar quando a coca baixa, porque a coca a baixar dá uma angústia incrível”, contou à Grande Reportagem.
O pintado por Ana Rita Braga, que depois de fazer tratamento se tornou ativista, ajudou a fundar a Ser+, a Associação Portuguesa para a Prevenção e Desafio à Sida, saiu do país, cumpriu o sonho de ser mãe, e morreu durante a primeira década dos anos 2000, era o lado mais negro. Era o lado da droga-horror que, ao longo de toda a década de 90 alimentou livros e livros para adolescentes em idade de risco e que teve o expoente máximo em A Lua de Joana, de Maria Teresa Maia Gonzalez, que ainda hoje, 300 mil exemplares vendidos depois, faz parte integrante do Plano Nacional de Leitura.
Mas existia outro — existe ainda –, o lado da cocaína como hábito recreativo, para dançar techno e acid-house em after-hours e raves acabadas de importar de Londres e recriadas no Kremlin, no Alcântara-Mar, na Kadoc, no Pacha ou em armazéns devolutos e castelos, conventos e casas abandonados, abaixo do radar das autoridades que não eram chamadas como hoje para fazer a segurança de eventos.
“Não era como agora, não só não havia polícia como chegavam a andar gajos com cartazes: ‘Vendo mescalina, ácidos, ecstasy, MD’. Além de no Kremlin e do Alcântara, que eram os que estavam a bombar, havia festas trance por todo o lado, na Marateca, em Idanha-a-Nova, no Undergroung, na Praia Grande, e na Casa Abandonada, em Sintra, onde uns hippies começaram a fazer uns afters, a malta ia para lá e aquilo durava o fim de semana inteiro. Havia coca, mas não era tão fácil de arranjar, era mais cara; branca e cavalo raramente se viam… Quem dava na branca, para não ter de partilhar, ficava no carro e enquanto havia ficava lá a dar, só depois é que iam para a pista”, recorda um frequentador das festas da altura.
2005 – 2017. Prostituição e “telecoca”
Se nos anos 90 o consumo de cocaína aumentou muito, na década seguinte explodiu, sobretudo a partir de 2005 e entre a população mais jovem, quase sempre associada também ao abuso de álcool e de canábis, diz o psiquiatra Luís Patrício: “Com este crescimento da cocaína, instituiu-se outro hábito, misturar cocaína com álcool, o que faz com que o próprio fígado produza uma substância, chamada cocaetileno ou cocaetanol, que é ela própria outra droga. Ou seja, a pessoa consome duas e fica com três. Os estragos são maiores e o tratamento é mais difícil. Mas é um assunto que não é falado, é como se estivesse tudo bem”.
Nos anos a seguir à descriminalização que fez de Portugal um caso de sucesso em todo o mundo no que ao consumo de drogas diz respeito (foi no dia 1 de julho de 2001, sete meses depois de ser promulgada, que a lei entrou em vigor), a cocaína democratizou-se ainda mais.
Por um lado, garante o especialista, nunca foi tão fácil de encontrá-la: “Os meus clientes dizem que, por telefone, encomendam tudo o que é preciso, como se encomenda uma pizza”. Por outro, nunca o consumo foi tão tolerado: “Convém a todos. Já tive o dono de um bar a dizer-me que costumava vender uma média de x euros por noite e que, a partir do momento em que decidiu fechar os olhos ao que se passa na casa de banho, passou a vender três vezes mais”.
Este crescimento, diz João Goulão, vê-se até na água: “O Instituto de Medicina Legal tem um projecto de registo dos metabolitos dessas substâncias em várias ETAR (Estações de Tratamento de Águas Residuais). Na ETAR de Alcântara, por exemplo, que serve algumas zonas de diversão noturna, têm-se registado picos aos fins de semana, o que nos dá uma ideia da flutuação de consumos durante a semana. Provavelmente alguma retoma económica e a maior disponibilidade financeira que as pessoas têm para saírem para discotecas ou irem a festivais explica este aumento. São fenómenos potenciados por muitas variáveis e também por modas do mundo globalizado, o aumento de turistas que temos hoje não há-de ser alheio a isto também”.
Um grama de cocaína pode custar hoje entre 30 e 50 euros. Se há quem consuma quando sai à noite ou quando o Benfica é campeão, como os amigos de uma paciente de Luís Patrício, que snifaram riscos no ecrã de um telemóvel, à mesa de um café de Lisboa, enquanto outros comiam caracóis e bebiam imperiais; também há quem se escape do trabalho à hora de almoço para comprar, numa média de duas vezes por semana (ou “quando há dinheiro”), como o homem de 43 anos que encontramos nas traseiras da Rua Maria Pia, entre as novas hortas construídas pelos moradores e as velhas salas de chuto improvisadas pelos toxicodependentes.
De calças de ganga e camisa branca às riscas azuis não dá sinais do estigma de que fala Luís Patrício e que distingue grande parte dos adictos que frequentam estas zonas mais degradadas — nem magreza extrema, nem dentição incompleta, nem marcas de picadas na pele. “Agora estou a trabalhar na construção, ando só na branca, não dou no cavalo”, explica, garantindo logo depois que está perfeitamente funcional e apto para voltar ao emprego. “Antes ainda vou ali tratar de uma multa que apanhei, por andar de mota sem carta”.
“Enquanto for assim, enquanto andarem só a brincar, conseguem manter as vidas normais. O problema é quando deixam de conseguir, a cocaína snifada tem um grau de aditividade, fumada tem outro maior, injetada ainda mais. Tem um efeito tão rápido que quando falta a pessoa entra num sofrimento que não se aguenta e tem de ir buscar mais”, considera Luís Patrício, que garante acompanhar vários pacientes, endinheirados, que em vez de 1 ou 2 pacotes de um grama de cada vez estão habituados a comprar ovos de cocaína. “São 20 gramas, a 30 euros cada, é fazer as contas… E depois há as festas e os grandes eventos de música e de deporto: é muito mais comum do que as pessoas pensam, há sempre cocaína. Ainda há um par de anos um paciente meu, um homem bem colocado no mundo do desporto, abdicou de ir a uma grande festa num estádio por causa disso: ‘Se for vou-me rebentar todo com a coca e o álcool’.”
A outra tendência que o psiquiatra tem vindo a registar é ainda mais preocupante e prende-se com o consumo associado ao sexo — ou do sexo como meio de possibilitar o consumo. “Acompanho quatro meninas, todas mais ou menos da mesma idade, 20 e poucos anos, que se prostituem ou prostituíram desde o final da adolescência. Nos anos 90 era raro mas de vez em quando ouviam-se as histórias do jovem yuppie que consumia coca e comprava uma noite com uma mulher que também queria consumir. Agora isso é banal”, garante o psiquiatra.
Tal como aponta para um canto agora deserto nas traseiras da Maria Pia, junto ao graffito de um cão que engole um homem — “Da última vez que aqui estive vi ali dois indivíduos a terem relações sexuais em troca de cocaína” –, também conta, parco em detalhes, a história da “menina dita normal”, filha de pais divorciados, que está prestes a completar 18 anos, começou a fumar charros aos 12, apanha bebedeiras frequentes desde os 14, e aos 16 experimentou pela primeira vez cocaína.
“Há dois anos, esteve com três homens, um deles muito conhecido aí na praça, num hotel de luxo de Lisboa. Hoje em dia, na Internet encontra-se tudo, é muito fácil. A quantidade de gente que está a consumir cocaína nunca mais acaba. E isso quer dizer que a prevenção falhou.”