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David Rodrigues

David Rodrigues

Estevais é de Rentes de Carvalho: viagem à aldeia do Doutor Zeca

"Trás os Montes, o Nordeste" é o novo livro de José Rentes de Carvalho. É um retrato de uma das regiões mais pobres e desertificadas da UE. Descobrimos o livro e Estevais, o lugar do autor.

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“Não acham curioso, para não dizer tristemente cómico, que Mogadouro disponha de um aeródromo, pretenso chamariz para turistas endinheirados que cheguem pelos ares, mas que na vila não haja um hotel?” (J. Rentes de Carvalho, Trás-os-Montes, o Nordeste)

Ironias do destino, foi no aeródromo de Mogadouro que, no dia 30, aterrou um grupo de jornalistas vindos de Lisboa a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos para acompanhar o lançamento do livro de Rentes de Carvalho. Esperavam-nos o diretor do aeródromo, a vereadora da cultura da Câmara Municipal de Mogadouro, Drª. Virgínia Vieira, um fotógrafo e três bombeiros perfilados junto a um auto-tanque, não tanto como comité de boas-vindas como para nos acudir em caso de desastre.

Estávamos em cima da hora para o lançamento, previsto para as 18h30, na Biblioteca Municipal Trindade Coelho, no centro de Mogadouro, considerada, e com toda a justiça, uma das mais belas de Portugal. A sala estava cheia e o autor, sentado a uma mesa à entrada, aproveitava o atraso para autografar livros.

Sentados todos os convidados e acomodados os repórteres de imagem, fez-se o silêncio protocolar das grandes ocasiões. Tomou a palavra o Presidente da Câmara, que agradeceu a presença da fina-flor da sociedade local, lembrou Trindade Coelho, ilustre homem de letras e mogadourense, e desculpou-se pela homenagem tardia a Rentes de Carvalho, compensando a falha com uma salva de prata em estojo de veludo. Falou depois o director geral da FFMS, David Lopes, com palavras emocionadas de agradecimento ao escritor. De seguida, passou-se à apresentação do livro propriamente dita, a cargo de Francisco José Viegas, editor de Rentes de Carvalho, amigo do peito e transmontano do Pocinho. Falou de Columbano Pinto Ribeiro de Castro, juiz de fora de Mogadouro, Pena Róias e Torre de Moncorvo no século XVIII, falou do silêncio, do deserto, do “reino maravilhoso” cujo reverso tem sido desvelado por Rentes de Carvalho nos seus livros, falou de freixos, negrilhos, faias, choupos, zimbros e outras árvores que já só os especialistas em botânica reconhecem sem o auxílio de aplicações tecnológicas e passou ao elogio da obra, o que fez com simplicidade e sentimento.

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Rentes de Carvalho preparado para receber o grupo de jornalistas que visitou Estevais (Foto: David Rodrigues)

David Rodrigues

Finalmente, falou o autor e as suas palavras não destoaram das que escreveu neste livro, com um misto de melancolia, raiva, desespero e resignação. Lembrou os tempos, que aos ouvidos dos jovens parecerão medievais, mas que ainda foram vividos pelos seus avós e bisavós: “Quem vai acreditar que as ruas e as canelhas se enchiam de palha encharcada de urina, excrementos, e água da chuva? Que era esse, com as fezes dos animais de carga e dos rebanhos, o único adubo dos campos?” Alguns dos presentes na sala, que iam assentindo com a cabeça, ainda se lembrarão dessa época. A cerimónia terminou com algumas perguntas do público, nenhuma tão memorável como a que o próprio Rentes de Carvalho desafiou o padre Avelino a fazer: “não quer saber porque é que não vou à missa?”

Seguiu-se um “Mogadouro” de honra, entrevistas aos órgãos de comunicação social e, após todos os cumprimentos, saudações e despedidas, o grupo vindo de Lisboa foi tratar do repasto no restaurante “A Lareira”, e é à porta deste acolhedor estabelecimento que deixo o leitor porque conversas tidas ao jantar só em romances se admitem.

Visita a Estevais

No dia seguinte, pela manhã, partimos em direção a Estevais, pequena aldeia do concelho de Mogadouro mas a igual distância da sede do concelho limítrofe, Moncorvo. É nesta aldeia, onde viveram os seus avós e os seus pais, que Rentes de Carvalho passa metade do ano, sendo a outra metade passada na cosmopolita Amesterdão, onde vive com a mulher há quase 60 anos. Do programa organizado pela Fundação fazia parte esta visita privilegiada visto que o guia seria o próprio escritor.

A viagem até Estevais, feita de autocarro por estradas secundárias com mais de mil curvas, durou hora e meia, mais do que no dia anterior tínhamos levado de Tires a Mogadouro. Porém, valeu a pena pois a paisagem justifica o passeio, se nem sempre pela beleza, ao menos pelo insólito: antenas de comunicações, um ringue de futebol vazio, varandas enfeitadas com vasos e botijas de gás, oliveiras e sobreiros, um funcionário municipal a limpar a berma das estradas das ervas que insistem em ocupá-las, um carro no meio do nada de bagageira aberta, lojas fechadas com grades. Lembrei-me das palavras de Rentes de Carvalho no dia anterior: “Se querem ver o Nordeste transmontano, não olhem para o IC5, onde, aliás, raro passa um carro. Perguntem antes nas lojas das vilas como vai o negócio.”

Sentado num toro à porta de casa, olha intrigado para a multidão lá ao fundo, mas logo se desinteressa, vira a cara e crava o olhar nas botas. Pergunto-lhe se conhece o escritor: “Se o conheço, desde pequeno, há setenta e tal anos."

Chegámos, por fim, a Estevais, aldeia anunciada pelas estevas que cobrem as rochas. De repente, a aldeia encheu-se de vida e movimento, como raramente deve por aqui acontecer. O senhor Fernando, rapaz da terra que já passou dos sessenta, sintetiza a impressão de um tal cafarnaum: “isto hoje parece a 24 de Julho.” O anfitrião já nos espera e pretende começar a visita pelo lugar de azeite: “está fechado”, informa um popular, a olhar com desconfiança para a parafernália de câmaras, microfones e pessoas humanas à volta daquele sujeito. Afasto-me do grupo, passo pela igreja (datada de 1700, ao que parece, mas com o relógio parado numas eternas vinte para as oito) e encontro o senhor José Augusto, 84 anos a fazer em outubro.

Sentado num toro à porta de casa, olha intrigado para a multidão lá ao fundo, mas logo se desinteressa, vira a cara e crava o olhar nas botas. Pergunto-lhe se conhece o escritor: “se o conheço, desde pequeno, há setenta e tal anos.” Entretanto, alguém trouxe a chave do lagar, mas eu quero ouvir o que tem para me dizer o senhor José Augusto, que nasceu em Freixo de Espada à Cinta mas que veio para Estevais ainda em criança. “A vida agora é fraca, não há trabalho”, sentencia. Sobram na terra uma meia-dúzia de rapazes: “raparigas, não há cá nenhuma. É da maneira que eles não se casam. Mas casar para quê? Ao cabo de umas horas separam-se.” Não há muito com que se entreter em Estevais: “anda-se rua acima, rua abaixo. Não se encontra uma alma. Se faz muito calor, a gente vai para a sombra.” Acredita o senhor José Augusto que quando a geração mais velha desaparecer isto há de ser um deserto. Tem um filho na Suíça e outro que por cá ficou, a trabalhar na construção.

Recorda com nostalgia o tempo em que na aldeia “havia mais tudo”, o que nas suas palavras quer dizer mais trabalho e mais gente. Será que a presença de jornalistas que depois darão a conhecer Estevais pode ajudar? “A gente não sabe para o que é”, diz com um cândido ceticismo. O que o irrita mesmo é o troço da estrada à saída de Estevais em direção a Moncorvo. A estrada pertence a três concelhos, mas só o de Mogadouro fez o devido arranjo. Os outros dois concelhos – Freixo e Moncorvo – não se entenderam: “é cada buraco. Deviam lá ficar eles com os carros empanados.”

“Trás-os-Montes, o Nordeste”, de J. Rentes de Carvalho (FFMS)

Uma vintena de metros mais à frente, na rua principal da aldeia, há uma casa a ser reabilitada. Um homem dos seus cinquenta anos assoma à varanda do primeiro andar. Fuma um cigarro, bebe uma mini. Escreve Rentes de Carvalho no livro: “Até que, de súbito, como num cataclismo, os “retornados” chegaram em massa, despojados, desorientados, traumatizados, descrentes de, dum dia para o outro, se verem em situação pior do que a de quando tinham partido.” A família de Adriano Marques, o homem que trabalha naquela casa, foi uma das famílias de retornados. Regressaram de Cela, Angola, para Estevais em 74, tinha Adriano sete anos. Foram depois para a Suíça. Adriano veio de lá em 96 e desde aí trabalha na construção: “Se Deus quiser é aqui que quero ficar. É bom desde que a gente se sinta bem, ganhe o pão de cada dia, consiga sustentar a família.” Hoje, não há muita indústria, falta o trabalho que obriga as pessoas a ir para fora, mas ainda há esperança, embora ténue: “ainda temos por aí umas crianças na aldeia, seis, pelo menos. Vão para a escola em Mogadouro, de camioneta.”

Rentes de Carvalho está agora à porta da casa que foi de uma tia-bisavó que lhe contava que por ali tinham passado há muitos anos os soldados de Napoleão, “feios e maus”. A visita segue para a casa que era dos avós do escritor e que este recuperou há cerca de vinte anos. Regresso à rua principal, onde do lado esquerdo há uma casa com um azulejo dedicado a Nossa Senhora: “Mater Purissima Ora Pro Nobis”. Arrimada a um poste, cresce uma anómala couve. Nas placas pintadas já não se distingue o nome das ruas. O gazeio das andorinhas é o único som que se ouve.

A Aldeia do Doutor Zeca

“Sinal da mudança dos tempos, Estevais até já tem um excelente Airbnb”, escreve Rentes de Carvalho numa nota de rodapé de Trás-os-Montes, o Nordeste. À proprietária do alojamento, Esperança Brás, encontrámo-la por acaso sentada perto de casa, na companhia de uma amiga. Foi ali mesmo que nasceu e cresceu com os irmãos: “Havia aqui muita gente.” Aquela era a casa dos pais e já tinha sido a dos avós. Há vinte e nove anos, Esperança, como tantos outros da sua geração, emigrou para a Suíça. Ainda lá trabalha, no aeroporto de Zurique. Recuperou outra casa de família e transformou-a num alojamento local que só recebe hóspedes quando Esperança está por cá. Os turistas vêm de todo o lado: Inglaterra, França, Alemanha, Espanha, até do Canadá e dos Estados Unidos: “Agora está cá um casal de americanos, da Califórnia.”O que trará gente de tão longínquas paragens a este lugar no fim do mundo? “Esta aldeia tem mel”, diz Esperança e fala da calmia, do ar puro, do bem que se come e, no seu caso, das recordações que lhe vêm à memória.

Mas nem tudo por aqui vai bem: “há aquele bocado de estrada muito mau”, diz Esperança. “É uma vergonha”, reforça Maria. E porque é que a situação não é resolvida? “É a falta de interesse de quem está à frente, é o não-me-rales. As ruas também não têm placas com nomes e as casas não estão numeradas”, diz Maria. 

A amiga, Maria da Silva, confirma tudo. E fala com a reforçada autoridade de quem não nasceu em Estevais, nem sequer em Trás-os-Montes: “Sou de Gondomar e trabalhava no Porto, no Banco de Portugal.” Foi uma amiga (“não sabe quem é? É a sogra da Dulce Pontes, está a ver?”) que trabalhava nas Finanças que, há mais de quarenta anos, a desafiou a vir conhecer Trás-os-Montes. “Só conhecia até Vila Real”, diz. Veio a primeira vez e nunca mais deixou de cá vir: “encantou-me o sossego.” Conhecem bem o conterrâneo famoso: “Ainda conheci o pai do Dr. Rentes” diz Maria, “uma vez dei-lhe boleia e ele, que pesava aí uns 120 quilos, ia virando o carro”. Esperança acrescenta sobre o escritor: “é boa pessoa, muito simpático, um bom vizinho.”

Mas nem tudo por aqui vai bem: “há aquele bocado de estrada muito mau”, diz Esperança. “É uma vergonha”, reforça Maria. E porque é que a situação não é resolvida? “É a falta de interesse de quem está à frente, é o não-me-rales. As ruas também não têm placas com nomes e as casas não estão numeradas”, diz Maria. (Esta é uma responsabilidade da junta, fico a saber depois) Dizem que também é pena que haja ali para baixo, perto da capela, mesmo no centro da aldeia, uma casa em ruínas: “é do Doutor Zeca”, diz Esperança. Nunca tendo ouvido falar de tal personagem, presumo que seja clínico reputado em Estevais. “Não, é o doutor Rentes de Carvalho, nós é que há muito lhe chamamos Doutor Zeca.”

Esperança e Maria falam da falta de trabalho e da falta de empenho político para justificar o declínio de um lugar que já teve mais de um milhar de habitantes e que agora não conta com mais de oitenta. Convidam-me a sentar-me junto delas e contam-me a história da casa ali ao lado: “dizem que foi igreja, tribunal e forca. Enforcavam-se aqui os condenados.” Fazem cálculos elevados e estimam que a casa tenha mais de 315 anos, conta que outros antes delas já terão feito e que terão ouvido outros ainda mais antigos a fazê-las. Certo é que a igreja de Estevais data de 1700, pelo que a ter havido uma igreja naquele lugar teria sempre mais de 317 anos.

Retrato do autor com 10 anos de idade numa das paredes da sua casa (Foto: David Rodrigues)

David Rodrigues

A tinta na parede desapareceu, mas Esperança e Maria sabem de cor a origem do nome daquele largo, um perfumado Largo das Flores: “mas não se referia às flores, é que nas casas aqui do largo havia muitas raparigas em idade casadoira, essas é que eram as flores.” E agora que já não há flores, a não ser as da toponímia, haverá esperança para a aldeia? Esperança responde: “Quem arranjou emprego por aqui ficou por cá. O que é preciso é trabalho.” À terra, só lhe veem qualidades. Por isso é que os que aqui nasceram voltam sempre, na Páscoa, no Natal, no Dia de Todos-os-Santos e na grande festa anual de São Lourenço, a 10 de Agosto: “vêm matar saudades do assadinho, do cabrito”, explica Maria. “Se vier aqui nas festas qualquer pessoa lhe abre a porta”, diz Esperança. As pessoas são hospitaleiras e generosas: “uma aldeia como a nossa encontra-se poucas por aqui.” Depois há também bonitas coisas para ver por estes lados: a ponte e as duas fontes romanas, os três fornos antigos onde se cozia o pão e onde cabem quinze travessas, as paisagens bonitas, a barragem do Sabor, a capela, o cemitério velho: “compomo-lo que é uma maravilha”, diz Filomena, que entretanto se juntou à conversa.

“Já arranjámos namorado”, atira-lhe Maria, galhofeira. Filomena mostra-lhe a aliança: “Eu cá sou casada.” Maria insiste, dirigindo-se ao forasteiro, como se a amiga a não ouvisse: “é uma casada que só não dorme com o marido há muito tempo.” Filomena concede: “mas isso são outros vinte”, e ri-se da pilhéria. Pelo largo passa Fernando, que há pouco comparou o movimento inusitado na aldeia ao da avenida da capital, e recorda as frases espirituosas do pai de Esperança: “Esta era uma das melhores bocas do teu pai, ó, Esperança: “Ladrão não é o que rouba carteiras ou casas, os maiores ladrões são os que roubam a paciência às pessoas.”

Ao que consta, António Brás, Antoninho Barroco ou apenas Toninho Barroco (“podia ser gótico ou manuelino, mas era barroco”, ri-se às gargalhadas Maria) andava costumeiramente munido destas balas de sabedoria portátil que muito impressionavam o jovem Fernando: “tinha esta que também era muito boa e muito verdadeira: “ave que aqui poisou, nunca mais daqui levantou.” Referia-se Toninho Barroco aos rapazes que vinham até Estevais e aqui se perdiam de amores pelas belas raparigas da terra: “Quem vinha cá ficava”, diz Esperança, que recorda que esses conquistadores forâneos, se queriam colher as flores de Estevais, eram obrigados a ir à tasca e pagar uma rodada a todos. Também acontecia algumas raparigas poisarem em Estevais e daqui nunca mais levantarem voo. Devia-se o fenómeno, dizem, à propalada valentia dos autóctones do sexo masculino.

A Cobra no Ninho de Andorinhas

Vamos andando para a rua principal e é Fernando que dá o alerta: uma cobra entrou no ninho das andorinhas: “Ai a puta!”, grita Filomena, mais excitada do que as aves que por ali esvoaçam, em círculos assustados e sem ciência para resistir ao predador. O ninho está nas telhas mais altas de uma casa de dois andares. “Esperança, traz cá um pau!”, pede Filomena, já com um plano engendrado. Esperança, cética, diz que a outra tem um parafuso a menos, o que explica o afinco que põe na tarefa a que se propôs: ata dois varapaus com pedaços de plástico de forma a chegar lá a cima. “Tem ali a cabeça de fora”, diz Filomena, a quem sobra em determinação justiceira o que lhe falta em perícia, pois o engenhoso dardo feito para a refrega pronto se desfaz. “Olha que bem atou o pau”, goza Maria, “era é com um maçarico a gás.” Fernando, armado com uma moca, anuncia com frieza de médico-legista os seus planos aos circunstantes: “agarro-a pelo rabo e depois mato-a”. Maria aprova o método anunciado, pois “dizem que as cobras têm o coração no rabo”, mas vendo que o desfecho tarda, volta costas ao espetáculo: “vou mas é pôr as batatas a cozer.”

Mesmo em frente do café, fica o cemitério velho. Se morrer na Holanda, é aqui que Rentes de Carvalho quer que as suas cinzas sejam depositadas: “Eu já combinei com a minha mulher. Morrendo aqui, vou para o cemitério novo. Não morrendo aqui, à boa maneira holandesa fazem-me a cremação, a minha mulher pega nas cinzas e vai espalhá-las no cemitério velho, do lado direito contra o muro, que é onde está enterrada a maior parte dos meus avós."

Filomena queixa-se da falta de apoio: “vocês não ajudam. Com os olhos não se faz nada”, diz enquanto conserta o instrumento de ataque. Retoma as investidas com uma série de golpes de uma consistência impressionante, pois não há um que acerte no alvo. Mas após porfiados esforços, Filomena lá consegue tirar a cobra do ninho. Porém, em vez de cair no raio de ação de Fernando, a cobra tomba perfidamente para a varanda do primeiro andar e, com a presteza e dissimulação própria da espécie, desaparece sem que ninguém perceba para onde fugiu. Filomena corre rua abaixo em busca de um escadote e Fernando, depois de perorar sobre o sistema digestivo das cobras, afasta-se com a melancolia do guerreiro que viu adiada a batalha e acompanha-me até ao café 007, um dos dois da aldeia, cujo proprietário é benfiquista, mas a empregada é portista ferrenha. Aqui, o café ainda é a 50 cêntimos.

Mesmo em frente do café, fica o cemitério velho. Se morrer na Holanda, é aqui que Rentes de Carvalho quer que as suas cinzas sejam depositadas: “Eu já combinei com a minha mulher. Morrendo aqui, vou para o cemitério novo. Não morrendo aqui, à boa maneira holandesa fazem-me a cremação, a minha mulher pega nas cinzas e vai espalhá-las no cemitério velho, do lado direito contra o muro, que é onde está enterrada a maior parte dos meus avós. Não imponho isso às minhas filhas e aos meus netos, eles acham isso extraodinariamente romântico, mas para mim é extremamente sério. Não é uma mania. É um atavismo. É uma raiz que puxa para baixo.”

O grupo reúne-se à porta do 007. Quando lhe conto a história do Doutor Zeca, Rentes de Carvalho fala dos dois grandes traumas de infância: “Era o Zequinha. Detestava quando a minha mãe me dizia, ‘Zequinha, olhó leite’.” O outro trauma era o segundo nome, Avelino. O pai de Fernando também se chamava José Avelino, o que motivou uma curiosa confusão que podia ter alterado o rumo da história de vários dos ali presentes: “quando a mãe do Fernando veio casar a Estevais com um José Avelino disseram-lhe que José Avelino era eu.” Fernando conta uma versão ligeiramente diferente da história e adianta que muita correspondência em nome de um José Avelino ia parar à caixa de correio do outro.

O cemitério velho de Estevais, em que na maior parte das campas a cabeça do corpo é sinalizada por uma pedra enterrada na vertical (Foto: David Rodrigues)

David Rodrigues

A caminho da junta de freguesia, encontro dona Zulmira, 94 anos, prima em segundo grau de Rentes de Carvalho. Lembra-se bem do primo ainda criança a brincar por aquelas ruas, junto à casa da avó materna, Ti Elisa Sapateira. Viu morrer o pai do doutor Zeca, “muito boa pessoa” e a mãe, “que no céu esteja”, era muito valente. Tem os olhos marejados de lágrimas, e despede-se, pedindo desculpa por não ter mais tempo para falar: “tenho cá o filho para o almoço.”

Um Fidalgo em Estevais

Após o almoço, realizado numa sala da Junta de Freguesia de Estevais e preparado pelas mãos sábias da d. Elisabete, cozinheira da terra que já trabalhou num dos restaurantes mais afamados de Paris, meto conversa com um senhor que, sentado numa cadeira, observa divertido o corrupio de jornalistas e de altas individualidades da política mogadourense. Chama-se António Augusto Fidalgo. 80 anos de vida, “feitos este ano”, mais de cinco décadas de Estevais: “sou do concelho de Moncorvo, de Felgueiras, mas encontrei para aqui o meu amor e por aqui fiquei.” Razão tinha o bom do Toninho Barroco: “ave que aqui poisou….”

“Já fiz muita coisa, se contasse tudo o que fiz…” Então conte lá só umas coisinhas, mestre Fidalgo: “Tenho a 4ª classe, não fiz mais letra nenhuma”, diz-me, ao mesmo tempo que se confessa orgulhoso por ter chegado tão longe. Para estudar, ia uma hora a pé de manhã desde as Quintas do Corisco, onde morava, até Felgueiras, e à tarde mais uma hora a pé no regresso. Terminada a 4ª classe, começou a trabalhar em casa do pai: “ajudava-o no campo, com as ovelhas, as cabras.” Tentou a sorte lá onde o Douro tem a foz: “ainda estive dois meses no Porto, de caixeiro, num gajo que tinha três casas, tabernas.” O senhor Fidalgo ia buscar material à doca e para lá carregava material que depois seguia para todo o mundo. Durou pouco a aventura: “não me dava naquilo, aborreci-me.”

"Fala-me dos dois tipos de transmontano que identifica: o que, por orgulho, nada pede a ninguém, e o trafulha.“Os mais mediáticos são os que roubam, trafulham, escondem milhões e matam gente. Agora o transmontano como eu fica por aqui e contenta-se com o destino que tem.”

De regresso à terra, casou, assentou em Estevais e, ao fim de sete anos, abalou para França, para trabalhar na construção civil: “vivia em Nancy, apartamento 54, vivia-se mal lá.” Ainda assim, aguentou mais de vinte anos em França. Voltou aos 60 anos e razões não lhe faltavam: “foi a mulher, os filhos e a minha casinha.” O filho, que esteve na banda de música da Guarda Fiscal, reformou-se aos 50 anos. Tem uma filha em Mogadouro e outra no Montijo. Para o senhor Fidalgo, o problema de Trás-os-Montes é que já não há quem queira viver da terra: “ganha-se e gasta-se na vida para lá.” Perdeu-se a ligação fundamental à terra: “é que a terra é de onde comemos e é a terra que nos há-de comer, não é assim?” Faz uma pausa. Sorri. “Já chega, que ainda conto aqui a minha vida toda… e muito havia ainda para contar.”

Resta-me algum tempo para falar com Rentes de Carvalho. Fala-me dos dois tipos de transmontano que identifica: o que, por orgulho, nada pede a ninguém, e o trafulha.“Os mais mediáticos são os que roubam, trafulham, escondem milhões e matam gente. Agora o transmontano como eu fica por aqui e contenta-se com o destino que tem.” Pergunto-lhe se concorda com o que diz Esperança Brás, que esta terra tem mel: “É uma boa frase. Temos aqui gente que está na Catalunha, em Angola, em Estugarda, eles vêm aqui e sabe o que eles vêm aqui fazer? Reservar a campa. É absurdo. Vêm marcar uma espécie de férias da eternidade. Você vem reservar a campa tendo uma vida confortável noutra parte do mundo, tem de vir para aqui ao fim da vida? É louco.” No entanto, também ele se sente atraído por esse chamamento primordial: “O chamamento do terrunho, como disse no outro dia em Lisboa, mas é puro. Eu não me sinto bem aqui, eu tenho é de vir para aqui, o que é totalmente diferente.” Despedimo-nos com um abraço, antes do regresso a Mogadouro pelo mesmo caminho que nos trouxe a Estevais.

Ao olhar uma última vez para esta aldeia que já várias vezes tinha visitado penso no que será dela quando o último desta geração morrer e tudo o que vejo é o abandono, a velhice (não a antiguidade) de todas as coisas, das casas, das pedras do chão, que daqui a uns anos serão as únicas testemunhas dos tempos da miséria, os velhos e os cajados em que se apoiam, as roupas antigas que resistiram a tudo e a tudo resistirão até irem para a cova funda do cemitério onde jazem os antepassados destes homens e mulheres.

José Rentes de Carvalho e um retrato da mãe (Foto: David Rodrigues)

David Rodrigues

Nos tempos miseráveis que Rentes de Carvalho evoca neste retrato a carvão, em que para se poupar um fósforo se acendia uma pinha à lareira de quem tinha lume, havia vida, com a obstinação da vida primeva, na luta milenar do homem contra os elementos e as suas limitações naturais. Um mundo em que no meio da morte, do luto, das doenças então mortais, havia a resiliência puramente animal da procriação e da sobrevivência, temperada com rezas, orgulho e resignação. Para as gentes que o sofreram, esse mundo não era uma abstração, uma “paisagem”. Hoje podemos deslumbrar-nos com a vista do Carrascalinho, que Rentes de Carvalho tanto admira, com o deleite incomprometido de quem não teve o corpo castigado pelas intempéries e martirizado pela rudeza dos caminhos e pôde assim, com o corpo a salvo do látego da natureza, refinar as qualidades do espírito.

Aprendemos a domar a natureza, como se vê, da estrada que leva a Mogadouro, nas águas do rio amansadas pelas barragens, mas com o fim dessa luta mano-a-mano, nobre e brutal, também o homem se domesticou. Tendo os homens desertado para lugares onde a vida lhes é mais leve, dão lugar ao triunfo natural do lugar. Quem observa a paisagem e se deslumbra com a monumentalidade e o silêncio é incapaz de ouvir o rumor que, por durar há milénios, nem tem de rugir. Como citadinos, julgamos apreciar a paisagem, seja com intuitos estéticos ou terapêuticos e, afinal, é ela que nos observa com o olhar de sossego voraz e de furiosa tranquilidade de uma terra indomável.

***

Um pouco antes da hora inicialmente prevista, o avião acelera pela pista do aérodromo de Mogadouro, abençoado pelos acenos municipais da simpática Drª. Virgínia Vieira, e levanta voo. Lá do cimo, as nuvens projetam sombras que cobrem a terra ora como bolbos, ora como manchas que podem por engano atribuir-se à cor da vegetação não fosse a mesma sombra cobrir por igual os telhados das casas, o asfalto das estradas e o amarelo de certas clareiras.

E a voar deixamos para trás as terras que magoam e prendem Esperança Brás, Maria da Silva, José Augusto, Adriano Marques, António Augusto Fidalgo, a quase centenária Zulmira, ocupada a fazer o almoço para o filho, e o nosso doutor Zeca, desmentindo, por uma vez sem exemplo, o senhor Toninho Barroco e a sua sabedoria popular: “ave que aqui poisou nunca mais daqui levantou.”

[o autor viajou a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos; fotos de David Rodrigues]

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor dos romances “As Primeiras Coisas” (vencedor do prémio José Saramago em 2015) e “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”.

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