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Tiago Petinga/LUSA

Tiago Petinga/LUSA

Eles estão na faculdade. E podem ser expulsos a qualquer momento. A guerra está nos tribunais

Entraram na universidade e estão a tirar cursos superiores. Mas o Ministério entende que devem voltar a fazer exames e quer mandá-los embora. A guerra (e o percurso deles) está na mão dos tribunais.

Pedro tem 23 anos e está no terceiro ano de medicina, na Universidade de Lisboa. Em 2012, foi um dos 183 alunos provenientes do ensino recorrente que acedeu ao ensino superior sem fazer exames nacionais, poucos meses depois de o ministro Nuno Crato ter mudado as regras de acesso e ter imposto a realização de exames. O Ministério recorreu da decisão dos tribunais e, no ano passado, Pedro recebeu um cartão vermelho, que é como quem diz uma carta da Direção-Geral do Ensino Superior (DGES) com ordem de expulsão da universidade. Não obedeceu.

“Lembro-me de ter visto no Facebook, no início do ano passado, que o Ministério da Educação estava a notificar os alunos que tinham vindo do ensino recorrente, mas como eu não tinha recebido carta nenhuma fiquei descansado. Até que em abril lá chegou a carta da DGES a dizer que a minha média tinha sido recalculada com base nas notas do ensino regular e como eu não tinha posto mais nenhuma opção de ingresso depois da Universidade de Lisboa, perdia a colocação”, recorda Pedro, que prefere manter o anonimato, por saber que “o recorrente é muito mal visto”.

Pedro não abandonou a universidade porque o seu advogado voltou a recorrer para os tribunais, mas está longe de estar tranquilo. “Não sei o que é que hei de esperar do amanhã. Estou a estudar hoje e não sei se amanhã me podem mandar embora, nem posso fazer projetos. Os meus colegas vão todos de Erasmus no próximo ano e eu nem posso sequer pensar em concorrer”, lamenta, com o olhar caído sobre as mãos.

"Não sei o que é que hei de esperar do amanhã. Estou a estudar hoje e não sei se amanhã me podem mandar embora, nem posso fazer projetos. Os meus colegas vão todos de Erasmus no próximo ano e eu nem posso sequer pensar em concorrer". 
Pedro (nome fictício)

De 18,6 para 19,5 valores e entrada direta para medicina

Recuemos um pouco no tempo. Estamos em 2010 e Pedro termina o ensino secundário regular com uma média interna de 18,6 valores. Uma média elevada, mas não suficientemente alta para conseguir entrar num curso de medicina. Decide ficar mais um ano a fazer melhoria de notas. Matricula-se no ensino recorrente – uma vertente de educação para adultos que permite fazer o ensino secundário num só ano e até sem assistir a aulas – e prepara-se para os exames de ingresso ao curso de medicina (biologia, matemática e física e química).

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Em 2011 Pedro termina o recorrente com uma média interna de 19,5 valores e consegue melhores notas nos exames das cadeiras específicas. Feitas as contas: 18,1 valores. Uma média que lhe valeu o ingresso nesse ano em medicina, embora na última opção. A adaptação não correu da forma desejada e o estudante meteu imediatamente na cabeça que no ano seguinte iria pedir transferência para outra universidade, com os exames, ainda válidos, que tinha feito em 2011 e aproveitando a nota interna do recorrente.

Acontece que em 2012, já na primavera, Pedro apercebeu-se que o ministro Nuno Crato tinha alterado as regras de acesso ao ensino superior para os alunos do ensino recorrente e, a conselho de um amigo do pai, procurou a ajuda do advogado Jorge Braga, que já estava a defender um grupo de alunos nesta mesma causa.

“Só sei contar que ganhámos em tribunal, que entrei na Universidade de Lisboa e não mais pensei no assunto, até a carta da DGES ter aparecido, no ano passado. Dizia que a minha matrícula seria anulada pois a minha média, recalculada, baixava e eu não tinha colocado mais nenhuma hipótese, naquele ano, a seguir a Lisboa. O meu pai está mais por dentro destas questões jurídicas do que eu. Na verdade não percebo muito bem a terminologia que o Dr. Jorge usa. Eu limito-me a estudar e desde que recebi a carta ainda tenho tirado melhores notas”, conta o estudante.

O que mudou com Nuno Crato?

A mudança das regras de acesso ao ensino superior para os alunos vindos do recorrente ocorreu a meio do ano letivo. Em fevereiro de 2012 foi publicado o diploma que aproxima as condições de candidatura ao ensino superior por parte dos alunos dos cursos científico-humanísticos do ensino recorrente, daquelas a que estão sujeitos os alunos do ensino regular.

Na prática, os alunos do recorrente que se querem candidatar ao ensino superior passaram a ter de fazer os exames finais nacionais como os alunos do ensino regular, sem prejuízo de ser suficiente a avaliação interna para os alunos que apenas queiram obter a certificação da conclusão desses cursos. Além disso impediu-se que os alunos que tivessem completado o ensino secundário regular se matriculassem em curso idêntico no recorrente para subir nota.

"O propósito [das alterações às regras de acesso] foi pois o de pôr termo à prática, que se veio a revelar abundante, de utilizar o ensino recorrente como via rápida e acessível para o ingresso no ensino superior, frustrando as expectativas de todos os que seguiram o percurso normal".
Fonte oficial do Ministério da Educação e Ciência

As alterações introduzidas vieram, sublinha o Ministério da Educação ao Observador, “restaurar a matriz do ensino recorrente”. “O seu propósito foi pois o de pôr termo à prática, que se veio a revelar abundante, de utilizar o ensino recorrente como via rápida e acessível para o ingresso no ensino superior, frustrando as expectativas de todos os que seguiram o percurso normal”, acrescentou fonte oficial do Ministério de Nuno Crato. Os casos mais flagrantes e polémicos prendiam-se com alunos que tiravam notas baixas no regular e iam subir notas para o recorrente para conseguir entrar em cursos de médias elevadas, como medicina.

Mas este diploma acabou por ser objeto de litígio. Isto porque o ministro Nuno Crato entendia que as novas regras se deveriam aplicar a todos os alunos vindos do recorrente que acedessem ao ensino superior naquele mesmo ano e os alunos entenderam que não.

Alunos venceram em tribunal. Ministério não baixou armas e a “guerra” continua

O advogado Jorge Braga tem sido um dos rostos desta luta que opõe os alunos do recorrente ao Ministério da Educação. Em 2012 apresentou dois processos no Tribunal Administrativo do Circulo de Lisboa, representando um total de 285 alunos, e venceu os dois. O advogado considerava que o diploma de fevereiro de 2012 devia conter uma regra de transição para estes alunos “que não tinham sido formatados para fazer exames naquele ano”, explicou ao Observador.

Os alunos acabaram por poder candidatar-se e 183 conseguiram colocação. O Ministério, que recorreu das decisões, criou na altura 163 vagas adicionais para que os alunos do regular não fossem prejudicados.

Um dos processos acabou por subir para o Tribunal Central Administrativo Sul e como este tribunal decidiu que “a própria norma era inconstitucional porque violava o princípio da confiança jurídica, o Ministério Público (MP) teve obrigatoriamente que recorrer para o Tribunal Constitucional”, conta Jorge Braga, lembrando que o recurso do MP dava razão aos alunos. O outro processo, que entrou mais tarde, seguiu para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) do Sul.

Segundo o advogado, o Constitucional decidiu que a norma não era inconstitucional para “todos os alunos matriculados no ensino secundário recorrente” e o STA seguiu a mesma linha. Jorge Braga recorreu do acórdão do TC para o Plenário e do STA para o Constitucional. A resposta do Constitucional foi idêntica à primeira. A partir desse momento, Jorge Braga percebeu que só teria como salvaguardar os direitos dos alunos que tinham estado matriculados no recorrente antes de 2011/2012. Restavam-lhe 11 dos 183 que tinham entrado no ensino superior. E é por esses que se tem batido.

"O TC claramente excluiu da decisão os alunos que já haviam terminado o ensino recorrente, portanto esses alunos que eram detentores de um certificado de habilitações académicas podiam, deviam e teriam sempre que se candidatar".
Jorge Braga, advogado

“O TC claramente excluiu da decisão os alunos que já haviam terminado o ensino recorrente naquele ano, portanto esses alunos que eram detentores de um certificado de habilitações académicas podiam, deviam e teriam sempre que se candidatar”, argumenta o advogado.

Acontece que perante a decisão do Constitucional e do STA, a Direção-Geral do Ensino Superior (DGES) não perdeu tempo e começou a notificar os alunos, numa carta em que decidia o seu futuro. Foi o pretexto para Jorge Braga contra-atacar: “eles aplicaram um ato administrativo antes do tempo, antes do trânsito em julgado das decisões, portanto violaram uma decisão judicial. Eu recorri e suspendi a decisão dos tribunais”, relatou.

O advogado apresentou providências cautelares individuais, uma por cada um dos 11 alunos, às quais ficou acoplada uma ação principal. Só a providência de Pedro não foi ganha. O Ministério voltou a recorrer e Jorge recorreu da decisão da providência do Pedro para o Supremo Tribunal Administrativo que, por sua vez, se recusou a revisitar o processo, obrigando o advogado a recorrer para o Pleno da Secção.

 

processo-09271-12

A carta que Pedro recebeu da Direção-Geral do Ensino Superior a dar conta que tinha perdido a colocação

 

Em resposta ao Observador, o Ministério esclareceu que “está obrigado a executar todas as sentenças judiciais proferidas no âmbito de processos em que é parte, independentemente de o conteúdo da sentença (acórdão) lhe ser favorável”. Assim, “foram retificadas as classificações de ensino secundário dos autores das ações que foram candidatos ao concurso nacional de acesso e ingresso no ensino superior público para matrícula e inscrição no ano letivo 2012-2013”.

E daí resultaram diferentes resoluções: aqueles que perderam a certificação de conclusão do secundário (por não terem feito exames nacionais) foram “excluídos”; os que, após retificação das notas (tendo em conta as do ensino regular que tinham frequentado anteriormente), não conseguiram média para entrar em nenhuma das hipóteses apresentadas em 2012/13 perderam colocação; outros foram notificados para mudar de instituição de ensino.

Sem adiantar números, o Ministério da Educação revela que “muitos dos alunos que moveram as mencionadas ações não chegaram a candidatar-se ao concurso nacional de acesso de 2012” e “dos que concorreram, uma parte significativa ou manteve a colocação ou foi colocada noutro par instituição/curso”. “Houve também alunos não colocados, nomeadamente por terem limitado as opções de candidatura, e só os alunos que não reuniam as condições de acesso ao ensino superior, por não terem realizado os exames finais nacionais, é que ficaram na situação de excluído, sendo este número residual”, concluiu.

Pedro já só pede para concluir este ano letivo

Desde que recebeu a carta da DGES que Pedro e a sua família têm vivido num “sobressalto”. E Pedro não é caso único. Há mais estudantes a viver idêntico dilema. Só Jorge Braga representa 11. E nem todos estão em medicina. Há alunos de engenharias, pilotagem e outros cursos.

Pedro, com boa média e apenas uma cadeira em atraso do primeiro ano, que vai fazer agora no segundo semestre, já só pede tempo para “acabar este ano letivo”. Concluindo o terceiro ano obtém o grau de licenciado o que lhe “daria oportunidade de concorrer a outras faculdades de medicina como licenciado”, explica.

Se a decisão judicial chegar antes do final do ano letivo e tiver de sair da universidade, “apenas me garantem as cadeiras que fiz” e “terei de repetir exames de ingresso para voltar a aceder ao ensino superior”. “Fico com a nota interna do regular (186 valores) e teria de ficar um ano em casa para me preparar para os exames”, detalha.

Mas o advogado Jorge Braga lembra que mesmo que Pedro tente concorrer a outra faculdade de medicina como licenciado, “vai sempre estar dependente do número de vagas para transferências, que costuma ser inferior a 10% do total das vagas da instituição”.

"Acho que temos uma boa probabilidade de ganhar a ação principal porque o ato do Ministério, de expulsar os alunos, é nula. Se assim for e se os alunos já tiverem abandonado os estudos, poderão vir a pedir uma indemnização ao Estado".
Jorge Braga, advogado

Neste momento, Jorge Braga só quer que as providências sejam todas decretadas. Quanto à ação principal? “Acho que temos uma boa probabilidade de ganhar a ação porque o ato do Ministério, de expulsar os alunos, é nula”.

E se os alunos entretanto já tiverem sido expulsos e vier a ser-lhes dada razão mais à frente, na ação principal? “Os alunos podem exigir uma indemnização ao Estado, correspondente ao valor do salário que iriam auferir até ao fim da sua vida profissional”, exemplificou. “Se eles perderem a ação principal perdem uma habilitação literária pois terão de fazer os exames nacionais pelo recorrente ou então terão de aceitar ficar com a média mais baixa que já tinham obtido no regular”. Além disso terão de fazer os exames de ingresso no ensino superior e voltar a candidatar-se, podendo pedir equivalência das cadeiras já feitas.

“Tento não pensar muito no assunto”, afirma Pedro, que, apesar de tudo, não deixa de reconhecer que o ensino recorrente, como estava montado, era “injusto”. E embora a situação em que se encontra atualmente não seja a ideal, Pedro espera que se prolongue. “Pelo menos devia demorar até setembro ou até às eleições para ver se nos deixam terminar o curso”, remata, com um sorriso nervoso.

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